edição 44 | outubro de 2013
temas:  rede | cuspiu no prato que comeu | outubro rosa

 

negro que te quero rosa
priscila lira 


"O corpo é uma angústia e posso medir essa quantidade que morre".

Danny Spínola

 

 

Eu sorri ao fim do velório, sorri de alívio e depois chorei de remorso. É uma confusão que dá na cabeça, nos últimos dias eu a odiava, mas agora, é como se eu quisesse pular naquela vala e ser coberto pelo mesmo barro que ela. Verdade é que me tornei um cara detestável esses meses, é provável que a família dela nunca mais me procure e que eu venda aquela casa, tão empestada de lágrimas, raiva, remédios. Foi tanto tempo de angústia que nem consigo lembrar direito as coisas boas, é terrível. Lembro o dia da primeira notícia, eu chorei. E no último aviso, senti que um peso se esvaía das minhas costas, era ridícula a minha alegria, eu não podia visitá-la com aquela cara.

Tu não podes imaginar o carnaval que acontece na cabeça de alguém que passa tanto tempo nesse vai e vem de desgraça, é como uma bomba atômica que se instalou na minha mulher. O medo se alastrou ao redor dela e teve que ser escondido para dar lugar a uma força fingida nas palavras. Mas ela me conhecia, ela sabia que eu sou fraco e isso só aumentava o nosso medo.

Ela tinha medo do que aconteceu: abandonei o barco em movimento.

Quando ela tirou a toalha, feito um cachorro medroso e eu vi o primeiro sinal de devastação da rosa de Hiroshima sobre o corpo dela, tive raiva. Do destino, que nos pregou uma peça dessas, do plano de saúde, que me disse que aquilo era uma questão estética que ele não cobria, dela, que devia ter descoberto a bomba atômica antes, tive raiva da minha raiva e tive que abraçá-la. Senti o vazio da explosão sobre o lado direito daquela mulher magra, o meu peito ficava sozinho a tampar o buraco. Eu abraçava um corpo estranho.

Ela foi forte, sorria todos os dias antes de pegar a caixa de comprimidos e me abraçava e a cada abraço eu enfraquecia, ela não percebia a devastação? Corri atrás da imagem passada dela e conheci a Beatriz, peitos enormes e o sorriso que transparecia um nada na cabeça. Minha mulher percebia, mas me queria por perto, queria o meu abraço mentiroso, queria que eu a ajudasse a fazer os cálculos das economias para a plástica e eu tinha cada dia mais raiva.

Os meses passaram, eu pulei do barco, ela voltou para o hospital e a raiva virou um nó de angústia na garganta que não descia por nada, eu não tinha coragem para vê-la, eu sentia a dor de tê-la abandonado e não sabia voltar. Corria para a Beatriz.

Por isso sorri, por achar que depois daquela notícia, o nó desataria. Mas não. Quando o riso acabou, o nó se transformou em uma corda que me amarrou o corpo inteiro. A rosa estúpida e radioativa já tinha me devastado com ela.

 

 

refúgio
priscila merizzio 


Os deuses protegem

meu corpo

Como o tapume circunscreve

a catedral gótica

 

Abriga múmias apoteóticas

via régia de papiros a.C

Refúgio do bardo pagão

 

Longe das trincheiras

da Revolução Francesa

Recolhidos na abóbada

homens verdes urinam

 

É de mármore, rezas, artilharia e ganas o caos

 

Os deuses protegem

meu corpo

Como índios costuram

palmeiras nas ocas

 

Batizam espíritos melífluos

no círculo mágico

Desmistificam aporias

 

jesuítas poluíram rios amazônicos com água benta

 

botos-cor-de-rosa engravidaram índias com sêmen europeu

 

Os deuses protegem

meu corpo

Com o apetite irascível

que elefantes africanos

acossam elefantas

 

Avançam com peso e presas

Estraçalham carros e pessoas

Trombas bramindo:

"Afastem-se do que é meu".

 

Os deuses protegem

meu corpo viandante

Tão livre

Irrevogavelmente politeísta

 

©mercedes lorenzo

 

 

ricardo
roberta silva 


Antes das cinco da manhã, Dona Clotilde, moradora antiga do bairro, entrou no beco para deixar suas sacolas de lixo na caçamba. A perna estava para fora. Ainda calçada de sandália vermelho vinil de salto finíssimo. Um arranhão recém-cicatrizado na canela denunciava depilação recente. Dona Clotilde havia testemunhado uma guerra mundial e várias locais. Um corpo jogado na caçamba, espancado e estrangulado a comovia, mas não a impressionava mais. Colocou-se na ponta dos pés para tentar reconhecer a moça. Era Ricardo. Conheceu-o ainda bebê e o viu crescer entre os meninos daquele subúrbio imigrante. Desde a adolescência, Ricardo era uma linda moça, alta, cabelos pretos, longos e cacheados, olhos azuis emoldurados por cílios belíssimos.

 

O pai abandonou-as quando a mãe deixou de maltratá-la pelas feminices e ajudou-a na transformação. As amigas de sua mãe não a convidavam mais para os almoços e passeios. Os antigos amigos de infância usavam-na às escondidas e a humilhavam em público. Apesar disso, aos 18 anos, era a mulher mais linda do bairro. Frequentava a faculdade de moda e fazia shows à noite para pagar o curso e seus belos vestidos autorais. As gorjetas pagavam o tratamento psiquiátrico da mãe.

 

Quando a polícia chegou, os vizinhos vieram ver o que acontecia. Olhavam o corpo, respiravam aliviados e voltavam para suas casas. "Quem morreu?". "Ricardo, aquele viadinho da Rua Dois". "Ah, achei que a violência tinha chegado ao nosso bairro, mas aquele ali procurou...". Benziam-se e seguiam em frente.

 

Excluí minha amiga no Facebook por ter filho gay, mas matar eu não matei. Abandonei meu filho gay, mas matar eu não matei. Ria dele quando passava, mas matar eu não matei. Chamei meus inimigos de viados, mas matar eu não matei. Trepei com ele escondido, depois voltei pra minha família, mas matar eu não matei.

 

A viatura do IML demorou o dia inteiro para chegar e recolher o corpo. No canto, acima da caçamba, uma aranha começava a tecer sua teia mais forte que o aço, mais elástica que corda de bungee-jump.

 
 

 

 

arco-íris
ro druhens 


Violeta abriu a janela e roxa de saudade seguiu com o olhar cinza os passos que iam da porta ao portão traçando um caminho sem volta. Azul foi a lágrima que lhe esquiou pelo rosto capotando na curva do seio. Verde esperança brotava no canteiro de amor-perfeito feito erva daninha. Amarelou de medo da manhã que vinha a galope anunciando o dia vazio. Laranja azeda no gosto da vida espremida no meio de tantas noites brancas e um grito de dor contida traçou um arco-íris no céu de sua boca com gosto de sangue. Vermelho.

 

 
 

 

abandono
sabina m.


Debruçou-se à mesa. O sol quente da tarde invadia a casa. Ela apenas debruçou-se num suspiro lânguido, descrente. A casa vazia pesava sob a tarde. O seu rosto descansava, não parecia esperar o bolo que assava no forno. A massa esquentava aos poucos assim como o corpo daquela mulher encurvado na mesa. Ignorava o mundo, tediosa. Aguardar era apenas mais um motivo. O bolo crescia em sua espera. Ela sentia a cada batida do ponteiro do relógio que o bolo criava forma, preenchia. A tarde estática, plana, não era interrompida por nenhum toque de telefone ou campainha, sequer uma folha tocava o chão. Com a  última batida do relógio, já cronometrado, ela sabia que o bolo estava pronto já em sua forma ideal, na química perfeita. Ela abre os olhos e ergue-se aos poucos, a cadeira arranha a cerâmica vermelha. Sente o cheiro que faz um caminho no qual ela percorre até o forno. Estava pronto mais um bolo, o bolo daquele dia. Pega-o devagar, o ar quente batiza o seu rosto deixando úmido o buço. Com calma, ela retira a fôrma que moldava aquela massa, que a moldou por tanto tempo. Nesse momento ela se sente só. Quando repousa o bolo para esfriar, percebe que o tempo passou, acende um cigarro e isso a deixa feliz.

 

 

 

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