edição 44 | outubro de 2013
temas:  rede | cuspiu no prato que comeu | outubro rosa

 

1 poema, 1 miniconto
silvana guimarães


mamuskas

 

 

a trisavó cresceu com a mania de recolher nuncas

a bisavó passou a vida colecionando nãos

a avó, entre rezas, reunia quimeras

a mãe empilhava lamúrias

ela habituou-se aos muros

a filha junta janelas

a neta, pássaros

 

 

 

 

o caroço

 

 

Enquanto o portão da garagem se abria ela reparou no jardim. Oh. Como reluzia, tão bonito. Saiu levando no olhar aquela imensidão de verdes sob a paisagem azul e dourada. E as flores, quantas. Rodeadas por pássaros e borboletas. Que dia espantoso, imaginava. Perfeito para uma fuga feliz. Sem rumo sem hora de voltar. Antes, apenas uma passadinha no laboratório e pegar o resultado dos exames de rotina. Estacionou o carro e saiu. A vida é bela, decretou sorrindo. Lá em cima, Deus também sorria e apontava a batuta. Seio esquerdo.

 

©mercedes lorenzo

 

 

3 poemas
simone santana 


paixão de futebol

 

 

Se o time perde

A rede não balança

Meu amor que dança

 

 

 

 

ingratidão

 

 

No prato que come

O amor sempre cospe

E some.

 

 

 

 

outubro rosa

 

 

Um pouco de carinho

Para as flores mais delicadas

Dessa primavera

 

 

 

 

delírio de rede

sonia viana

 

na infância escutei

quem cai na rede é peixe

nem todos, pensei

na juventude me embalava na rede

pra fabricar sonhos

cresci fazendo redes de amigos

aprendi fazer network

importante rede pros negócios

os índios só dormem na rede

os nordestinos amam a rede

na sociedade do espetáculo

todos se exibem na rede

as imagens se eternizam na rede cibernética

pra Vinicius o amor é eterno enquanto dura

meu avô tecia rede de pesca

comia camarão cru

 

 

 

outubro
suzana bandeira 

no seu estado de mar

outubro é um risco sem freio

 

no exercício de andar

outubro é a rota do veio

 

na cor sobrada de olhar

outubro é rosa no meio.

 

 

2 minicontos
tati skor 


entrelinhas

 

 

Dessa vez você está diferente, jamais vi um papel em branco assim. Antes, se logo não fosse grafado com algum dígito, tudo bem, era falta de ideia, de imaginação. Carradas de vezes parti desse mesmo ponto, nenhuma novidade aí, prezado papiro eletrônico.

Mas agora você parece estar de gozação comigo: nunca vi papel sorrir, muito menos enviezado, a ostentar esse ar de escárnio, a brandir um branco tão repleto de insinuações. Por que duvida que posso lhe inundar de textos com a mesma arrogância de quem cuspiu no prato que comeu?

Parece que lhe capto a ironia, papel. Esse ar de pretensa sabedoria, essa presunção de quem está tudo dizendo sem nada mostrar. Ah! Você não está em branco? Você está é repleto de entrelinhas?

Daí esse ar de superioridade, papel? Só por saber que o domínio cabalístico das entrelinhas extrapola nossas tão comezinhas quatro dimensões? Que sem entrelinhas as linhas perdem a linha, as letras se emudecem, os toques não se tocam, os espaços desaparecem, os planos se curvam e os pontos não pontuam?

Só mesmo você, sádico papel, para vir me dizer que nada melhor do que tudo para dizer absolutamente nada e que nada melhor do que nada para dizer tudo.

Ó procê!

 

 

 

 

apitos

 

 

A chaleira apitava, as crianças admiravam o espetáculo enquanto eu preparava o desjejum na casa de campo. Bons tempos aqueles, café de coador, os pequenos balançando na rede.

Ele assobiou e eu — ridícula! — caí na paquera. Sempre que a chaleira apita não deixo de lembrar disso. Nem agora, caminhando pela trilha estreita em plena noite de chuva.

O celular havia apitado, recado. O exame tinha chegado. Sexta, seis da tarde, isso lá é hora para se ler um diagnóstico desses? Cadê médico, cadê marido, cadê filhos?

O rabujento? Jogando seus jogos. Filhos? Crescidos, cada um na sua. Eu? Que me fodesse como sempre, debaixo da burka com que até então vestia minha alma.

Peguei o carro, trânsito infernal, enfiei-me na estrada, queria a casa de campo. Veio a noite, veio o temporal, trovões e relâmpagos, que diferença agora?

Cheguei exausta, direto para a cozinha, a chaleira apitando para um delicioso e derradeiro café de coador. Apresso o passo, repleta de pílulas sonoríferas, os trilhos já à vista.

Uma dúvida. Será que o trem também vai apitar?

 

©mercedes lorenzo

 

 

um dia é da caça; outro, do caçador
tatiana alves
 


"Torna-te aquilo que tu és".

(Píndaro)

 

 

Crescera em uma família de mulheres. A mãe, alienada mental, partiu cedo, deixando-o aos cuidados de uma avó intransigente e rígida. Desde cedo, percebeu que o seu referencial masculino era apenas o próprio espelho, ao qual recorria quando queria recordar como era um homem. Talvez esse vício em mirar o próprio reflexo tenha sido determinante para o que depois se passou.

Casou-se, e a vida lhe sorriu com três belas filhas, selando-lhe o destino de patriarca. Graduou-se em Medicina, e a opção pela Ginecologia talvez tenha sido a confirmação — e o passaporte — para a sua entrada triunfal no universo feminino. Pesadelo da esposa ciumenta, sua profissão fazia-o passar a vida examinando em outras o que nela fazia questão de ignorar.

De tanto observar a intimidade feminina, metonimizou-a: via a vulva, numa paródia das cartilhas de alfabetização. Via a vulva, não a fêmea. E, quando, por acaso, via a fêmea, era incapaz de enxergar a mulher em seu interior.

Com o avanço tecnológico e financeiro, adquiriu, em módicas parcelas, um computador. Seu sonho de consumo, conexão infinita com as fêmeas por descobrir.

Dos sites de relacionamento às salas de bate-papo, o que se via era um web-flanêur. Passava dias e noites em caçadas virtuais. Julgava-se um predador, e utilizava-se dos conhecimentos adquiridos na Escola de Medicina para impressionar suas vítimas em potencial. A ciência acerca do corpo feminino autorizava-o a discorrer sobre os anseios e fluidos das fêmeas, como ele no íntimo as chamava.

A aquisição da webcam conferiu o toque de requinte às suas aventuras. Além do conhecimento anatômico e da retórica persuasiva, possuía agora a imagem — que, segundo alguns, vale mais do que mil palavras — a auxiliá-lo em suas noites de caçador. Instalou um programa desses que permitem conversas em tempo real, e um microfone para melhor ouvir — lobo-mau internauta — as vozes das parceiras da vez. Seu arsenal estava completo, e a cada dia mais uma conquista se fazia no seu harém virtual. Para não confundir nomes ou características, criara uma pasta, uma espécie de dossiê para cada uma de suas amigas, e, pomposo sultão on-line, dava-se ao luxo de escolher aquela que teria a honra de satisfazê-lo naquele momento. Não havia favoritas, apenas a preocupação em alterná-las, para que todas se sentissem bem-cuidadas, e estivessem sempre disponíveis para ele. Acreditava que elas o usassem com a mesma frieza com que ele o fazia, e assim justificava sua atitude. Em datas festivas, mandava o mesmo cartão a todas, garantia de agradar de forma idêntica, sem risco de se esquecer do que escrevera e para quem. Na pastinha dedicada a cada uma, havia fotos, gentilmente cedidas ou copiadas à revelia, sem o conhecimento por parte da musa.

Naquela horda de onanistas virtuais, iam direto ao assunto: masturbavam-se de forma compartilhada, por meio de câmeras, trocando imagens eróticas quando necessitavam de estímulo extra. Conheciam melhor os genitais de seus companheiros de aventuras do que os rostos. Tinham-lhes visto antes as secreções do que os olhos, e assim que o ato — em tese, já que o estímulo visual e auditivo era o único contato — terminava, agradeciam formalmente e cada um seguia seu caminho.

Não havia preliminares, de espécie alguma. Usavam-se mutuamente, sem o encanto da conquista, nem o fascínio do desejo renovado.

Animais hightech, eram eles. Voyeurs e exibicionistas satisfaziam, de forma segura, rápida e terapêutica, suas necessidades mais primitivas. Sem trocas ou emoções.

Um dia, deparou-se com a mulher de sorriso aberto. Descobriu-a na lista de contatos de um dos amigos que mantinha em um site de relacionamentos. Nome de pintura renascentista. Linda e loura, como as princesas dos contos de fadas que jamais lera. Musa das pinturas que jamais contemplara. Enquanto não se apresentou virtualmente, não dormiu. Sua vigília à espera da resposta durou três dias. Mas veio a redenção, ao último: ela respondera à sua mensagem. Bem no meio da multidão, a internauta-passante-baudelariana deixou um rastro virtual de perfume, poção-feitiço que para sempre lhe aprisionaria os sentidos. Jovem. Rosto de ninfeta, o que o tornava praticamente um pedófilo, mas ele nem era capaz de perceber. Perdera totalmente o juízo, e passava seu tempo buscando canções e vídeos com que a pudesse cativar. Ela, com um ar blasé de quem não sabe exatamente o que está acontecendo, respondia-lhe de um jeito maroto, acentuando o ar Lolita que tanto o encantava.  Atendendo ao pedido, mandou-lhe uma foto, em que sobraçava flores coloridas, muito embora ele só tenha reparado no decote ao fundo. Pensava na flor outra, oculta dentro da calcinha que jazia debaixo do vestido. Menina-moça. Uma iguaria. Inigualável. Recusava, contudo, o uso da câmera, justificando-o com um recato que só lhe acendeu os sentidos.

Mas o destino pregaria uma peça ao irresistível onanista: a timidez da moça, em vez de lhe atiçar as taras, transformou o predador em vítima. Afinal, ela era tudo o que ele jamais tivera na vida, e com o que jamais sonhara. A luz de seus olhos trouxe-lhe a novidade do amor serôdio, e despertou nele o desejo de amar. Logo ele, tão carnal, amando intensa e platonicamente a única mulher que jamais poderia ter.

Desafiando suas certezas e convicções, volveu o ancião em adolescente, agora sujeito a caprichos e ciúmes de amor. Logo ele, tão liberal, passava os dias e noites, outrora dedicados à prática de Onan, a procurá-la. Bastava ela se conectar, para que os neurônios, artérias e safenas do provecto amante vibrassem como a mais pesada bateria de rock.

Ele, do agreste onde nascera, via nela as fontes e cachoeiras ao luar. Aquela mulher dos pampas era a inundação no sertão de sua alma, ressequida pela frieza, encarquilhada de desamor.

O grande lobo predador da estepe-web não era agora senão um carente cãozinho, implorando migalhas e pedindo perdão. Tentava, em vão, adentrar o território emocional da mulher do fim do mundo, mas ela não lhe dava confiança. Sem parâmetros ou referenciais, o obsceno Bocage era agora um trovador de cantares de amor. Em fados e cavatinas que ouvia, melancólico, descobrira-se romântico.

Resolveu criar um blog para divulgar as obras da amada, adolescente-poeta. Editor e leitor se fundiam, e as postagens laudatórias limitavam-se aos seus próprios comentários.

A obsessão fê-lo ainda comprar um gato persa. Nada a ver com Poe e as crueldades de seus protagonistas. Vira, nas fotos da moça, a gatinha branca em seus braços e pensou nos laços que um eventual cruzamento poderia proporcionar, prelibando cruzamentos outros. Não contava, contudo, com o fato de ser macho o animalzinho da jovem, frustrando-lhe as possibilidades de sedutoras insinuações de ordem felino-sexual.

Em outra de suas patéticas tentativas de lhe despertar a admiração, criou uma referência com o seu próprio nome em uma conhecida enciclopédia virtual. Achava que, ao se tornar um verbete, igualar-se-ia aos imortais. Assinava as mensagens e punha, abaixo do nome, o link para a tal enciclopédia, numa narcísica indicação autorremissiva. O processo humilhante que envolveu a sua exclusão revelou-se benéfico: despertara a solidariedade da jovem, e isso foi o bastante para a ideia de conhecê-la pessoalmente volver-se em obsessão.

Não resistindo mais às esquivas da moça, comprou uma passagem aérea e desembarcou, pronto para o amor, na terra da jovem. Trocara o conforto de sua fortaleza pela terra que lhe traria a sonhada paixão. Sua estada, contudo, não seria tão alegre quanto o nome da cidade.

Não foi difícil encontrar o local. Do sobrenome da jovem ao endereço, foi tudo muito rápido. Utilizando-se de um sofisticado programa de satélite, já havia até mapeado os arredores da residência da moça, usando marcadores apropriados, que lhe permitiam, astronauta virtual, cruzar o território nacional, abolindo, na tela de alta resolução, a enorme distância que os separava. Agora, era arrumar um pretexto convincente. A velha tática de esbarrar casualmente não funcionaria naquele caso, em que centenas de quilômetros marcavam a distância entre as duas residências.

Ainda no aeroporto, comprou bombons. Novinha, era provável que adorasse chocolates, sobretudo pelo fato de morar em uma cidade famosa por sua fabricação. Tolo, pensou, deveria ter trazido algo menos óbvio, que constituísse uma novidade. Sem problemas. A maior surpresa, deleitava-se, será a minha presença.

A chegada intempestiva ao endereço da família foi precedida de palpitações. No táxi que pegou no aeroporto, seu coração saltitava, feliz como o de um adolescente. Depois dela, nada de sexual e virtual lhe maculava o corpo ou a mente. Era quase um trovador. E prestes a encontrar sua senhora e declarar sua dor d'amor.

Chegando ao prédio, deparou-se com um problema impensável para o bardo em que se transformara, pior do que fosso ou dragões: porteiro eletrônico. Jamais, nos romances românticos que devorara ou nas cenas de vassalagem amorosa, havia um botão anônimo separando musa e menestrel. Era agora, ou nunca.

Tomado pela ousadia dos destemidos apaixonados, tocou. Uma voz feminina atendeu, fazendo-lhe o coração pular. Num diálogo que beirou o surrealismo, descobriu que não havia moça alguma. Como, se o sobrenome e o endereço coincidiam? Vira fotos, compartilhara segredos.

A suposta mãe, em determinado ponto da conversa, baixou o tom de voz e implorou-lhe que subisse. Foram os oito andares mais demorados de sua vida. Mas nada seria tão penoso quanto o que estava por (ou)vir.

Foi tudo muito rápido. Numa mistura de lágrimas e de soluços vindos da mãe — que ele não se furtou a consolar — a senhora contou tudo. Filho único. Reprimido pelo pai, coronel reformado. Homossexual enrustido, que se divertia / realizava criando identidades falsas na Internet. Nomes de pinturas ou de deusas. Fotos montadas. Uma vergonha, meu senhor. Se o pai descobrisse, Deus o livre, era capaz até de expulsá-lo de casa. Podia até acabar em tragédia. Se ele quisesse esperar, dizia ela, obrigaria o sem-vergonha a se desculpar pessoalmente.

Ele estava atordoado. O predador apaixonara-se por uma mulher inexistente, na melhor das hipóteses. Era isso. Ela morrera. Ele acabara de enviuvar de uma mulher que jamais conhecera. A cabeça não parava de rodar.

Bebeu até cair, e retornou à sua terra somente no dia seguinte. Segundo dizem, voltou com força total ao seu harém, que já vinha ressentido da indiferença dos últimos tempos. Quanto às novas aquisições, só as inclui no rol depois de muito conversar pelo telefone e comprovar pela webcam. Escaldou-se, como se diz no popular. A esposa, contudo, ainda estranha o murmúrio agitado, durante o sono, que o faz proferir, em delírio, um nome masculino.

 

 

 

 

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