edição 46 | março de
2014 3 minicontos ro druhens de frida
kahlo para diego rivera
Quando caí do
ônibus, um táxi me atropelou. No caminho do hospital, a ambulância
capotou. Rolei por areias em brasa, de meus bigodes nasceram serpentes.
Das sobrancelhas brotaram corvos. Minhas feridas os cactos
abraçaram.
Mas eu vou
mesmo é fritar meus ossos em tuas banhas derretendo o espanto que me faz
te amar.
nudeza
Despiu a pele
com ritos de gueixa. Desfez pregas, dessamassou rugas, notou manchas
feitas por lágrimas, buracos tecidos por despedidas. Pendurou a pele no
cabide e foi pro sereno lavar a alma.
regressão
Martelou o
dedão. O martelo caiu espatifando o blindex da mesa. A mesa virou
derrubando a água do vaso de lalique. O vaso derrubou as tulipas murchas
no tapete persa. Como um gato. Enrolado em si mesmo.
Chorou.
Não pelos
cacos de vidro, mas pelos cacos da vida que, caleidoscópio, se fazia em
miríades de saudade.
Da casa onde
o quadro na parede era a paisagem erma de quando aberta a janela. Onde o
vaso de flores era a lata velha, cortada a facão. Onde as flores eram
secas como o céu. Onde o tapete era terra batida, amalgamada com todas as
lágrimas. Enrolado em si mesmo. Como um gato. Chorou.
Por fim.
À
vida.
2 poemas, 1 miniconto sabina m moldura
O que me toma
me escapa
pés que se
afundam
mãos que
desatam
flores que
perfuram
tudo que me
machuca
transborda
Cegaria os
olhos se fosse pra sonhar mais fundo
Perderia o
equilíbrio e cairia em véus que desataria um corpo em dois
Seria eu o
corpo de um poema, as veias de uma pintura
e O Outro — a
causa.
Que não se
conta
Em pele a
quantidade de cicatrizes
Pelas flores
pisadas, as
mãos
solitárias e
pés perdidos.
Registro os
dias em olhos escurecidos
Tenho anotado
rostos à distância
Quão mais
distantes mais belos
Aflitos se
asseguram na sombra — a mesma que não revela
a última
frase do poema.
mancha
Não é de hoje
que desço as escadas atrás de água. Com tempestade ou não, o caminho faço
com pés conscientes. A noite cobre o sobrado — uma concha submersa.
Sorrio. Luís deitado no sofá, a sombra dura de seu corpo nu cobre a sala.
O vaso está no mesmo lugar, destruído. Sua mão ainda sangra nas flores no
chão. Meu corpo sede do seu, sinto-o, transpiro. É sempre difícil saber
quando é sede ou saudade. Afundamos. Sua pele no meu cetim se desfaz. E
quando nua fico é como se eu enfim desaparecesse. Já não sei o que é sonho
ou desejo. Distantes, não nos reconhecemos. E mesmo na luz, não sei o que
fica comigo, se é o corpo ou a rosa.
o que
fica
O gelo no
fundo do copo dança em círculos
e você não
bebe de vez
o uísque de
seu avô guardado por seu pai
nos
debruçamos em lamentos
o fim da
noite o fim do uísque
seu reflexo
no meu copo dizendo adeus
3 poemas silvana guimarães autorretrato
com colar de espinhos e colibri
carmem
madalena flor hermafrodita
mulher e
amásia de joão estanislau
pintor de
paredes vizinho de barraco
na favela da
ventosa belzonte mg
portador de
moléstia séria:
furor nos
testículos oh carma meu
carmencita
carmita carmamarga
madrasta de
seis sobrinhos aflitos
dos mamilos
apodrecidos
do
útero-deserto áspero
da alma
imutável hematoma
do
corpocarneviva carmim
desenganada
pelo médico do posto de saúde
abro os olhos
afasto borboletas e mariposas
yo soy frita:
o amor avis rara passou
sem remédio
que cure mi obsesión [ser el única]
só a passagem
de ida para o ceará: jericoacora
espero que la
marcha sea feliz y espero no volver
zoom
por baixo
de
esparsos fios
brancos
pequenas
rugas amargas
mágoas
disfarçadas
dores
mudas
discreta
flacidez
delicadas
estrias
intensas
indignações
palpita meu
coração de 1983
flamboyant
de novo
enflorece como há longos anos:
nódoa cor de
sangue desafia o azul sem nuvens
um naco de
delírio ronda a paisagem
instala o
passado na varanda e declara
é tempo de
paixão
folhas flores
um rumor um desvario:
a voz que
sussurrava
entre gemidos
e safadezas
2 poemas sonia viana *
nudez d'alma
revela essência
capturada
pelos sentidos
expõe
observador-observado
causa
espanto
causa
dor
apresenta
belezas
criativas
destrutivas
Frida Kahlo
transforma em arte
corpo
dilacerado
ganha
cor
fica
enfeitado
fica
encantado
invenção
que saudade
do homem que nunca tive
que saudade
do homem que inventei
gosto do seu
sorriso franco
dos seus
olhos brilhantes
da sua pele
hidratada
conheço cada
milímetro do seu corpo
a região
glútea é a que prefiro
será?
não
sei
seus lábios,
sua boca, seus dentes, seu pênis
seus dedos
grossos
suas mãos
ásperas quase lixa
tudo me
fascina e encanta
minha
invenção me faz sentir poderosa
não me sabia
capaz de tanta criação
às vezes meu
homem invenção se materializa
toca a
campainha e entra
acredito que
é verdade e vivo com toda intensidade
beijo-lhe a
boca com volúpia
seus braços
fortes me enlaçam
fico feliz
como criança que ganha brinquedo cobiçado
o ar que nos
envolve perfuma-se
ganha
consistência de sonho
tudo é
possível de acontecer
meu corpo
todo se agita
impossível me
conter
vibração
pura
escuto música
jamais composta
magia que
ganha compacidade
fantasia ou
realidade
poema suzana bandeira mana frida,
terráquea persistente
viu-se toda
nos braços desta vida
na mosca! tati skor Eu achava que
era um contador de histórias. Verdade, até já tinha sido um bem sucedido
redator de causos e recordava
exatamente isso, com saudade, espantando as moscas que me rodeavam. Uma
delas pousou no meu ouvido, me dei um tapa, mas a mosca, esperta,
esquivou-se. Ainda meio tonto, meio zumbi, eu ouvi nitidamente: "Ôôô,
cara, o que você tem contra nós?". Aí, de vez, a zoeira me dominou. Culpei
aquela meia garrafa de cachaça capixaba que vinha entornando gole-a-gole
há mais de hora naquele bar imundo. Mas não era isso, não. A mosca voltou,
rondou e zumbiu: "Somos todas normais, por que não para com isso? Temos
todo o direito de avoejar em paz". Já ia ela sumindo, quando consegui
caçá-la com a mão; joguei-a ao solo com violência, ela tonteou; peguei-a
então pelas patas, aproximei-a da minha vista embaçada e respondi: "Só
falo com moscas olhos nos olhos". Ela quieta. Impaciente, levantei a voz:
"Não me entende, sua porra de mosca de merda?". Ela quieta. Irritado,
berrei: "Tá pensando que é Cinderela, sua coisa nojenta?". Arranquei suas
asas e joguei-a no chão. Abri a braguilha, tirei o pau pra fora e mijei
nela. Me agarraram e me atiraram na rua.
Ah!
Mas que foi na mosca, isso foi.
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