edição 4 | março de 2006
traição

 

azáfama 
adelaide do julinho

assim   sim   ai   mais   ah   ah   ah   a-hã  
hmmm   aí   oh   oh   uh   tudo  joão carlos
(o nome dele era luiz fernando)

 

o apartamento
adriana oliveira

Coloquei o anúncio no jornal e fiquei esperando compradores. O espaço era bom, com ótima localização, garagem e churrasqueira. Não faltariam interessados. O corretor me garantiu que estaria vendido antes de eu me tornar a Sra. Otávio Menabarreto. Eu pouco me importava, queria o dinheiro, mas não tinha pressa. Com o casamento, meu futuro estaria garantido.

 

Cíntia adorou a decoração. Simpatizei de cara com ela. Estava indo morar com o namorado e queria um lugar especial para começar a vida a dois. Garanti a ela que este apartamento tinha me trazido sorte. De solteira convicta passei à noiva com casamento marcado para dali a três meses.  

 

Ela tinha um apartamento menor para fazer negócio. Como eu não queria o imóvel, combinamos que ela o venderia primeiro. Estava tudo acertado.

 

Cíntia voltou mais tarde com o namorado. Como era mesmo o nome dele?

 

- Marcelo! Essa é a Lú.

 

Marcelo. Eu jamais lembraria. Para mim, ele tinha sido apenas uma noite de sexo. Não que tenha sido ruim, pelo contrário, tinha sido ótimo. Eu que tenho péssima memória para nomes.

 

- Amor. Não fica aí parado. Vem conhecer o quarto.

 

Foi ai que nossos olhos se encontraram. Ele já conhecia o quarto, a cama, o sofá da sala, a mesa da cozinha. Marcelo conhecia bem todos os cantos da casa. Que situação!      

 

- A Lú vai casar, por isso está vendendo o ap.  

 

Quem será o corno?  pensou  Marcelo.  Não dá para negar que ela é muito gostosa, mas casar? Tá louco. Ainda bem que eu encontrei a Cíntia. Ela só transou comigo e com o primeiro namorado. Como ele morreu em um acidente de carro, não tem um homem no mundo, vivo, que tenha comido a minha mulher. Eu tenho mesmo muita sorte!

 

- Parabéns.

 

Marcelo disse isso olhando para baixo.

   

- Eles namoram há pouco mais de um ano e já vão casar. Tem homem que é decidido. Agora outros Lú, ficam enrolando um tempão. Oito anos, no meu caso.           

 

Oito anos? Nossa, imagina quantas mulheres ele não comeu nesse período, eu inclusive. Coitada da Cintia!

 

- Acho que está tocando o interfone, disse Marcelo, com um certo alívio.   

 

- Deve ser o Otávio, meu noivo, já volto.

 

Então, vou conhecer o Otário, pensou Marcelo.  

 

- Otávio este é o Marcelo.

 

Nunca pensei em ter que apresentar esses dois. 

 

- Cíntia, vem aqui conhecer o meu noivo. 

 

Cíntia entra na sala, carregando o meu vaso preferido.

 

- Adorei esse vaso.

 

Ao dar de cara com Otávio, Cíntia deixa o vaso cair no chão. Enquanto eu limpo os cacos, com a ajuda de Marcelo, escuto a conversa dos dois.

 

- Oi, Cíntia.

 

- Oi, Otávio.

 

- Tudo bem com você?

 

- Tudo.

 

- Tá querendo se mudar?

 

- Pois é. Por enquanto, estou só olhando...

- Vocë continua morando ali na Azenha? No mesmo apartamento?

 

 

quinta-feira à tarde, depois do cinema 
ana de celorico

Ele tombou para o lado, arfando e deixando que ela respirasse. Os dois olhavam o teto de olhos bem abertos, por que diabos sempre se fica olhando o teto de olhos bem abertos quando se acaba de trepar? Não lhe passava nada pela cabeça, nem a ela, apenas olhava o teto falso do motel, enorme mandala colorida em plástico de trinta cores diferentes, simulando uma flor horrível, uma clarabóia falsa, não passava de uma espécie de lustre muito feio. Não era o céu que estava por trás, eram lâmpadas apagadas. A pouca luz vinha de trás do grande vidro fosco que fazia a vez de parede do banheiro, onde alguém havia esculpido com ácido uma jovem senhora de formas rotundas a despejar no chão a água de uma ânfora, para que alguns, talvez dois ou três cachorros bebessem. O resto do quarto eram veludos cor de vinho e outras escuridões, e uma canção roufenha com trinta anos de idade, que embalava amantes há trinta anos, saía de algum canto escondido por debaixo uma camada de carpete grosso.

 

Ele se virou sobre o ombro, voltando-se para ela, olhou-a nos olhos, a expressão nenhuma do rosto, o nariz apontando para o teto, o pescoço fino, os seios grandes, a barriga - a mão esquerda cutucava alguma coisa perto do umbigo -, os pêlos recém-aparados, as pernas grossas meio abertas, um pé coberto por uma dobra do lençol. Ele passou a mão sobre um dos seios, brincou com o bico, apertou o volume com cuidado e carinho, olhou-a de novo nos olhos, sorriu e, por falta de mais o que dizer, perguntou se ela havia gostado.

 

Ela não respondeu nada, continuou olhando o teto, e daquele silêncio não se podia tirar se ela tinha gostado, se não tinha, se estava pensado como responder, tendo ou não gostado, e continuou muda de olhos abertos mortos. Ele sorriu e insistiu no erro, perguntou de novo, e então, gostou? Ela tomou um fôlego como se fosse dizer uma frase muito longa, expirou todo o ar, e continuou calada. Seus olhos agora diziam que ela poderia falar a qualquer instante, ou que não falaria nunca mais, ou que diria que o amava, ou que perguntaria as horas, e o que se ouvia era o rugido da cidade lá fora, abafado pelas cortinas grossas escuras fechadas.

 

Ela se virou de costas para ele e, sem tomar fôlego, disse você seguiu o manual. O quê, ele perguntou. Seguiu o manual, ela continuou. Me beijou, me chupou os peitos, a buceta, e me comeu. Seguiu o manual, repetiu.

 

Ele jurou para si próprio que a mataria, mas jurou que faria isso muito devagar, e só quando ele lhe fizesse muita falta, alguns anos depois.

 

 

 

 

o pulo do gato 
antonia pellegrino

Estava em casa, exausta depois de um dia dedicado a arrumar, produzir prateleiras, fazer um frete, mudar coisas de lugar - saí a exatamente um mês da casa da minha mãe -, e hoje, a casa ganhou aspecto de casa. Enfim, estava em casa, exausta e tentando me concentrar, tinha trabalho a fazer e francês para estudar. Menezes, o gato, estava posicionado logo abaixo da minha cadeira, onde mora um bode morto, quer dizer, seu couro, muito apreciado pelo gato. Distraída, eu o chutei inúmeras vezes, arrancando-o de seu sono pacífico.
 
Cansado dos maus tratos, Menezes resolveu - apesar do frio e da chuva que se anunciavam e foram confirmados hoje - sair do bodinho e ir para a janela. Foi quando viu uma gata selvagem pelo jardim. Rapaz, o bicho enlouqueceu! Gemia, as pupilas dilataram, andava obssessivamente de um lado para o outro, o pêlo eriçado, pulava até o parapeito do prédio e voltava para casa. Resolvi ver quem era tal gatinha. Achei que a conhecia mas pensei: se está na rua, deve ter fugido. Então, desci, disposta a averiguar o terreno para que Menezes viesse também. Mas o desespero dele era tamanho, que não houve tempo, só um barulho e o rastro branco. Sim, o pacato Menezes se jogou da janela do segundo andar. Heróico, o gato pulou em busca de seu amor. Burro, caiu do lado errado, dentro da grade do apartamento térreo de fundos.  

A vizinha, que tem duas gatas, eventuais paqueras de Menezes, ficou tensa com o pulo do gato. Eu gostei da passionalidade. Eu não gostei de vê-lo cair.

 

 

compartilhar:

 
 
temas | escritoras | ex-suicidas | convidadas | notícias | créditos | elos | >>>