edição 50 | abril de 2016
sufragete alcoviteira a primeira na fila do talco rendas & vidrilhos dispostos na beira da banheira estratagemas quais seriam? um pé direito, sais de banho a posição do corpo no espaço oval e os dedos dedilhando em movimentos de orquestra, allegro andante sem pausas na pauta, lembrava o banho tcheco no bidê levantou-se anestesiada, algum formigamento nas partes baixas e notou algo quente escorrendo entre as pernas com aparência de leite derramado
Ao invés de pousar minha mão sobre algum livro sagrado e responder sim ao "jura que a vida é isso, somente isso, nada mais do que isso?", gastei tudo que tinha com patês em bisnaga. Eu chupava um atrás do outro como se fossem pauzinhos sujos de garotos que não sofreriam por mais nada que não fosse acne pustulosa. Um deles cresceu e perdeu o olho esquerdo em uma briga, ou foi só o que ele me contou enquanto me prensava na parede e avançava a mão cascuda por debaixo da minha blusa. Tem essa necessidade besta de ter que falar alguma coisa o tempo todo e tudo bem, a gente saca algo do bolso ou daquelas dobras na pele que "merda, isso não estava aqui antes". O fato é que você só precisa se livrar daquele pequeno aro de metal e a bisnaga já começa a jorrar. Pode usar até uma tesoura torta de cortar unha, aja como se fosse uma autópsia ilegal realizada às pressas em local clandestino, tudo em nome de alguma emoção que honramos forjar diariamente. Curiosamente ele não falou nada sobre a aspereza das mãos e eu não queria correr o risco de ouvir mais uma desgraça ou constatar que era só relapso mesmo. E, sei lá, propiciava uma sensação estranha que não era de todo ruim nem pior do que outras que acompanharam promessas de amor eterno e um cineminha às seis. O próximo passo você pode chamar de a obra de sua vida. Todos aqueles saquinhos ainda com resquícios de amido, ovo em pó, maltodextrina, estabilizante polifosfato de sódio e lembranças capturadas por uma Kodak Instamatic Xereta podem ser empilhados, alinhados, entrelaçados, rasgados, triturados e ninguém vai ousar dizer que não é obra de um gênio incompreendido. Se você não quiser posteridade, simplesmente jogue tudo no lixo, o que também vai gerar hipóteses hilárias sobre o que aconteceu. Quando ele dobrou a esquina tudo que ficou foi um cheiro estranho, que nem cheiro de solidão quando a gente abre a geladeira vazia. O garoto da loja de conveniência perguntou se eu ia levar tudo aquilo mesmo. Da pequena caixa de som vinha algo que soava como The Carpenters. Deixei que ele ficasse com o troco. Até que foi uma bela barganha. Não creio que demônio algum fizesse oferta melhor.
a incomensurável montanha de Inês, que é morta
Eis assomada no cume do que acumulei A nuvem causando-me a grande sombra É de sol a sol que subo carregando o peso Dos meus erros de bicho tão ignorante
E não creias fosse possível descer E não creias fosse plausível chorar Nuvem infinita, montanha rumo ao nada Nem do cilício te lembres, as costas de sal e lanho
Plantei, plantaste, ninguém sabe que deserto Mas é sempre tarde para não lhe dar prosseguimento Enquanto os cabelos cozinham na brisa quente E só algum sonho nos tira a areia dos olhos.
extrema-unção
Que fosse limpo e não foi Que fosse justo e jamais Que fosse certo e nem me ouviu Que fosse belo e tudo matou
Que fosse plano e se apresentasse Pacífico por vidraças em gotas A chuva leve e oceânica Com o cheiro do sal do mar
Que fosse morte calma e velha Mas não Foi confusão E guerra.
pegadas no infinito
Um deus brincalhão se ri (Formigas desesperadas correm a esmo e trombam)
Olha-nos por um brinquedo de fazer ilusões: Qualquer impressão de movimento é falsa.
*
Sem caixão. Quero beijar a terra enquanto ela me come.
*
Deixou por escrito: me cremem. Não vou a enterros, nem morto.
*
Não quero rosas no caixão. Eram sempre rosas as flores que seu pai trazia após me bater.
Qualquer outra coisa é só dizer. E desculpe-me por deixar pra última hora. Gracias por tudo.
Só consegui num boteco lá do outro lado da rua, descendo umas duas quadras. E voltei correndo, pra chegar com a tulipa ainda branquinha de tão gelada. Fui pedindo licença até ficar do teu lado. Pousei a tulipa e peguei o chaveiro na bolsa para abrir a garrafa com a chave. Não precisa fazer força, é uma questão de jeito. Você sabe, você me ensinou, não é? Peguei a garrafa pelo gargalo, como você recomenda, inclinei um pouco o copo e fui despejando a cerveja. Fez direitinho os dois dedos de colarinho, do jeito que você gosta. Então pousei a tulipa e a garrafa bem ao alcance da tua mão, dentro do caixão.
a carranca me rindo eu em queda livre desde às cinco da tarde língua solta que soca o asfalto vendo a tragédia pronta pra despacho um bicho baixo se esgueirando um colchão largado na calçada vão queimar a vida! vão queimar a vida! deceparam os pés aninhados atearam fogo — os amantes de rua mutilados dançam sobre a brasa.
Para um amor que se derrama
Eles se amam muito distantes um do outro E, ainda assim, se tocam por palavras
Para um amor que se derrama II
Sol de meio-dia Era fogo da primavera Gelada E por dentro Floresciam as cerejeiras Tão orientais Quanto a paz construída a dois.
No confronto íntimo Nem mortos, nem feridos Só risos frouxos Pernas tronchas Mãos geladas a acordar o corpo E uma taça que se derramava Mas nunca se esvaziava.
Sem métrica Mas com ritmo Sem seriedade Mas com graça Sem nós de marinheiro Mas com enroscar de almas.
oficina
O meu namorado Joe — que é como ele gosta de ser chamado — Está anos luz à minha frente Ele me diz: "Você é estúpida como uma toupeira!" Ele me diz: "Fica de quatro pra mim e me dá esse rabo agora!" Largo o que estou fazendo, me posiciono feito a potranca do Tio Fred E espero bem paciente que o Joe acabe o serviço Coisa que eu sei fazer bem, pois fui treinada para isso Todas as vezes que nosso pai chega emputecido em casa Tanto eu quanto minhas irmãs Largamos o que estamos fazendo E ficamos prontas para servir nosso pai E sem essa de me fazer de distraída mascando feno Como se não fosse comigo Isso o Tio Fred aguenta, mas o meu namorado Joe detesta Tenho que urrar e rebolar até que ele dê o serviço por encerrado Isso acontece quase sempre Tem vezes, estamos no carro, simplesmente ouvindo música Joe arreia as calças, enfia os dedos pelos meus cabelos E me agarra bem na nuca Então me empurra com tudo e me faz cair de boca Mais ou menos o que fazem meus primos com as garotas Na piscina do clube, entre risos e muita diversão Afundam as cabeças das garotas Até elas quase perderem o fôlego Joe me diz: "Engole tudo! É assim que as boas garotas devem fazer!" E ali mesmo, com a cabeça presa entre suas pernas Trato de fazer a coisa direitinho Melhor do que qualquer garota Nem reclamo, nem me engasgo, nem nada Saio triunfante com o rosto em brasa e os lábios vermelhos Como quem se salvou de um afogamento Nenhuma gota escorre pras pernas de Joe Nenhuma baba na minha blusa "Engole tudo e deixa de choro!" Esse é um conselho que eu escuto desde pequena "Seja uma boa garota, sua merdinha!" Sempre foi bem comum ouvir esse tipo de coisa
Penso que é uma espécie de treinamento E Joe com certeza teve também o seu treinamento — de um modo diferente, claro... Ele segura minha cabeça com os dedos bem abertos Como se fosse uma bola de boliche Depois empurra e empurra A ponto de eu quase sufocar
O pai de Joe deve ter levado ele muitas vezes ao boliche E ensinado a agarrar com a mão bem aberta Uma bola pesada como uma cabeça de mulher E deve ter ensinado pra ele o jeito certo de lançar Pra ela bater com força no chão e sair rolando pela pista Até derrubar todos os pinos Ai do Joe se ele não tivesse jeito pra coisa O pai dele teria ficado decepcionado Os caras do boliche iam comentar e rir às escondidas Isso ia ser constrangedor para o pai do Joe Com certeza ele morreria de vergonha E quebraria o Joe de pau até ele se endireitar Mas Joe leva jeito pra coisa Ele me diz: "Engole tudo, garota!" E empurra minha cabeça como quem agarra uma bola de boliche
Joe está anos luz à minha frente Assim como todos os caras que frequentam o clube Assim como todos os caras do boliche Para isso eles todos foram treinados Eu fui treinada para engolir tudo
assédio
Matou a moça tantas vezes Não sei como ela ainda conseguiu Escapar com vida
carta aos surdos para uso dos que ouvem
O rabo de foguete voltou a transitar pelos céus Há quem diga que sua carcaça é da cor preferida daquela atriz de cinema Outros juram que tem a mesma cor do focinho de um cão de rua Ouvimos um barulho, mas não sabemos bem de onde veio Parece que começou naquele restaurante em Portugal Enquanto os amigos escolhiam o que pedir para o jantar A moça agarrou a faca mais pontuda e desferiu golpes contra os próprios olhos Fizeram um curativo improvisado com o guardanapo de seda E todos saíram para dançar Com os olhos cobertos, ela foi a que mais se divertiu Depois teve aquele outro episódio Televisionado em horário nobre Mostrando todas as etapas de como se prepara um cordeiro Escolher o mais tenro que ainda esteja amamentando Separá-lo da mãe e depois é só matar, escalpelar, cozinhar e saborear Os que comiam carne ficaram escandalizados Como alguém poderia ser tão violento assim! Marcharam em passeata até a casa do apresentador Bateram em sua porta e ameaçaram arrombá-la Esse assunto foi motivo de muitas conversas Durante o almoço e o jantar Enquanto degustavam um bife suculento Não se falava em outra coisa — Como alguém pode ser tão violento assim! — Um assassino como esse não pode transitar entre as pessoas normais! Pessoas normais com todos os dentes na boca Pessoas normais com todos os dedos dos pés e das mãos Pessoas normais com duas pernas e dois braços Pessoas normais de acordo com o que a natureza diz Pelo jeito que esse aí pensa, não parece uma pessoa normal Aquele bêbado com chapéu-coco jamais será normal Para se construir um país decente Em que as pessoas vivam em paz É urgente assassinar esses anormais Esses que querem avacalhar com a ordem Esses que querem adulterar o que a natureza determinou Esses que querem tirar do macho o poder de conduzir a fêmea Tudo começou a ficar assim com a chegada dos anormais Antes havia silêncio e a paz reinava em todas as ruas Os bois eram mortos num abatedouro afastado da cidade A carne era acondicionada em bandejas de isopor Os cortes bem arrumados nas prateleiras dos supermercados Depois que as vísceras do bicho foram exibidas Era urgente encontrar o assassino e quem ousasse defendê-lo Os açougueiros mais antigos da cidade foram convocados em reunião Só eles eram capazes de assassinar quem mostrasse o boi sendo morto Afinal era uma prática secreta e destinada a alguns escolhidos Com as mãos sujas de sangue protocolaram o tratado de paz Quando o martelo erguido batesse sobre a mesa Começariam as execuções
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