edição 50 | abril de 2016
entoaria grandes versos se tivesse algum diria grandes palavras movediças se meu peito fosse algum pântano ensinaria ao meu filho sobre amores se soubesse o caminho certo
ah, nessa madrugada muitas flores morrerão meu peito murchará, fino botão de pétala em pétala chorará dores tal lágrimas de orvalho nesse tempo angustiado onde está a sabedoria das coisas ínfimas e planas?
sinto o alvorecer calmo e ele está fora de mim estarei só mais uma vez diante de tudo prisioneira da falta de lógica do ansiar do desequilíbrio das linhas ferozes e do tempo e eu anseio mais que todos
o verbo é ancião de passagem e eu perdi suas verdades.
degelo
eu já era uma mocinha fazia xixi na cama
o tal cheiro d'amoníaco me matava de vergonha
mas fechar a torneirinha na melhor hora do sonho
como?
(eu tinha vontade líquida e alma muito tristonha)
depois
quis arrancar teus olhos (ciúmes de outras mulheres) e quando tudo acabou disseste-me — foste a única
palavras não me consolam
ajuste
o silêncio tece o verso então eu te peço não fales deixa o galo acordar a aurora guardar as pantufas o relógio acertar o meu tempo
condições
após o rapto o pedido de resgate
a lua só voltará se o sol baixar o facho
pela raiz
cortou-a e às árvores que plantou (ciprestes carvalhos flamboyants) com machadadas e ódio
fez da questão pessoal um crime ecológico
secura
Chorar, sim por tudo por seu homem sem trabalho pelos tapas da mão do seu homem pelos filhos que já foram comer mundo e o pequeno que ficou a uma (parece) velha de 38 anos
Chorar, sim pelo leite derramado: haverá uma boca sem ele a noite inteira e ela está seca há muito tempo toda
o rogo de maria do socorro na santa casa de lisboa
Subam a Travessa dos Frades. É o último beco à esquerda. Um prédio amarelo desbotado. Terceiro andar, direito. Deem esses oitocentos euros a uma pernambucana chamada Edivânia. No puteiro ela atende por Camila.
eu, decepada
Esmaguei a piedade de mim mesma. Com as mãos. Sigo para onde quero céu e inferno com a vontade dos olhos. Onde me arrancaram todos os pés não existem caminhos: mordi cada um com a fúria dos meus dentes engoli todos quase sem mastigar hoje eles estão em todas as privadas do mundo. Vou a toda parte. Dominei a arte de ser mutilada.
Estivemos Os dois dentro Do mesmo Momento
Ruminando Mágoas Mastigando O tempo
E Bem debaixo Dos pés — Naquilo Que um dia Chamamos chão —
Escancarando A ferida, Abriu-se A boca faminta Do alçapão
Dos três irmãos, o mais franzino e feio era, de longe, o mais interessante. Mas havia o parrudo e o moreno tatuado. Eram três e a dúvida, embora não existissem outras opções senão aquelas. Todas na mesma casa. Senhorita T. morava um quarteirão abaixo, mas vivia saltitando por lá, flertando com os três. Um dia, sabia muito bem, teria de resolver. E botou um ponto final nas expectativas casando-se com o mais velho, o tatuado. Ele era bom, apesar da falta de modos. Os outros irmãos também seguiram suas vidas, o franzino virou professor de faculdade e trocou as mulheres pelos livros. O do meio virou médico e casou-se com uma enfermeira bonitinha. O marido da senhora T. era um delegado competente, mas acostumou-se a fazer de sua casa uma extensão da delegacia. Via coisa errada em todos os cantos, até que um dia teve um piripaque e morreu. A senhora T., nova ainda, começou a saltitar no consultório médico do cunhado. Casaram-se um ano depois da morte do primeiro irmão e tão logo a enfermeira bonitinha concordou com o divórcio e a divisão de bens. O marido da senhora T. era bom, apesar da falta de bens. Quando o segundo marido da senhora T. veio a óbito, ela começou a lamentar suas escolhas. Era azar demais para uma vida. Sem marido, sem filhos, sem riqueza. Restara-lhe o terceiro irmão: franzino e feio, ainda interessante. Encontrou-o na faculdade, durante o intervalo das aulas. Flertaram, saíram algumas vezes, a senhora T. engravidou e criou sozinha o menininho franzino e inteligente. O terceiro irmão não acreditava em casamento, ou melhor, deixara de acreditar quando se transformara em terceira opção. A senhora T. se livrou do pouco que tinha e foi embora, levando consigo o menininho. Anos depois, surpreendentemente, a senhora T. retornou e instalou-se na antiga casa dos três irmãos, ao lado do filho. Ela costuma se gabar de ser viúva de três homens. E bota pra correr toda moça saltitante. O filho é uma joia, inteligente demais, apesar da falta de músculos.
lilith
Como uma jiboia a escuridão devora. Começa pelos pés engole pedaços alvos.
De dentro da boca de lobo a Lua é vermelha recém saída do ventre. Esculpida pelas presas famintas de feras há muito extintas.
Mãos inclementes forjam o passado. Pavimentada a estrada só resta seguir o Destino. Junta os cacos: o tino da resposta, a tormenta chegou pra comer os filhos.
Recita os poemas que ninguém mais lê, constrói uma cabana de livros queimados, mora pra sempre em campos errados.
Arranca os bilhetes dos meus dedos frios, mastiga os dizeres da minha boca morta. Exorciza as memórias dos tempos de merda.
Imagina o fim: numa praça banhada em carmim.
da sacada
Olha que beleza, Olinda! Mataram mais um presidente. Mas esse já não tava morto, Derci? Não. Esse era de amanhã, nem nascido tava ainda. Fizeram agora de manhã, um juiz chave de cadeia puxou o gatilho. Não quis nem saber quem tava olhando. Jogou o presunto lá, à vista, como se fosse um frango sem recheio, só os ossos. Faz uma semana já, que Hilda não come nada, não levam um prato pra ela, coitada — falam num sussurro confidente. É segredo, mas tá namorando um faquir. Ele também! Magro que dá dó.
A lua tá ficando cheia? Tomara que teja, porque assim vai dar pra ver melhor, né, mãe? Olha a cara dela, gorduchinha. Tá rindo. Nunca mais tomo ducha, só banheiro. Assim não lavo a máscara e não sujo a cara. Não quero ir brincar. O Pedro tem sete e o amigo dele tem seis, eu vou atrapalhar. Não vai, menino! Vai lá com seu irmão. O Pedro sempre vai ser mais velho que eu? Assim não quero. No meu aniversário quero ser mais velho que o Pedro. Tem essas coisas de monstro que me dão sonho. É, mas às vezes quando a mente vai pro inferno, daí sai um sambinha, sexta-feira. É bom, mas tem que cair o salário.
Não vejo diferença entre samba e pagode. É tudo samba, menina. Eu pego é uma tabelinha de acordes e coloco tudo numa escada. Mãe, meu amigo ofereceu pipoca, pode comer? Pode, pode dar a batata, é amizade garantida. Quem garante? Você, é claro. Tem isqueiro? Não te acompanho nesse cigarro. Nunca fumei na vida, mas acho tão bonito. Olha que beleza, Olinda! As brasas da revolução acesas. Não via desde meu tempo de menina. Mas é que aqui é Zona Sul, Derci. Essa revolução é outra.
acomodar
acomodá-lo de bruços sobre o joelhos e com jatos mornos d'água lavar com cuidado suas dobras
com as mãos em concha guardar as orelhas e os olhos do excesso de água e da espuma do sabão
secá-lo untá-lo com talcos e óleos vesti-lo alimentá-lo
ignorar o leite derramado a vida íntima em pausa em prol do seu desabrochar
enlevar-se diante do seu sono do primeiro passo do primeiro dente
e esperar calmamente que ele ignore seus sonhos e despedace seu coração
reverência
um enfisema e um caramelo no bolso o último que pediu muito respeito pelo inventor da escova de dentes
às vezes a morte torna grande pequenas coisas da vida
o amor
sinto raiva mesmo é do amor ajoelhado nos ladrilhos do banheiro em flagrante felação nem para exigir troca o amor
entre os dedos do amor debaixo de suas unhas há sangue seco
o amor goza até com casa de cartas com bilhete de loteria não premiado
o amor, esse puto esgotou seu último pedido a minúscula nascente que a ausência de convicção havia plantado em meu peito
ode ao príncipe roderick
apresse-se em descobrir não há Odisseu átomos hexaedros tudo que temos é desejos, prazer e dor
oh, príncipe roderick sou a mulher do norte a beleza é um atributo difícil mas nada me impediria de querer-te
ouça meu último pedido seja breve em ver-me corra comigo pelas ruas ignore o rosto da cidade grotescamente maquiado pelas luzes de natal
sentados sobre o concreto dos bancos de praça envoltos por nossa névoa sensual estaremos completamente alheios ao toque frio sob as nádegas ou mesmo ao mundo e seu hálito do mal
há olhos escuros em meu encalço famintos me devoram no afã de esvaziar o desejo
ignoram que o desejo é como as ervas daninhas: nunca desistem de renascer depois de arrancadas
decerto não estou falando de amor mas pode um abraço fundir almas? ouça-me bem príncipe se não vier deixará um campo devastado dentro de mim
dança da chuva
arrancar os dedos lenhosos de todos os meus pés descalços fincados sobre o solo raízes no cotidiano dor
do outro lado transmutar-me pedra mínimo seixo 1, 2, 3, 4, 5 voltar
subir a montanha do quênia ou o grand canyon sutil quase infantil sussurrar ao céu o corte na mão o custo da alma esperar não é qualquer dor que traz a chuva
aquela dança
quando veio trouxe contigo um bosque, uma estrela alguns países, um cemitério e uma sensualidade consciente e oculta da qual não pude fugir te tirei para dançar e você me respondeu daquele seu jeito coquete "tivesse chegado uns meses antes mas você chegou tarde já tenho namorada"
aquela dança arrancou todos os meus pés apertou meu coração contra a parede espremido assim está ele até hoje quer dizer às vezes infla que é quando escrevo poesia
Cadeiras de rodas boiam na baía de Guanabara. Não sabia que quando se faz noventa anos a gente perde os pés. Queria escrever outra biografia: ser aquela mulher que foi campeã de natação. Aquela que aos oitenta ainda atravessa toda a linha do horizonte em Ipanema a nado. Existe essa mulher, não existe? Lembro de uma reportagem. Tive inveja. Tinha pernas melhores que as minhas. Se lhe cortassem os pés ainda andaria. Ainda andarilha. Ela anda no mar. Anda na linha. Na linha do horizonte. Minha cadeira de rodas passaria boiando a lhe socorrer. Enquanto meu corpo a observaria. Do fundo. Kelle Wesser. Já disse que nasci no dia em que meu navio atracou nesta cidade. Sou carioca. Guilherme me batizou. Sua santa porra me batizou carioca. Nem que eu caminhasse até o Leblon. Ainda existe essa mulher, não existe? Todas as ângelas, pensei um dia, são anjos. Queria escrever outra biografia: ser aquela mulher que foi arrancada do apartamento pelos cabelos. Escadaria abaixo pelos cabelos. No primeiro andar minha cadeira de rodas a esperaria. Ainda que lhe cortassem os pés ela cantaria. Loucura é loucura. Cadeiras de rodas congestionando toda a orla do Leblon. Ângelas de pernas de fora. Pernas lindas. Sem pés. De olhos fechados a linha do horizonte é escura. Você poderia dizer imaginação. Talvez. Se eu tivesse. Acabei um romance agora. Igual a meus outros 397, 584, 1. Mulher jovem. Homem exótico. País distante. Love. Felizes para sempre. Acabei um romance agora. Cadeiras de rodas boiam na baía de Guanabara. Fazem a travessia para Niterói. Linha regular. Mulheres jovens sem pés. Ainda andam. Ainda andarilham. Andorinhas na linha. Do telégrafo.
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