edição 50 | abril de 2016
o leite derramado | último pedido | onde me arrancaram todos os pés

 

palavras

larissa marques

 

 

entoaria grandes versos se tivesse algum

diria grandes palavras movediças

se meu peito fosse algum pântano

ensinaria ao meu filho sobre amores

se soubesse o caminho certo

 

ah, nessa madrugada muitas flores morrerão

meu peito murchará, fino botão

de pétala em pétala chorará dores

tal lágrimas de orvalho nesse tempo angustiado

onde está a sabedoria das coisas ínfimas e planas?

 

sinto o alvorecer calmo e ele está fora de mim

estarei só mais uma vez diante de tudo

prisioneira da falta de lógica do ansiar

do desequilíbrio das linhas ferozes e do tempo

e eu anseio mais que todos

 

o verbo é ancião de passagem

e eu perdi suas verdades.

 

 

 


©dara scully

 

 

 

5 poemas

líria porto

 

 

degelo

 

 

eu já era uma mocinha

fazia xixi na cama

 

o tal cheiro d'amoníaco

me matava de vergonha

 

mas fechar a torneirinha

na melhor hora do sonho

 

como?

 

(eu tinha vontade líquida

e alma muito tristonha)

 

 

 

 

depois

 

 

quis arrancar teus olhos

(ciúmes de outras mulheres)

e quando tudo acabou

disseste-me — foste a única

 

palavras não me consolam

 

 

 

 

ajuste

 

 

o silêncio tece o verso

então eu te peço

não fales

deixa o galo acordar

a aurora guardar as pantufas

o relógio acertar o meu tempo

 

 

 

 

condições

 

 

após o rapto

o pedido de resgate

 

a lua só voltará

se o sol baixar o facho

 

 

 

 

pela raiz

 

 

cortou-a

e às árvores que plantou

(ciprestes carvalhos flamboyants)

com machadadas

e ódio

 

fez da questão pessoal

um crime ecológico

 

 

 

 

 

 

3 poemas

mafalda mautner

 

 

secura

 

 

Chorar, sim

por tudo

por seu homem sem trabalho

pelos tapas da mão do seu homem

pelos filhos que já foram

comer mundo

e o pequeno que ficou

a uma (parece) velha de 38 anos

 

Chorar, sim

pelo leite derramado:

haverá uma boca sem ele

a noite inteira

e ela está seca há muito tempo

toda

 

 

 

 

o rogo de maria do socorro na santa casa de lisboa

 

 

Subam a Travessa dos Frades. É o último beco à esquerda. Um prédio amarelo desbotado. Terceiro andar, direito. Deem esses oitocentos euros a uma pernambucana chamada Edivânia. No puteiro ela atende por Camila.

 

 

 

 

eu, decepada

 

 

Esmaguei a piedade de mim mesma. Com as mãos.

Sigo para onde quero

céu e inferno

com a vontade dos olhos.

Onde me arrancaram todos os pés

não existem caminhos:

mordi cada um

com a fúria dos meus dentes

engoli todos quase sem mastigar

hoje eles estão

em todas as privadas

do mundo.

Vou a toda parte. Dominei a arte

de ser mutilada.

 

 

 

 

 

 

1 poema

maria josé de dirceu

 

 

Estivemos

Os dois dentro

Do mesmo

Momento

 

Ruminando

Mágoas

Mastigando

O tempo

 

E

Bem debaixo

Dos pés

— Naquilo

Que um dia

Chamamos

chão —

 

Escancarando

A ferida,

Abriu-se

A boca faminta

Do alçapão

 

 

 

 

 

 

triplicata

mariza lourenço

 

 

Dos três irmãos, o mais franzino e feio era, de longe, o mais interessante. Mas havia o parrudo e o moreno tatuado. Eram três e a dúvida, embora não existissem outras opções senão aquelas. Todas na mesma casa. Senhorita T. morava um quarteirão abaixo, mas vivia saltitando por lá, flertando com os três. Um dia, sabia muito bem, teria de resolver. E botou um ponto final nas expectativas casando-se com o mais velho, o tatuado. Ele era bom, apesar da falta de modos. Os outros irmãos também seguiram suas vidas, o franzino virou professor de faculdade e trocou as mulheres pelos livros. O do meio virou médico e casou-se com uma enfermeira bonitinha.  O marido da senhora T. era um delegado competente, mas acostumou-se a fazer de sua casa uma extensão da delegacia. Via coisa errada em todos os cantos, até que um dia teve um piripaque e morreu. A senhora T., nova ainda, começou a saltitar no consultório médico do cunhado. Casaram-se um ano depois da morte do primeiro irmão e tão logo a enfermeira bonitinha concordou com o divórcio e a divisão de bens. O marido da senhora T. era bom, apesar da falta de bens. Quando o segundo marido da senhora T. veio a óbito, ela começou a lamentar suas escolhas. Era azar demais para uma vida. Sem marido, sem filhos, sem riqueza. Restara-lhe o terceiro irmão: franzino e feio, ainda interessante.  Encontrou-o na faculdade, durante o intervalo das aulas. Flertaram, saíram algumas vezes, a senhora T. engravidou e criou sozinha o menininho franzino e inteligente. O terceiro irmão não acreditava em casamento, ou melhor, deixara de acreditar quando se transformara em terceira opção. A senhora T. se livrou do pouco que tinha e foi embora, levando consigo o menininho. Anos depois, surpreendentemente, a senhora T. retornou e instalou-se na antiga casa dos três irmãos, ao lado do filho. Ela costuma se gabar de ser viúva de três homens. E bota pra correr toda moça saltitante. O filho é uma joia, inteligente demais, apesar da falta de músculos.

 

 

 


©dara scully

 

 

 

1poema, 1 conto

melissa campos

 

 

lilith

 

 

Como uma jiboia

a escuridão devora.

Começa pelos pés

engole pedaços alvos.

 

De dentro da boca de lobo

a Lua é vermelha

recém saída do ventre.

Esculpida pelas

presas famintas de feras

há muito extintas.

 

Mãos inclementes

forjam o passado.

Pavimentada a estrada

só resta seguir o Destino.

Junta os cacos:

o tino da resposta,

a tormenta chegou

pra comer os filhos.

 

Recita os poemas

que ninguém mais lê,

constrói uma cabana

de livros queimados,

mora pra sempre

em campos errados.

 

Arranca os bilhetes

dos meus dedos frios,

mastiga os dizeres

da minha boca morta.

Exorciza as memórias

dos tempos de merda.

 

Imagina o fim:

numa praça

banhada em carmim.

 

 

 

 

da sacada

 

 

Olha que beleza, Olinda! Mataram mais um presidente. Mas esse já não tava morto, Derci? Não. Esse era de amanhã, nem nascido tava ainda. Fizeram agora de manhã, um juiz chave de cadeia puxou o gatilho. Não quis nem saber quem tava olhando. Jogou o presunto lá, à vista, como se fosse um frango sem recheio, só os ossos. Faz uma semana já, que Hilda não come nada, não levam um prato pra ela, coitada — falam num sussurro confidente. É segredo, mas tá namorando um faquir. Ele também! Magro que dá dó.

 

A lua tá ficando cheia? Tomara que teja, porque assim vai dar pra ver melhor, né, mãe? Olha a cara dela, gorduchinha. Tá rindo. Nunca mais tomo ducha, só banheiro. Assim não lavo a máscara e não sujo a cara. Não quero ir brincar. O Pedro tem sete e o amigo dele tem seis, eu vou atrapalhar. Não vai, menino! Vai lá com seu irmão. O Pedro sempre vai ser mais velho que eu? Assim não quero. No meu aniversário quero ser mais velho que o Pedro. Tem essas coisas de monstro que me dão sonho. É, mas às vezes quando a mente vai pro inferno, daí sai um sambinha, sexta-feira. É bom, mas tem que cair o salário.

 

Não vejo diferença entre samba e pagode. É tudo samba, menina. Eu pego é uma tabelinha de acordes e coloco tudo numa escada. Mãe, meu amigo ofereceu pipoca, pode comer? Pode, pode dar a batata, é amizade garantida. Quem garante? Você, é claro. Tem isqueiro? Não te acompanho nesse cigarro. Nunca fumei na vida, mas acho tão bonito. Olha que beleza, Olinda! As brasas da revolução acesas. Não via desde meu tempo de menina. Mas é que aqui é Zona Sul, Derci. Essa revolução é outra.

 

 

 

 

 

 

6 poemas

norma de souza lopes

 

 

acomodar

 

 

acomodá-lo de bruços

sobre o joelhos

e com jatos mornos d'água

lavar com cuidado suas dobras

 

com as mãos em concha

guardar as orelhas e os olhos

do excesso de água

e da espuma do sabão

 

secá-lo

untá-lo

com talcos e óleos

vesti-lo

alimentá-lo

 

ignorar

o leite derramado

a vida íntima em pausa

em prol do seu desabrochar

 

enlevar-se

diante do seu sono

do primeiro passo

do primeiro dente

 

e esperar calmamente

que ele ignore seus sonhos

e despedace seu coração

 

 

 

 

reverência

 

 

um enfisema

e um caramelo no bolso

o último que pediu

muito respeito

pelo inventor

da escova de dentes

 

às vezes a morte

torna grande

pequenas coisas

da vida

 

 

 

 

o amor

 

 

sinto raiva mesmo é do amor

ajoelhado nos ladrilhos do banheiro

em flagrante felação

nem para exigir troca

o amor

 

entre os dedos do amor

debaixo de suas unhas

há sangue seco

 

o amor goza

até com casa de cartas

com bilhete de loteria

não premiado

 

o amor, esse puto

esgotou seu último pedido

a minúscula nascente

que a ausência de convicção

havia plantado em meu peito

 

 

 

 

 

ode ao príncipe roderick

 

 

apresse-se em descobrir

não há Odisseu

átomos hexaedros

tudo que temos

é desejos, prazer e dor

 

oh, príncipe roderick

sou a mulher do norte

a beleza é um atributo difícil

mas nada me impediria

de querer-te

 

ouça meu último pedido

seja breve em ver-me

corra comigo pelas ruas

ignore o rosto da cidade

grotescamente maquiado

pelas luzes de natal

 

sentados sobre o concreto

dos bancos de praça

envoltos por nossa névoa sensual

estaremos completamente alheios

ao toque frio sob as nádegas

ou mesmo ao mundo

e seu hálito do mal

 

há olhos escuros

em meu encalço

famintos me devoram

no afã de esvaziar o desejo

 

ignoram que o desejo

é como as ervas daninhas:

nunca desistem de renascer

depois de arrancadas

 

decerto não estou falando de amor

mas pode um abraço fundir almas?

ouça-me bem príncipe

se não vier

deixará um campo devastado

dentro de mim

 

 

 

 

 

dança da chuva

 

 

arrancar os dedos lenhosos

de todos os meus pés

descalços

fincados sobre o solo

raízes no cotidiano dor

 

do outro lado 

transmutar-me pedra

mínimo seixo

1, 2, 3, 4, 5

voltar

 

subir a montanha

do quênia

ou o grand canyon

sutil

quase infantil

sussurrar ao céu

o corte na mão

o custo da alma

esperar não

é qualquer dor

que traz a chuva

 

 

 

 

aquela dança

 

 

quando veio

trouxe contigo

um bosque, uma estrela

alguns países, um cemitério

e uma sensualidade

consciente e oculta

da qual não pude fugir

te tirei para dançar

e você me respondeu

daquele seu jeito coquete

"tivesse chegado

uns meses antes

mas você chegou tarde

já tenho namorada"

 

aquela dança

arrancou todos os meus pés

apertou meu coração

contra a parede

espremido assim

está ele até hoje

quer dizer

às vezes infla

que é quando

escrevo poesia

 

 

 

 

 

 

sem título

patty flag

 

 

Cadeiras de rodas boiam na baía de Guanabara. Não sabia que quando se faz noventa anos a gente perde os pés. Queria escrever outra biografia: ser aquela mulher que foi campeã de natação. Aquela que aos oitenta ainda atravessa toda a linha do horizonte em Ipanema a nado.

Existe essa mulher, não existe?

Lembro de uma reportagem. Tive inveja. Tinha pernas melhores que as minhas. Se lhe cortassem os pés ainda andaria. Ainda andarilha. Ela anda no mar. Anda na linha. Na linha do horizonte. Minha cadeira de rodas passaria boiando a lhe socorrer. Enquanto meu corpo a observaria. Do fundo.

Kelle Wesser. Já disse que nasci no dia em que meu navio atracou nesta cidade. Sou carioca. Guilherme me batizou. Sua santa porra me batizou carioca.

Nem que eu caminhasse até o Leblon. Ainda existe essa mulher, não existe? Todas as ângelas, pensei um dia, são anjos. Queria escrever outra biografia: ser aquela mulher que foi arrancada do apartamento pelos cabelos. Escadaria abaixo pelos cabelos. No primeiro andar minha cadeira de rodas a esperaria. Ainda que lhe cortassem os pés ela cantaria. Loucura é loucura.

Cadeiras de rodas congestionando toda a orla do Leblon. Ângelas de pernas de fora. Pernas lindas. Sem pés.

De olhos fechados a linha do horizonte é escura.

Você poderia dizer imaginação. Talvez. Se eu tivesse. Acabei um romance agora. Igual a meus outros 397, 584, 1. Mulher jovem. Homem exótico. País distante. Love. Felizes para sempre.

Acabei um romance agora. Cadeiras de rodas boiam na baía de Guanabara. Fazem a travessia para Niterói. Linha regular. Mulheres jovens sem pés. Ainda andam. Ainda andarilham. Andorinhas na linha. Do telégrafo.

 

 

 

 

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