tempo de cocção: 1 semana
roberta silva
Segunda-feira
— Desculpe, eu não sabia, vou consertar... Ai, para, já vou, já vou, por favor...
Terça-feira
... — Ele entrou como sempre, Doutor, de olho no celular. Escorregou na gordura de porco que havia caído na hora do almoço na soleira da porta. Eu sei, tinha de ter limpado na hora, mas eu não vi, só depois que levaram o corpo que reparei que estava sujo e me lembrei de que a lata escorregou da minha mão... eu vi na hora. Levei até um susto e corri para pegar pano e sabão para limpar. Sabia que ele passaria por ali e que se escorregasse teria, logo na chegada, o motivo para me bater e bateria. Me culparia pelo susto, me bateria por ser relaxada, por tê-lo feito escorregar... depois de tirar sangue ou me deixar roxa ainda ia me xingar por obrigá-lo a ficar com raiva de mim. Aí ia me abraçar, me pegar a força... analgésicos, cerveja, peidos e reclamações com bafo de cerveja... Chegou, seu delegado, escorregou assim que pisou em casa. Caiu para trás, bateu a cabeça no banco de madeira do menino. O sangue escorreu na hora, corri para ajudar, mas não sabia como... Ambulância? Ah, é, demorei. Fiquei paralisada doutor, a ficha demorou cair...
— O que tem pra comer?
— Frango com angu. Salada.
— Fez suco?
— Esqueci, vou fazer... Ai, para, já vou, já vou, por favor...
Quarta-feira
... — Não sei o que aconteceu, Doutor, cheguei na sala e ele estava passando mal, a mão no peito, espumava pela boca, vermelho, parecia que não respirava mais. Tentei acudir, mas foi tão rápido... Não tanto quanto imaginei, a Ana me disse que era imediato. Ele ainda teve tempo de me bater, me culpou pela azia, reclamou da comida. Será que sentiu o gosto? Ana disse que não tinha gosto de nada. Será? Quase provei um pouco para ver. Se ele sentisse o gosto me faria comer, tenho certeza. Talvez fosse até gostoso. Não sei, só sei que comeu e se fartou. Arrotou, virou o resto da cerveja e enfiou a mão debaixo da minha saia antes de levar a mão no estômago e brigar comigo por conta da dor. Pensando bem foi bom vê-lo estrebuchando no chão antes de morrer... Comeu o de sempre, Doutor! Arroz, feijão, costelinha, couve, angu. Eu fiz suco, mas ele nem provou. Foi logo pegando uma cerveja. Será que estava choca? Pode, a comida está na panela, pode levar tudo sim, até a cerveja. Pode levar, eu fiz duas, joguei o resto da envenenada no vaso e dei descarga. Essa aí e a que fiz para a perícia, como Ana me disse para fazer. ... — Demorei? Ah, Doutor, eu estava arrumando a cozinha, a tevê ligada, sabe como é, liguei assim que vi que era coisa séria, juro...
— O que tem pra comer?
— Arroz, feijão, costelinha, couve e angu. Fiz suco.
— Tem cerveja gelada?
— Hoje é quarta, você só bebe no final de semana...
— Tem jogo da seleção, você é idiota?
— Eu não sabia... Ai, para, por favor, por favor...
...
— Quê isso, mulher, o quê? Não... nããããooo...
Quinta-feira
Sexta-feira
Sábado
Domingo
Segunda-feira
(... Copia, central... manda o rabecão... homem, adulto... cento e vinte quilos... estágio de decomposição?... sei lá, bote aí: ao ponto...)

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ro druhens
lenda suburbana
Diziam dele que era macho e disso não sabia eu quando dele isso diziam pois era o tempo em que eu nada dizia e de macho só conhecia o galo velho lá no fundo do quintal. Diziam dele que montava as éguas e as fazia galopar por estradas nunca vistas campos largos e planícies que eram rota pras estrelas e disso não entendia eu que pensava que só os aviões os pássaros um ou outro anjo voassem pelo céu. Diziam dele que quando passava pelos caminhos deixava flores despetaladas pranto dor parto e morte e disso eu não sabia que se é parto é a vida não a morte isso não. Diziam dele tanta história tanta lenda e raconteio que era nele que eu pensava quando a noite acontecia quando o dia amanhecia quando a chuva desabava se dormia ou se comia nada mais tinha valência e a vida era toda feito pensamento história de fada de felizes para sempre. Diziam dele um nome outro não aquele que me disse quando se aprochegou e me pegando pela mão foi andando rumo à lua lá no fundo do quintal. Galo velho. E que galope que nada só a saia arregaçada um punhal cravado forte uma dor rompendo a noite.
Mas ainda dizem dele. Contam histórias nas fogueiras, grandes feitos e bravatas. Que ascendeu feito santo imaculado e seu corpo fez-se nuvem, pomba branca, lençol seco no varal.
Escuto tudo e nada me tira os olhos dos bordados. Ainda uso a mesma agulha que, há tempo tanto, na beira do rio, numa noite de luar, perfurou-lhe a jugular.
quando eu gostava de goiaba
Vem de um tempo que nem sei. Nem sei se a vida passa, ou se a gente passa pela vida que nem vê. E eu ia triste naqueles idos. Correndo zonza feito busca-pé, atrás de um pé onde fincar a vida que passava pelo não acontecido e deixava só espaço vazio para nada acontecer. Só a fome pra todo lado. E não era essa fome de toda a gente que a comida faz passar. Vinha de mais fundo, lá da alma, e era mesmo uma vontade de devorar o tempo e regurgitar um tempo onde o tempo acontecesse sem passar.
Mas vem de um tempo em que eu gostava de goiaba e a madrugada dava vontade delas.
Fui atrás e ele ia cada vez mais longe. E tudo na estrada tinha gosto de goiaba verde. Quando ele sumiu curva, o galo cantava clareando o dia e o caminho de volta era tão longe de ali que deu preguiça...
Foi assim e não voltei. Fui assim e já não sou e nem sei mais se é sonho sonhado, vida que passou. Nem sei se a vida passa ou se a gente passa pela vida que nem um circo que some no sonho quando clareia o dia e nem o sol lembra da gente.
quase rosa choque
Ia pra mais de todo o tempo desde o tempo em que o tempo era coisa de relógio.
Ia pra mais de toda a vida desde a vida em que a vida era coisa de relógio.
Ia pra muito além da carne e das feridas que, sangrentas e mais que sempre cicatrizes, rompiam a carne e as feridas.
Soluços que queimavam travesseiros. Espasmos que amarrotavam os lençóis. Dor pra muito além daquelas quando lhe arrancaram seios, útero, ovários e alguns dentes. E tudo vindo pelas sombras de uma fotografia amarela, craquelada, esquecida numa caixa cor-de-rosa.
De Sonho de Valsa.