edição 53 | abril de 2018

assassinato | circo | ontem

 

 

ai, que cafona

priscila lira

 

 

para Florbela Espanca, que cafona, hahaha

 

 

Às vezes eu tenho a impressão de que um deus me roubou as palavras da boca. Daí corro procurando elas, nos livros, olhos, pele, mundo. Sempre esse movimento, correndo de um lado pro outro, procurando peças que caíram no primeiro salto e se espalharam, deixando buracos aqui.

É legal que eu vou preenchendo esses espaços e me acho mais bonita. Mas acho que o segredo tá no movimento (seeensual, o movimento é sensual, o movimento é sexy!). Ao sair pulando de galho em galho e bisbilhotando os cantos, colecionando meus pedaços, invento um amor por mim que é, na verdade, um amor pelo... outro?mundo?desconhecido?

Talvez o amor seja uma curadoria do desconhecido. Mas eu... agora não sei mais quem é quem. Agora temo o que me habita.

 

O movimento ````````````````````````````````````````````````````````````````````````````````````````````````

`````````````````````````e o

amor

``````````````````````````````````````````````````````````````````````````````

o movimento gera amor o amor é uma curadoria do desconhecido

o amor não é uma poça d'água

o amor não sei quem é mais quem

o amor é coisa das nossas cabeças que nem o mundo

 

e atravessa meus buracos

e me apavora e me assusta e me move por aí

 

é como aquela árvore que esteve em cima dos meus olhos sob o sol. Ali estão seus galhos e folhas, opacos e escuros e o frio. De repente vem o vento e ela dança e tremelica e depois o sol que penetra seus espaços e deixa um pedacinho azul aqui, outro dourado ali e que linda diva árvore. Movimento atravessado. Ou como o Jadson sentado comigo na grama se despedindo com aqueles olhos negros onde não atravessa um raio de sol, perdido na lama do seu dentro, me olhando fundo e usando toda a força da garganta para gaguejar 485867372e1902495785756956475435439854u593 532085439755465248953453453te458954984538954389a4398534869565469846464mo,

ao que

eu faço cara de deboche e confirmo a recíproca com azia no peito pensando, eu consegui, Jadson! Por enquanto, me perdoa. Criatura! Não dá, entende? Não dá... Tá tudo escuro e tu aí lightning striking agaaain, lalala, lalala, lala. Klaus Nomi, essa bicha arrasa.

 

 

                  

Olha você, não se ofenda com meu corpo, não se ofenda (tá querendo que beijem granadas, meu amô?), nem com a minha crença cega nessa estranha e atrofiada instituição chamada arte (ó, ana c., dai-me forças e cinismo para carregar essa bomba até que ela exploda de uma vez por todas sobre todos). Dói essa correspondência que nunca se toca. Dói encontrar o amor, um morto-vivo, ou pior, um holograma nesse lixão. Outono: Meu corpo escorre pelos galhos. O que sobra? Um galpão novo com telas lisinhas e vazias, ao fundo, a paisagem de ontem.

 

— Experimento amor parte 1: Misturar, brilhar, queimar, sangrar

— Experimento amor parte 2: Ir pela sombra, decantar, mover, solar

Suponhamos que seja tudo uma questão de saber manipular a luz!

...

 

 

 

poema

priscila merizzio

 

 

Drama I

 

 

 

Aquele amor que chega de fininho como uma

manada de elefantes procurando abrigo no deserto.

 

*

 

Ele devorou meu coração com talheres de prata,

Ver-me fulgurante é sofisma. 

 

 

*

 

Mais alguns dias e meu objetivo de repor

as dicroicas do crânio estará executado.

 

*

 

Desfiro o golpe, o xeque-mate, na última gota de vinho de seu copo.

 

*

 

Na nudez das florestas

desabotoo meus emaranhados; e adormeço sob a gadeia

da figueira mais expressiva.

 

*

 

Te desejo como uma beata delirante.

Você me rejeita: na mão direita meu retrato,

na esquerda, o bilhete de loteria. 

 

*

 

 

Nas montanhas de seu peito, sua clavícula me ama num romantismo alemão.

 

 

*

 

Não engole esse doce português, que dentro dele há estricnina.

As espumas sairão de sua boca de beira de praia; você convulsionará: poeta.

 

 

*

Nós sabemos,
é um fardo sermos inesquecíveis.

 

 

 

Drama II

 

 

A histeria do monóxido de carbono e a melancolia do magma

espantam os pássaros com tiros de espingarda.

Com tiros de espingarda.

 

*

 

Não me entrego mais de bandeja. Muitos escondem uma faca degoladora

no bolso da japona, e levam framboesas nas mãos.

 

 

*

 

Aos que me perseguem, a praga:

"Que teu pai morra queimado. E teus queridos

despertem a ira de indivíduos como tu". 

 

 

*

 

Pois meu teto é de vitral caleidoscópico.

 

*

 

 

Me causa estranhamento e fascínio os cães com olhos de gente.

O quanto abdiquei, para estar com vermes

que se acham reis. 

 

 

 

 

O ato derradeiro

 

 

Coração que ladra morde e morre; os dentes

caindo da gengiva podre.

 

*

 

Um corpo abandonado à própria sorte em carne viva, sem a vida.

 

*

 

Já estamos mortos.

 

©diane arbus

 

 

tempo de cocção: 1 semana

roberta silva

 

 

Segunda-feira

— Desculpe, eu não sabia, vou consertar... Ai, para, já vou, já vou, por favor...

 

Terça-feira

... — Ele entrou como sempre, Doutor, de olho no celular. Escorregou na gordura de porco que havia caído na hora do almoço na soleira da porta. Eu sei, tinha de ter limpado na hora, mas eu não vi, só depois que levaram o corpo que reparei que estava sujo e me lembrei de que a lata escorregou da minha mão... eu vi na hora. Levei até um susto e corri para pegar pano e sabão para limpar. Sabia que ele passaria por ali e que se escorregasse teria, logo na chegada, o motivo para me bater e bateria. Me culparia pelo susto, me bateria por ser relaxada, por tê-lo feito escorregar... depois de tirar sangue ou me deixar roxa ainda ia me xingar por obrigá-lo a ficar com raiva de mim. Aí ia me abraçar, me pegar a força... analgésicos, cerveja, peidos e reclamações com bafo de cerveja... Chegou, seu delegado, escorregou assim que pisou em casa. Caiu para trás, bateu a cabeça no banco de madeira do menino. O sangue escorreu na hora, corri para ajudar, mas não sabia como... Ambulância? Ah, é, demorei. Fiquei paralisada doutor, a ficha demorou cair...

 

— O que tem pra comer?

— Frango com angu. Salada.

— Fez suco?

— Esqueci, vou fazer... Ai, para, já vou, já vou, por favor...

 

Quarta-feira

... — Não sei o que aconteceu, Doutor, cheguei na sala e ele estava passando mal, a mão no peito, espumava pela boca, vermelho, parecia que não respirava mais. Tentei acudir, mas foi tão rápido... Não tanto quanto imaginei, a Ana me disse que era imediato. Ele ainda teve tempo de me bater, me culpou pela azia, reclamou da comida. Será que sentiu o gosto? Ana disse que não tinha gosto de nada. Será? Quase provei um pouco para ver. Se ele sentisse o gosto me faria comer, tenho certeza. Talvez fosse até gostoso. Não sei, só sei que comeu e se fartou. Arrotou, virou o resto da cerveja e enfiou a mão debaixo da minha saia antes de levar a mão no estômago e brigar comigo por conta da dor. Pensando bem foi bom vê-lo estrebuchando no chão antes de morrer... Comeu o de sempre, Doutor! Arroz, feijão, costelinha, couve, angu. Eu fiz suco, mas ele nem provou. Foi logo pegando uma cerveja. Será que estava choca? Pode, a comida está na panela, pode levar tudo sim, até a cerveja. Pode levar, eu fiz duas, joguei o resto da envenenada no vaso e dei descarga. Essa aí e a que fiz para a perícia, como Ana me disse para fazer. ... — Demorei? Ah, Doutor, eu estava arrumando a cozinha, a tevê ligada, sabe como é, liguei assim que vi que era coisa séria, juro...

 

— O que tem pra comer?

— Arroz, feijão, costelinha, couve e angu. Fiz suco.

— Tem cerveja gelada?

— Hoje é quarta, você só bebe no final de semana...

— Tem jogo da seleção, você é idiota?

— Eu não sabia... Ai, para, por favor, por favor...

...

— Quê isso, mulher, o quê? Não... nããããooo...

 

Quinta-feira

Sexta-feira

Sábado

Domingo

Segunda-feira

(... Copia, central... manda o rabecão... homem, adulto... cento e vinte quilos... estágio de decomposição?... sei lá, bote aí: ao ponto...)

 

 

 

 

3 minicontos

ro druhens

 

 

lenda suburbana

 

 

Diziam dele que era macho e disso não sabia eu quando dele isso diziam pois era o tempo em que eu nada dizia e de macho só conhecia o galo velho lá no fundo do quintal. Diziam dele que montava as éguas e as fazia galopar por estradas nunca vistas campos largos e planícies que eram rota pras estrelas e disso não entendia eu que pensava que só os aviões os pássaros um ou outro anjo voassem pelo céu. Diziam dele que quando passava pelos caminhos deixava flores despetaladas pranto dor parto e morte e disso eu não sabia que se é parto é a vida não a morte isso não. Diziam dele tanta história tanta lenda e raconteio que era nele que eu pensava quando a noite acontecia quando o dia amanhecia quando a chuva desabava se dormia ou se comia nada mais tinha valência e a vida era toda feito pensamento história de fada de felizes para sempre. Diziam dele um nome outro não aquele que me disse quando se aprochegou e me pegando pela mão foi andando rumo à lua lá no fundo do quintal. Galo velho. E que galope que nada só a saia arregaçada um punhal cravado forte uma dor rompendo a noite.

 

Mas ainda dizem dele. Contam histórias nas fogueiras, grandes feitos e bravatas. Que ascendeu feito santo imaculado e seu corpo fez-se nuvem, pomba branca, lençol seco no varal.

 

Escuto tudo e nada me tira os olhos dos bordados. Ainda uso a mesma agulha que, há tempo tanto, na beira do rio, numa noite de luar, perfurou-lhe a jugular.

 

 

 

 

quando eu gostava de goiaba

 

 

Vem de um tempo que nem sei. Nem sei se a vida passa, ou se a gente passa pela vida que nem vê. E eu ia triste naqueles idos. Correndo zonza feito busca-pé, atrás de um pé onde fincar a vida que passava pelo não acontecido e deixava só espaço vazio para nada acontecer. Só a fome pra todo lado. E não era essa fome de toda a gente que a comida faz passar. Vinha de mais fundo, lá da alma, e era mesmo uma vontade de devorar o tempo e regurgitar um tempo onde o tempo acontecesse sem passar.

 

Mas vem de um tempo em que eu gostava de goiaba e a madrugada dava vontade delas.

 

Fui atrás e ele ia cada vez mais longe. E tudo na estrada tinha gosto de goiaba verde. Quando ele sumiu curva, o galo cantava clareando o dia e o caminho de volta era tão longe de ali que deu preguiça...

 

Foi assim e não voltei. Fui assim e já não sou e nem sei mais se é sonho sonhado, vida que passou. Nem sei se a vida passa ou se a gente passa pela vida que nem um circo que some no sonho quando clareia o dia e nem o sol lembra da gente.

 

 

 

 

quase rosa choque

 

 

Ia pra mais de todo o tempo desde o tempo em que o tempo era coisa de relógio.

Ia pra mais de toda a vida desde a vida em que a vida era coisa de relógio.

Ia pra muito além da carne e das feridas que, sangrentas e mais que sempre cicatrizes, rompiam a carne e as feridas.

 

Soluços que queimavam travesseiros. Espasmos que amarrotavam os lençóis. Dor pra muito além daquelas quando lhe arrancaram seios, útero, ovários e alguns dentes. E tudo vindo pelas sombras de uma fotografia amarela, craquelada, esquecida numa caixa cor-de-rosa.

 

De Sonho de Valsa.

 

 

©diane arbus

 

 

 
 
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