edição 53 | abril de 2018

assassinato | circo | ontem

 

 

 

3 poemas

silvana guimarães

 

 

revoada

 

 

                   em memória de marielle franco

 

 

sangrar o amor em nome do ódio numa emboscada

machista racista escravocrata — atalhar uma vida —

 

sofrer com o trabalho forçado no tribunal da memória

cochilar sobre arames farpados nunca mais dormir

 

conviver com minhas faces tremulando nos jornais

— estandartes da esperança renovada ad infinitum —

 

suportar meu corpo tomando posse de outros corpos

agigantando-se neles à cata de tolerância & justiça

 

: agora sou uma flor negra & altiva que a morte

regenerou e transmigrou em inúmeros pássaros

 

pólen néctar colibri minhas palavras espalham-se

ao vento e esse ardor você não pode emudecer

 

 

 

 

o acrobata

 

 

                   para carlos augusto lima

 

 

eu sou a mulher barbada do semáforo

e você me olha de esguelha com nojo

fecha as mãos ao volante com força

trinca os dentes aumenta o som e se

apavora com o brilho do meu dente

aquele de ouro no lugar do que perdi

com um soco numa noite de chuva

não sou mais o triste fantoche que

amava o engolidor de fogo e vivia

com o atirador de facas: sobrevivi

a minha miséria & a minha ousadia

lhe deixam constrangido: agora você

ignora meus panos de prato de chão

acelera de volta para casa onde lhe

espera a mesma solidão às avessas

o seu silêncio debatendo-se entre a

louça na pia & o recibo da pensão

alimentícia: sim o que lhe resta então

broder: improvisar um samba-enredo

louvando as espetaculares conquistas

femininas da última década: a mesma

daquelas almas fêmeas que existiram

para seu usufruto: apenas meras biscas

aí incluída a mulher armada que partiu

: o estômago embrulhado você girando

girando girando no globo da morte

e essa vontade de rasgar os pulsos

antes de despencar no despenhadeiro

enquanto murmura: el gran ilusionista

 

 

 

 

ophelia

 

 

         contra a lama da samarco

 

 

plantas flores pasto poste pássaros

peixes árvore poste montanha vacas

poste grama prado árvore escarpas

barro barro barro barro barro bosta

 

estrelas palmeira lua pedra poste

telhados sol borbulho lanterna

rocha poste redemunho garrafa

poste sandália boneca moeda

 

sob a alma a lama sob a lama a alma

o nome na lista dos desaparecidos

enquanto o corpo lacerado respira

enquanto o coração exposto insiste

 

plantas flores pasto poste pássaros

peixes árvore poste montanha vacas

barro barro barro barro barro bosta

e a sede a sede a sede a sede de

 

 

 

 

 

círculo

suzana bandeira

 

 

o cão, a guerra, o circo que me invade

quanto me cabe desta nesga bruta?

 

o circo é só o mundo de verdade.

 

 

©diane arbus

 

 

pré-natal

tatiana alves

 

I

 

Ela chegou, à mesma hora de sempre, como vinha fazendo havia aproximadamente um ano. Sentando-se no lugar de costume, principiou a desfiar, com riqueza de detalhes, a sua última aventura. A roupa era invariavelmente preta, falso indício de sobriedade, mas seus trejeitos e o leve menear nas ancas quando andava evidenciavam a lubricidade que ela tentava ocultar. Mesmo consciente de que sua posição deveria ser a mais isenta possível, ele não conseguia se furtar a reparar nos detalhes, como o balançar da cabeça que ela fazia ao narrar alguns detalhes picantes, ou o leve tique de piscar um olho, presente nos momentos em que a narração ganhava contornos sórdidos.

  Continue — pediu ele, secamente, embora soubesse que a cada visita mais e mais ele se ia envolvendo naquela imbricada teia narrativa. Neutro, como o ofício exigia. Frio, jamais, ainda que ela nunca tivesse percebido o mais leve resquício de curiosidade ou mesmo de interesse na atenção que ele lhe dispensava. Era parte de sua profissão, nada mais.

 

 

II

 

Na próxima terça-feira eu voltarei e terei muito mais a revelar. Proferindo a frase de despedida, era sempre ela quem punha fim àquelas longas sessões.

Partia, deixando no ar um aroma indescritível que despertava nele algo além de sua compreensão, tornando a cada dia mais difícil sua isenção em relação a ela.

Na semana seguinte, ele era exposto a uma verdadeira sessão de suplícios, que se tornava mais perversa a cada vez, quando coisas inconfessáveis eram trazidas e apresentadas como uma ferida exposta, sem que ele nada pudesse fazer para impedir. Era parte de sua profissão.

 

 

III

 

Naquela tarde, depois de ela ter partido, o som de seus passos ainda permaneceu por um tempo ecoando na cabeça daquele homem. Seu relato fora particularmente horrendo dessa vez. Ele, quase como um voyeur, revivia a cena à medida que ela narrava. Ela, resgatando antigas práticas narrativas, prendia-lhe a atenção de um modo quase mágico. Como num transe, comungavam, ambos, da experiência que ela trazia, numa bandeja. Ela, livre e impune, obtinha um perfeito ouvinte para as suas mórbidas confidências. Ele, maldito, condenado, por mecanismos éticos e legais, a ouvir sem interferir ou julgar. E, no caso dela, sem poder impedir que ela repetisse as atrocidades que narrava minuciosamente a cada nova visita.

Sem o poder de revelar a ninguém o que ouvia semana após semana, ele embarcara numa viagem sem volta, à mercê de um louco timoneiro que o torturava de forma incessante.

 — Sabe por que eu lhe conto tudo isso? — ela acariciava o lugar onde estava sentada, enquanto lançava a ele um olhar lascivo. — Porque você não pode fazer nada comigo.

Levantando-se de um salto, invadiu o espaço que os separava, e falou, num tom baixo, porém hostil: — Em você eu me vingo de todos eles.

A respiração dele tornara-se tensa, e gotículas de suor porejavam em sua testa quando ela partiu.

 

IV

 

No início, o que mais lhe chamara a atenção fora a barriga saliente da mulher. Apesar de ela jamais haver mencionado a gravidez, ela era evidente, o que conferia um tom ainda mais insólito a tudo o que ela narrava.

Os detalhes mórbidos, o prazer sádico com que se detinha nos pormenores, tudo tornava seu papel ali mais difícil. Inútil, até. Jamais a poderia ajudar, inclusive pelo fato de ela não manifestar qualquer resquício de remorso. Na única vez em que esboçou uma pergunta, ela simplesmente se levantou e partiu, só retornando duas semanas depois. Temendo perdê-la, decidiu que não mais faria perguntas. Limitava-se a ouvi-la. — Acha que mereço alguma penitência? — brincava ela. Ele ouvia-a, sem interferir. Sabia que sua posição não lhe permitia julgar, e muito menos punir. Os únicos limites que jamais poderia transpor eram o do sigilo e o da interdição. Sim, porque aquela criatura lhe atiçava os desejos mais recônditos, os desvãos mais sombrios.

À noite, sonhava com ela e sua bela e imponente gestação a lhe ofertar o milagre da vida e as delícias da fêmea. De dia, mantinha-se sublimado, realizando-se nas picantes e sangrentas narrativas com que ela o brindava compulsoriamente. Não a podia dispensar — fizera um juramento, afinal — nem desfrutar de seus atrativos.

Precisavam, simbioticamente, um do outro. Parasitas mútuos. Ela, protagonista de um espetáculo atualizado a cada semana, tinha nele uma plateia atenta e fiel. Ele, inabalável em suas convicções, tinha nela seu maior termômetro. Era testado a cada vez.

As histórias se foram sofisticando. A Sherazade-psicopata contava-lhe agora minuciosamente os suplícios a que submetia os homens que dela se aproximavam.

Num dia, a curiosidade, disfarçada de preocupação, falou mais alto, e ele teve a coragem de perguntar como ela conseguia parceiros com tanta facilidade, dada a avançada gravidez. Ela riu-se, divertida, e levantou o vestido, mostrando a almofada com que simulava a gestação. A tática, segundo ela, desarmava os homens, capazes de lhe subestimar a força, julgando-a grávida. Não eram capazes, contudo, de frear seus impulsos, respeitando a vida que supostamente lhe pulsava no ventre. Ao aceitarem profanar o corpo grávido, selavam sua sentença de morte, irreversível, mesmo quando a verdade era revelada.

Provavelmente, aquilo tudo era resultado de algum estupro. Apenas algo tão aterrador seria capaz de fundir vida e morte, fazendo-a se passar por uma mulher grávida para, impiedosamente, tirar a vida.

Sou uma ceifadora, dizia. A cada miserável que mato, limpo o mundo para os filhos que terei um dia. Você me acha louca, não é? — ele nada respondia, e, unindo os dedos das mãos, pensava em um modo de pôr fim àquele suplício. Era quase omissão. Não havia projeções ou sublimações que dessem conta do que se passava ali. Ela torturava-o cruelmente, inoculando nele um veneno e sabendo-o proibido de provar do antídoto.

 

V

 

MISTERIOSO CRIME INTRIGA POLÍCIA CARIOCA. Uma mulher, de aproximadamente trinta anos, foi encontrada morta na madrugada de hoje em um hotel de luxo da orla carioca. As circunstâncias da misteriosa morte ainda não foram divulgadas. A polícia já descobriu que os documentos da vítima eram falsos, além de uma barriga postiça encontrada no local, o que gerou a abertura de inquérito.

Alguns funcionários do hotel já prestaram depoimento. O recepcionista informou à polícia que ela às vezes se hospedava no local, sempre com o mesmo nome. Como ela parecia estar grávida, não levantava suspeitas por parte dos funcionários. Dizia que morava em outra cidade, mas que estava sempre no Rio a trabalho.

Ela sempre me pareceu muito distinta. Chegava no meio da madrugada, mas era porque tinha reunião de manhã cedo. Como eu ia saber que ela não estava grávida? — alegou o gerente, que disse ainda temer uma repercussão negativa para o hotel, conhecido pelo alto nível de sua clientela.

O delegado responsável pela investigação tenta agora estabelecer possíveis relações entre o assassinato da mulher e alguns crimes ocorridos nos últimos meses, cuja principal suspeita era uma mulher grávida, de identidade desconhecida, de acordo com denúncias anônimas recebidas pela polícia.

 

 

VI

 

De manhã, tomava calmamente seu café quando se deparou nos jornais com a notícia da morte da enigmática mulher. A prostituta que fingia estar grávida para assassinar seus clientes havia sido silenciada num hotel. Aliviado, sorriu. Jamais traíra seu juramento, mas ainda assim a saga de crimes chegara ao fim.

Olhando o diploma pendurado na parede, percebeu que isso também significava o fim de suas sessões mais interessantes, do ponto de vista científico. Sua pesquisa sobre psicopatas teria de esperar. Deitou-se no divã, buscando vestígios do perfume dela. O rastro deixado por ela não se apagaria tão facilmente.

Desmarcou as consultas do dia, e trancou o consultório, não sem antes examinar a bela coleção de facas recém-adquirida. Hoje era terça-feira.

 

 

 

 

4 poemas

valéria tarelho

 

 

senhoras e senhores

 

 

Às vezes, poesia e piada andam juntas no poema. E nem sempre dá para distinguir qual é qual. Aí reside a graça [que é gracejo]: o poema é palco e picadeiro.

Meu eu lírico é de circo.

 

 

 

 

tem ghost para tudo

 

 

ele passou

como um trem

[fantasma]

 

e parece

que foi

ontem

 

que tudo saiu

dos thrillers

 

 

 

 

pavão misterioso

 

 

ontem

corujei

uma garça

lembrança

sua

 

hoje

bem

te

vi

 

[te

quero

quero

tanto]

 

não

seriema

daqui

 

 

 

 

trote

 

 

peço perdão

ao ontem

pelos pecados

a galope

que não montei

 

 

©diane arbus

 

 

meu ensaio sobre a cegueira

aline bei

 

 

a praça estava vazia. eles se sentaram no banco, o vento varria as folhas e o som das folhas se arrastando

— não dá mais, ele disse, a gente não pode seguir brigando assim.

— eu sei, ela disse tão triste. desculpa, ela disse inaudível.

— é sempre a mesma coisa, clara.

a ex casa deles não muito longe

da praça

os móveis cobertos

com lençóis.

— pensei que se a gente se separasse não brigaríamos mais porque acabou, mas não acaba, você não entende o que é um fim.

— eu vou me controlar, prometo.

— a gente tem que resolver nossas coisas civilizadamente, clara

— eu vou tentar.

— você não se esforça. você pensa que vai me prender sendo louca.

— eu não faço isso de forma racional, mário, pelo amor de deus.

— você precisa se tratar.

— não fala assim comigo.

os móveis cobertos

por lençóis. o estalo do taco. os tempos áureos vividos ali. na cama, mas não só. também na cama conversando

sobre medos a coisa mais íntima, a mão debaixo do travesseiro

clara começou a chorar.

ele acendeu um cigarro. — minha mãe conhece um terapeuta excelente, trabalha com ela na usp — ele disse.

— eu não preciso de terapeuta muito menos amigo da sua mãe.

— tá vendo como você é impossível?

 

nos tempos áureos

ele dizia isso em

outro tom

quando ela queria sexo de manhã bem cedo

ele era muito preguiçoso

de manhã bem cedo.

 

chegou na praça um casal

com filha tão agasalhada que a menina mal se mexia.

 

ainda assim

 

ela pegou um galho

da grama

 

e fincou o galho

 

na direção contrária que as folhas corriam

tentando frear

o movimento

 

a clara pediu um cigarro pro não mais seu marido.

 

ele tirou do bolso, emprestou também

o isqueiro

 

ela tragou cerrando os olhos

que ainda estavam

molhados

por isso caiu uma gota.

 

os pais um pouco à frente chamaram a menina.

ela ouviu o próprio nome despertando

 

largou o galho

e correu

até eles, pequeno desespero nos pés.

 

a menina então ficou no centro

dos pais

uma mão pra cada um.

 

agora se você perguntar

pra clara e

pro mário

vocês se lembram daquela família de ontem na praça?

 

que família? — eles diriam

 

não, eles não viram

nada.

 

 

Aline Bei nasceu em São Paulo, em 1987. É formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em Artes Cênicas pelo Teatro Escola Célia-Helena. É editora e colunista do site cultural Oitava Arte. O peso do pássaro morto é o seu primeiro livro.

 

 

 

 

» Imagens

 

 

Diane Arbus (1923-1971). Fotógrafa e escritora norte-americana, conhecida pelas suas fotos quadradas em preto-e-branco que registram a vida sob diferentes ângulos, revelando personagens estranhos ou incomuns: o diferente, o feio, o grotesco, o doente mental. Ela dá vida aos excluídos. Sua obra expressiva e desafiadora é o resultado de uma insatisfação que se manifesta catarticamente, por meio de imagens viscerais e inesquecíveis. Ganhou notoriedade na década de 1960 ao imortalizar Nova York como o território livre que abriga todo tipo de gente. "Uma fotografia é um segredo que nos fala de um segredo; quanto mais parece explícita, menos somos esclarecidos", disse Arbus.

 

 
 
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