edição 5 | abril de 2006
uma cor

 

tríade para frida khalo
jussara salazar

1

A casa azul

 

Transparente como um diamante

ela revela o sol claro dos dias.

Meus navios no horizonte - essas promessas - são teus.

Minhas unhas riscam

essas cartas,

e entornam um colorido sobre a minha casa

rodeada de árvores antigas

que à noite

derramam seus frutos negros

e sua seiva escura pelo chão.

Esse arvoredo, em ondas,

desmancha sem dor suas raízes

na luz do amanhecer.

 

 

2

Fitas vermelhas

 

A menina corre com o vento

- Sou um abril dessa estação

- Sou um gorjeio do derradeiro pássaro

o cão,

semilunado

no púrpura e no sangue de uma imagem votiva

que passava sob minha janela

cantarolando muitos ais.

As fitas encarnadas dentro do livro dentro das horas.

Sou

a irmã dessa América.

 

 

3

Branco mais todas as cores

 

Madre, me voy.

Pássaro amarelo na água do arroio claro.

Passava outra vez,

entre os olhos entre a noite meu corpo

dormindo sob a navalha afiada da vida

vestido cor do nada madre,

me voy.

 

 

flamingoframboesa   
marília kubota

Os deuses são felizes porque não se beijam, escreveu na areia da praia. Grave as mágoas na areia, as alegrias na pedra, era a mensagem que circulava na internet. O verso de Pessoa tinha muita mágoa, toda a vida dele fora um lençol lavado com os amantes dentro. Devia deixar de pensar em imagens literárias. Quase ninguém se importava, diante de clichês transmitidos pela tevê: imagens que se apoderavam dos neurônios, insistindo em consumir sonhos projetados para os vencedores.

 

Escrevo meu livro à beira-mágoa. Meu coração não tem que ter. Pessoa não combina com a frescura do verão. Sol, fugir, explodir as relojoarias. Livrar-se de roupas, dançar nua em pêlo. Havia visto um filme com uma atriz assim, dançando na beira da praia. Uma imagem banal. O banal desvitaliza. Reprodução do cansaço, do que não sai de si para o mundo.

 

Esqueceu de trazer os livros para a praia. Agora circulava com as imagens na memória. O sublime e o rebaixado. Se ali agora pousasse um flamingo  sob  um pé de framboesa teria a imagem da cor vermelha como pensaram os chineses. Mas também devia esquecer os ideogramas chineses com a pele relampeando sob o sol. Há alguma coisa de podre no reino da Dinamarca. Alguma podreira no verão. Em vez de flamingos e framboesas, as gaivotas latiam e vinham comer carniça de peixe.

 

Devia camuflar-se entre os veranistas. Ninguém que queira escavar profundezas. Uma velha de chapeuzinho de pano e óculos escuros enterrada sob a areia. Castelinhos. O pai e o filho pescando siris no olho d'água. Não era um antidepressivo natural, antídoto contra pensamentos mórbidos?

 

A fêmea jovem saltava como uma gazela, os machos inflavam os bíceps para impressioná-la. A espuma rebentava nas ondas e nos copos de cerveja. Talhas de melões e melancias sorriam em balcões de taperas improvisadas. Cada corpo gritava eu sou o ponto alto do verão, sob o óleo escorrido na pele morena.

 

Nela a falta do introspectivo. Sem poesia a ignorância gania. Para quem dizer a beleza fugiu para dentro do verão? Quem cultuaria palavras de almas mortas em meio a anúncios berrantes de xampus, bloqueadores solares e biquínis? Era  preciso atingir as multidões, nada de delicadeza. Era preciso agredi-las com as 50 palavras que os atos de comer, cagar, correr e dormir permitiam grunhir.

 

Ela devia esconder-se atrás de um chapéu enorme enquanto lembrasse seus poetas. E envergonhar-se por sentir melancolia diante do sol impávido.

 

 

 

a loucura é branca
mariza lourenço

Comentava-se à boca pequena que as brancas vestes esponsais pareciam ter sido feitas sob medida para minha irmã mais nova. Sim, a menina era linda. Cópia exata da pequena madona de louça que ocupava lugar de honra em nossa casa. Eu que sempre lhe exaltara a beleza, dessa vez, porém, me sentia incomodada e apreensiva. Claro, as vestes eram minhas!

 

As roupas foram entregues em minha casa numa quarta-feira e, desde então, formou-se uma romaria familiar para vê-las.

 

Minha irmãzinha, no entanto, alheia aos suspiros de admiração, sentava-se na cadeira de balanço com os olhos grudados nas vestes. E por mais de uma vez eu a pegara daquela maneira, sentadinha e muito quieta, olhando-as com devoção. Tentei falar-lhe, adverti-la do despropósito da obsessão com que se afeiçoara aos trajes, mas ela estendia suas mãos muito brancas e sorria bondosamente. O gesto me desconcertava e eu me retirava. Dava-me pena.

 

No dia da cerimônia, cumprindo um ritual solitário, saí de casa, passeei, fui ao parque, ao salão de beleza e, de volta a casa, subi até a saleta de costuras. Meu vestido não estava lá. Não estava, aliás, em lugar nenhum. Corri desesperadamente até o quarto de minha irmã. A porta estava aberta e as janelas, completamente escancaradas, permitiam a entrada de suave perfume. Ela estava na cama, vestida de noiva, absolutamente imóvel. Gritei. Sangue? Meu vestido todo banhado em sangue. Meu vestido lindo.

 

Atirei-me sobre a poça que se formara no chão e lá permaneci, horrorizada demais para me movimentar.

 

Hoje, passados tantos anos, não consigo me lembrar de tudo. Uma nuvem branca apieda-se de minhas lembranças. Sei que havia gritos. Sim, muitos, do lado de fora do carro que me conduziu ao hospital:

 

- A noiva está morta... Assassina! Assassina!

 

Não entendo... Morta? Morta como, se ainda a vejo tão linda e branca?

 

Ela e o meu vestido de noiva.

 

 

lídia... ídia... ídia

roberta silva

A velocidade com que o céu mudava de cores não deixava que seus olhos piscassem. Tinha de absorver o máximo que pudesse. Sabia, não duraria muito.

 

Queria era ter alguém por perto. Alguém que também visse aquelas luzes mutantes no céu, alternando-se em velocidade caleidoscópica, que pudesse lhe dizer daquelas cores, se cores aquelas fossem.

 

Quando o céu ia se cansando e as mudanças seguiam preguiçosas, podia perceber que o zumbido insistente que ouvia desde o começo era alguém chamando seu nome: Lídia... ídia... Ídia... 

 

Talvez ele soubesse de cores e começava a procurá-lo. Percebia então que o nada a cercava por todos os lados, que o céu preenchia quase todo o espaço onde se encontrava. O piso era áspero, frio, duro, plano, cinza, o único cinza do lugar. À sua volta um horizonte circular onde procurava a origem daqueles gritos. Seu olhar o encontrava no momento exato em que ele desistia de ser ouvido. Lídia podia vê-lo, transtornado, se virando e indo embora, alto, magro e grisalho.

 

Intentava um grito nessa hora e o resto de açúcar derretido que escorria pelo canto de sua garganta a engasgava. Pelo canal do nariz subia ardor tão ardido que os olhos, ressecados de tanto ficarem arregalados, lacrimejavam fogo. Ficava alguns segundos imóvel esperando passar. Torcia para que tudo não estivesse novamente cinza e vermelho quando voltasse a abrir os olhos.

 

Abria-os e estava novamente na cozinha de sua casa. Paredes, panelas, talheres, chão, teto, tudo cinza. Menos as flores de plástico, sempre-vivas vermelhas. Olhava a colher em sua mão e dizia para si mesmo: Nunca mais!

 

A família descobriu cedo as duas coisas que marcariam sua vida para sempre. Aos seis anos disse para a avó, na tentativa de conquistar sua simpatia, que aquelas roupas verdes combinavam muito com seu rosto bonito. Piorou a situação, pois a avó orgulhava-se dos anos-a-fio usando luto. Levaram-na ao doutor que diagnosticou, após apertar a bochecha da menina entre os polegares e virar seu rostinho algumas vezes de um lado para outro: É daltônica a pobre. "Mas como pode, doutor, se ela me aporrinha todo dia para colocar tomate no prato pra ficar bonito?". Exames demais, mais tarde, confirmaram que era realmente daltônica, mas podia identificar o vermelho puro.

 

Às vezes a avó se arrependia um pouco de ralhar tanto com a menina. Numa dessas levou-a até a cozinha, encheu uma colher de açúcar e deu para ela. "Veja como é gostoso". A menina, assim que o açúcar começou a derreter em sua boca, arregalou os olhos e caiu para trás numa convulsão histérica, ria-se, contorcia-se e urinava de tanta excitação. A avó, nesse instante, teve certeza da natureza demoníaca do ex-genro que, mesmo não tendo conhecido a filha, deixou para ela o seu d.n.a. de demônio.

 

Quinze minutos mais tarde a menina voltou a si tão obviamente extasiada que a avó sentiu o mesmo calor nas coxas por baixo das anáguas que lhe causava seu maldito pai. Não ousou perguntar à neta o que ela havia sentido por pudor. Porém não tardou em avisar toda família que o demônio adormecido no corpo da pequena herdeira era despertado com açúcar puro e naquela casa o açucareiro mudou-se definitivamente para o alto da prateleira.

 

Lídia consumia escondido colheradas de açúcar às vezes. Uma vez quase teve uma overdose e mal teve chance de secar a urina e suor antes da família voltar do culto. Com o tempo foi diminuindo a dose ingerida até acertar a quantidade exata para não perder os sentidos e ter as mesmas visões.

 

Adulta e morando sozinha, algumas vezes, nos fins de semana, depois da faxina vai até a cozinha. Abre a janela e deixa entrar o ar, molha uma colher na boca, pega o açucareiro no alto do armário e afunda a colher. O açúcar que gruda na colher úmida é suficiente para que veja o céu mutante e no fim o único homem por quem sentiu algo em sua vida acromática. Não urina mais no chão, mas ainda precisa se trocar depois de vê-lo.

 

Lídia cresceu vendo o mundo cinza salpicado, às vezes, de tomates e flores vermelhas. Por não conhecer realmente o colorido poderia até conseguir se sentir como as outras mulheres. Mas sua avó nunca a deixou esquecer de que seu pai-diabo havia seduzido sua mãe e deixado nela a semente do mal. Ela tinha por obrigação cristã não deixá-lo florescer de forma alguma. E toda vez que ela comia açúcar sentia-se culpada, mais longe do paraíso. Jurava para si que era a última vez. Segurava-se por uma semana, duas, depois ia batendo uma saudade. Aquela voz chamando seu nome, as cores do céu caleidoscópico iam sumindo de sua mente. Talvez por isso não pudesse tirar os olhos do céu durante seu transe e só no final prestar atenção ao seu amado lhe chamando.

Para lembrar-se dele era só fechar os olhos e ouvir: Lídia... ídia...ídia...

 

 

arco-íris

ro druhens

 

Violeta abriu a janela depois do temporal. O cheiro da terra molhada prometia futuras colheitas, se futuro houvesse. E tempo de semeadura.

 

Roxa de saudade seguiu com o olhar as pegadas que iam da porta ao portão, traçando um caminho sem volta.

 

Azul era a lágrima que lhe esquiou pelo rosto e capotou na curva dos seios, em meio às marcas azuis que o mais devasso afeto ali deixara.

 

Verde-esperança brotava no canteiro de amor-perfeito feito erva daninha. Talvez chovesse à tarde e a chuva lavasse as marcas dos passos que foram. Apagasse a lembrança do que já não era.

 

Amarelou e o medo da manhã que vinha a galope, anunciando o dia vazio, arrepiou os pêlos de seus braços. Sentiu frio. Era o vento. E ele balançava as cortinas, lenços em cerimônia de nunca mais.

 

Laranja-azedo, gosto das lágrimas, suco espremido da vida de tantas noites.

 

Seu grito de dor contida rompeu a aurora riscou o céu emudecendo os galos que prenunciavam a manhã, traçando um arco no céu da sua boca. Com gosto de sangue.

 

Vermelho.

 

 

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