edição 6 | maio de 2006
liberdade

 

abril 
romina conti

Pegou um prestobarba e escreveu depois de cortar os pulsos:

 

a lâmina percorre entra abduz perfaz algum hiato cândido que outrora pândego de si já foi para outro mar de ardósia arder nefastos crimes como quem teceu sua troca

 

a lâmina ardeu urdiu semipousou na mão do alicate que a manuseando como uma pinça foi incisiva ao ponto g e futucando arrancou-lhe as orelhas poros ventas e ventanias que colocou no colo de um tigre de bengala

 

a lâmina tinha só o dom de percorrer aqui e ali aquele bigodinho de casimira que se abria em meio à boca de uma pica nua de si e sem perdigotos brancos por perto e algum escarro verde ou lacrimogênio desterro em fezes se acabou

 

a lâmina serviu para dar o principal caminho para as balas perdidas que refletidas em si despencavam bolinhas de sabão e saíam gotas cristalizadas de algodão doce

 

Falou para o que só ouvia:

 

- Escuta espelho. Abril entrou pelas pupilas trazendo um jogo cedo do vento que invadia que dizia que tremia muito pelas cortinas de enguias e volts e palavras na testa do ontem. Alguma notícia circundou o jornal, mas não entrou ali de última hora somente a manchete escarrando o sangue no café da manhã melita: medito editando sempre as faíscas de pensamento que surgem com aquele homem detrás do outro e além do outro. É a verdade e a outra verdade e a outra verdade - sem se comunicar não dão um samba bom o positivo punque de boutique que seja um pouco positive punk. Agora o agora sucumbe ao inerme e exato circo dos sistemas e dilemas como se a angústia decalcada e podre fosse somente só somente angústia só somente só somente só assim vou lhe chamar assim você vai ser melita e mais café no leite e leite quente na refeição que é bom: e o queijo no café e no café o queijo fétido e aquele queijo com o verde do escarro e aquela verde cor-de-palmeiras e da cor do sistema brasileiro de emblemas - o sbe. Sonho de uma noite. Sete de abril de 2000. Acordo e idéias subtraem idéias. A gente vive muitas angústias na vida. Se uma mulher que se diz minha não quer beijar a minha boca porque se diz triste e porque diz que estou fedendo quando tomei um banho por ela para vê-la e receber seu beijo. Será que a morte me beijará antes que você? Quanto será que custa um beijo na boca? Não consigo entender por que uma mulher não quer beijar a minha boca. Devo eu estar com problemas e será que os problemas são meus ou ela estará fingindo que se apaixona pela pessoa certa e só se apaixona pela pessoa errada. Acho que é hora de romper com uma amizade que está sendo o que o outro quer, mas não o que eu quero. Tudo muito marasmo, muito coisas assim: totalmente liberdade pra ela e nenhuma liberdade pra mim. Ela me prende e não deixa que eu saia de mim mesmo eu não me iludo e eu sei que não há futuro para nós e muito menos para mim. Será que juntos vamos viver mais ou menos ou será que este discurso louco é louco demais para o meu tempo louco? Eu me sinto muito pequeno quando quero pedir um minuto de sexo e não sei se eu sou tão pequeno porque penso em sexo se eu gosto de sexo e se é no sexo que eu me sinto bem com ela. Já não tenho assunto pelo telefone. Não sei mais conjugar os verbos e eu fico pensando se ao invés de falar ela estivesse me usando sexualmente porque quero ser usado desordenadamente como esta fala mal falada, entende?

 

- Entendo.

 

- Entende o quê?

 

- Sou pago para entender.

 

Então o que falava levantou-se e pegou o que só ouvia pelo braço e deu-lhe um beijo na boca. Saíram camundongos pela orelha do que só ouvia que disse:

 

- Caralho do céu. Saiu um bacuri morto do meu ouvido.

 

- No seu ouvido só entra - disse o que só falava.

 

O que só falava sentou a porrada no que só ouvia que a esta altura falava:

 

- Eu não falei nada.

 

O espelho quebrou-se. O que só falava e o que só ouvia eram a mesma pessoa. 13 anos de azar porra.

 

                                                                                                        tudo o
                                                                                                        uvirou
                                                                                                        sangue
                                                                                                        ouvira
                                                                                                        impávi
                                                                                                        doqnem
                                                                                                        sangue

 

a lâmina percorre entra abduz perfaz algum hiato cândido que outrora pândego de si já foi para outro mar de ardósia arder nefastos crimes como quem teceu sua troca

 

a lâmina ardeu urdiu semipousou na mão do alicate que a manuseando como uma pinça foi incisiva ao ponto g e futucando arrancou-lhe as orelhas poros ventas e ventanias que colocou no colo de um tigre de bengala

 

a lâmina tinha só o dom de percorrer aqui e ali aquele bigodinho de casimira que se abria em meio à boca de uma pica nua de si e sem perdigotos brancos por perto e algum escarro verde ou lacrimogênio desterro em fezes se acabou

 

a lâmina serviu para dar o principal caminho para as balas perdidas que refletidas em si despencavam bolinhas de sabão e saíam gotas cristalizadas de algodão doce.

 

 

 

a morta feliz
santa maria

Amanheceu estendida na calçada. O corpo descoberto de vida, vestido de nudeza. Seus olhos vítreos e entreabertos fitavam o vazio, acima da boca ovalada e congelada em um grito morto, por onde escorria um fiapo vermelho. Parecia ofertar um obscuro bom-dia aos espectadores que formaram um círculo de carnívora novidade ao redor dela. Olhares curiosos arregalavam-se de todos os portões, janelas, cantos e esquinas, velando o cadáver da morta. Murmurinhos. Falatórios. Benzimentos. Alvoroços. Soluços. Risadas. A pequena platéia presenciava participativa, profanando a santidade da boneca de carne e osso despencada, esparramada sobre os quadriculados da calçada fria. Ninguém sabia nem conhecia a morta trazida pelo amanhecer. No edifício em frente, apenas uma janela entreaberta revelava os dois lados de uma cortina branca se abanando, sorrindo escancarada, asas esquecidas expostas ao vento num silencioso adeus. Acenderam uma vela para iluminar a sua tristeza. Em seguida, estenderam um lençol imaculado a fim de esconder de si mesmos aquela verdade morta, aquela nudez anônima, aquela dor calada. Ave abatida. Flor destrinçada. Sono petrificado. Uma sirene tocou, distante, rasgando o trágico ar matutino. Então alguém notou que uma de suas mãos era um cofre fortemente cerrado, lacrado e secreto. Levantaram seu punho esmorecido e abriram seus dedos quase rígidos. O pequeno objeto fino e dourado, único vestígio por ela carregado, saltou da sua pálida caixa despalmada e rolou em círculos pelo chão, embrenhando-se aos pés do povo, rumo à sarjeta. Era um simples anel. Uma aliança de casamento, pequena algema da vida. Seu grilhão dourado. Estava, enfim, livre.

 

 

 

meu pai era um cavalo
tereza yamashita

Meu pai era um cavalo, ou melhor, um cão dos diabos.

Eu quase nunca conseguia entender o que ele dizia, porque ele não falava, ele gritava.

 

Ele era o tipo mais estranho que eu conhecia. Baixinho, barrigudo, com cara de buldogue, as bochechas grandes e cheias de rugas, um tipo muito mal-encarado. Deus me livre! Parecia que iria nos morder só com o olhar. Além do mais, vivia peidando e soltando uns grunhidos estranhos, principalmente quando estava furioso. Sem jeito algum com as crianças, vivia nos expulsando da sala, do quarto, da cozinha, de todo lugar.

 

Cinco pentelhos! Formavámos um batalhão de esfomeados. Eu, naquela época, entre cinco e seis anos. Mirrada, muito tímida no meio de quatro meninos fedorentos e piolhentos e de um pai buldogue. Mas uma coisa eu sabia fazer e fazia muito bem: morder. Qualquer filho da puta que me enchesse o saco, eu mordia. Tacava os dentes onde quer que fosse. Na bunda, na perna, na orelha, no nariz. Pudera, filho de peixe, peixinho é.

 

- Cadela! - todos gritavam. Eu nesse instante me sentia vitoriosa. Disfarçadamente, dava um sorriso malandro, de canto de boca.

 

Ah, tinha me esquecido da minha avó! Outra pessoa estranha. Ela vivia escondendo comida pela casa. Muitas vezes a casa ficava com um cheiro de carniça. Depois passava. Acho que as ratazanas devoravam tudo. Ratazanas, sim, embaixo da casa tinha um porão, e vivíamos escutando ruídos estranhos através dos tacos.

 

No meu quarto havia um buraco pequeno no chão, eu vivia olhando através dele e enfiando coisas dentro dele. Um dia, com o dedo enfiado no buraco tentando pegar uma bolinha de gude que escorregou, senti uma coisa horrível, peluda e molhada. Tirei o dedo rapidamente e o cheiro que ficou no meu dedo era nauseante. Vomitei ali mesmo. O pior é que o vômito escorreu pelo buraco e ouvi barulhos estranhos. Acho que as criaturinhas estavam brigando para comer o vômito.

 

Nessa noite tive um pesadelo horrível. Sonhei que mordia uma ratazana e depois disso eu começava a ficar cheia de pêlos, e na minha bunda começou a crescer um rabo vemelho e peludo.

 

Corri para a cama da minha avó e levei outro susto, minha avó estava quase sem boca. Só havia aqueles olhos bem abertos me perguntando: - O que foi, menina? Não posso nem dormir em paz? - Minha avó estava sem a dentadura. Seu rosto estava murcho. Horrível! Corri de volta para a minha cama e adormeci.

 

Engraçado, na manhã seguinte ela estava na penteadeira se olhando no espelho. Passava algo no rosto. A pele enrugada pelo tempo e os olhos vivos, mas profundos.

 

Fiquei admirando-a pela porta. Ela me viu e pediu que eu entrasse. Estava diferente, até me deu um beijo na testa. Foi quando eu reparei na caixinha de pó-de-arroz. Era um estojinho prateado, de plástico. Com um círculo redondo dourado no meio da tampa. Ao abrir o estojo, vi que ele tinha de um lado um espelhinho e do outro o pó-de-arroz, com uma esponja bem macia em cima. Fiquei maravilhada, nunca tinha visto um objeto tão lindo na minha vida.

 

Minha avó percebeu o meu encantamento e disse que me daria a caixinha assim que o pó terminasse. Meu coração saltou pela boca, nunca tinha ficado tão feliz. Abracei a vovó com carinho. E saí correndo, pulando de alegria.

 

 

Todos os dias eu perguntava para minha avó se o pó havia acabado, e nada. Passaram-se meses e todo dia eu fazia a mesma pergunta. Ela sempre me dizia:

 

- Paciência, ainda tem muito pó. Eu não esqueci o prometido - e ria.

 

Foram dias de angústia e euforia. Quando minha avó não estava por perto, eu passava a esponja no pó e esfregava nas bonecas, pra ver se o pó acabava mais rápido.

 

Infelizmente papai me viu fazendo isso e, como sempre, gritou, peidou e me deu um pontapé no traseiro. Disse pra nunca mais mexer nas coisas da minha avó. Morri de medo de que ele contasse pra ela, mas ele estava muito bêbado e logo esqueceu tudo.

 

Ele bebia muito, depois que chegava do trabalho. Acho que ele não gostava do serviço que fazia. Pudera, ele era lixeiro. Vivia fedido e com as roupas sujas.

 

Às vezes ele trazia umas coisas pra casa, acho que encontrava no lixo mesmo.

 

Uma vez voltou contente, havia encontrado uma garrafa de uísque - "Dos bons", ele disse, e o melhor é que estava quase cheia. Nesse dia ele bebeu até! Não bateu em ninguém, e estava chorando quando olhei pra ele. Ao meu ver ele fez cara feia e foi para o quarto. Depois de um tempo eu fui espioná-lo, ele estava com a foto da mamãe entre os braços e dormindo. A mamãe, eu não a conheci. Meu pai disse que ela era uma cadela das boas, que fugiu com o seu melhor amigo. E disse que eu nunca fizesse o mesmo, que jamais virasse uma cadela, senão ele me matava.

 

 

Foi num domingo, nunca me esqueci daquele dia. Meu pai estava louco, tinha fumado um cigarro estranho e estava muito bêbado. Gritava o nome da mamãe e começou a dizer que era culpa da vovó. Ela tinha criado uma puta, uma vaca, uma sem-vergonha.

 

Ela tinha que ir embora de lá, ele a odiava, ela fazia com que ele se lembrasse da mamãe.

 

Minha avó chorava e perguntava quem iria cuidar das crianças. Mas meu pai estava louco, começou a jogar as coisas no chão e a quebrar tudo. Vovó me pegou pelo braço, nós corremos para o seu quarto, fechamos a porta, mas ele arrombou. Gritamos com ele, pedimos que parasse, mas nada, ele nos empurrou e começou a quebrar tudo que estava em cima da penteadeira. Fiquei em pânico, a minha caixinha estava lá e faltava pouco para o pó acabar. Corri na frente do papai e peguei a caixinha, não adiantou, ele tomou-a de mim e jogou no chão com tanta violência que a caixinha ficou em pedaços.

 

O espelho se espatifou e o meu coração também. Dei um berro alucinado e comecei a bater no meu pai. Ele se assutou e me abraçou, tentando me imobilizar. Eu o mordi com todas as minhas forças, seu braço sangrou.

 

Ele me olhou com tristeza e partiu.

 

 

Anos mais tarde, no dia do meu casamento, na hora em que eu ainda estava me vestindo ele entrou no meu quarto. Entrou sorrateiro e cabisbaixo. Essa foi a primeira vez que ficamos sozinhos novamente desde a grande briga. Ele nunca mais havia colocado uma só gota de álcool na boca. Porém seu jeito continuava o mesmo: grosseiro e mal-humorado. A cara de buldogue bravo também continuava a mesma.

 

Gelei dos pés à cabeça, achei que ele ia me bater quando ergueu a sua mão rispidamente. Achei que ia dizer e fazer as mesmas coisas que dizia e fazia quando eu era menor, me chamar de cadela e mandar que eu nunca fizesse o que minha mãe tinha feito.

 

Com espanto e medo, olhei para suas mãos. Nas duas palmas abertas havia uma pequena caixinha prateada. Ele fez um gesto para que eu a pegasse.

 

Com as mãos tremendo, peguei-a rapidamente. Quando a abri, a minha surpresa foi grande! No lado interno da tampa havia um pequeno espelho, e logo ouvi um som doce e delicado.

 

Era uma caixinha de música.

 

Quando ergui os olhos, meu pai já havia partido. Creio que nessa hora encontramos, nós dois, a liberdade.

 

 

 

 

6 poemas 
valéria tarelho

azo

 

o pássaro
pousa
passivo
na pauta
do poente
pausa
em compasso
de espera
passa
tempo
tempo
passa
pensa
pondera
ousa
e abre
as asas
rumo
ao sol
no fim
do túnel

 

 

 

 

conto final

 

um ponto encerra

a sentença

que me condena

: pela reticência

vírgula

pelo et cetera

 

um ponto finda

o erra-uma-vez

e me livra

da reincidência

 

 

 

 

parto

 

é hora

de içar as velas

e vê-las

(a)mar adentro

(gr)ávidas de vento

 

 

 

 

as horas (suicidas)

 

it's too late:

minha poesia late

e mostra os dentes

 

rosna

avança

parte

para o ataque

 

vira e mexe 

me acomete

um uivo de liberdade

 

meu lado lobo

virgínia wo(o)lf

 

 

 

 

quae sera tamen

 

arraigado em mim
há um bicho arredio
acuado no tédio
urrando liberdade
ainda que poesia

 

 

 

 

levis & leevre

hoje dispenso meu lado dark
e largo, no armário,
o pretinho básico, diário.

pra variar, (ul)trajo algo indigo :
rasgado, justo, sujo, stonado... 

- um escândalo, ele diria -

sábado,
abaixo do umbigo
e acima da virilha,
não quero nada bem comportado.

 

 

 

 

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