edição 8
| julho de 2006
uma girafa flutuando O professor de Matemática era uma decepção para nós, sempre dispostas a exaltar ou massacrar nossos ídolos. Suas aulas e atitudes eram tão desanimadoras que volta e meia inventávamos um motivo para sair da sala e ficar tagarelando no corredor. Ou para ir ao banheiro engasgar com um cigarro. Ninguém saberia quem era o professor Mateus não fosse Maria de Lurdes. A negra de cabelo pixaim, desengonçada como girafa, usava uniforme de segunda mão. Todas nós de famílias humildes, a maioria filhas de imigrantes ou de seus filhos. Nossos pais comerciantes, professores, funcionários públicos. A menina de pai médico era invejada, escorraçada por freqüentar a escola pública. Ninguém invejava Maria de Lurdes, fosca como lâmpada queimada. Ninguém invejava a filha da empregada do diretor da escola. Sentava na última fila da sala. Quase não abria a boca, a não ser para mascar chiclete ou comer pipoca no intervalo entre as aulas. Ninguém sabia como tinha ido parar na quinta série, mas devia ter dois ou três anos a mais que nós. Suas notas eram baixíssimas. Não prestava atenção em nada, olhava para os professores e para nós como se fôssemos turistas no zoológico. Rejeitada no time de basquete embora fosse a melhor jogadora, ninguém a queria, nem nos grupos de trabalho. Nunca entendia uma instrução. Parecia viver em outro lugar, distante de nós, dos professores, das aulas, da escola. Parecia sonhar com a época em que fora animal selvagem, correndo na savana africana. Ninguém lembraria dela não fosse o professor Mateus. Ela não era melhor em Matemática que em outras disciplinas. Ao contrário, corria o risco de reprovar a quinta série pela terceira vez. Antes do fim do ano letivo deixou de vir às aulas. Quem se importava? Percebemos que não vinha porque ninguém respondia seu nome na chamada. Estivesse ali ou não, era a sombra duma assombração. Mas o professor Mateus, o sem sal que dava aulas como autômato, sentiu falta. Quis saber porquê não vinha mais. Quem se importava? O professor Mateus pediu ao professor Alceu, o diretor, que perguntasse à empregada por que Maria de Lurdes não vinha. O professor Alceu disse que tinha trocado de faxineira há duas semanas, a outra abandonou o emprego. A mulher dele ficou louca, elas eram assim mesmo, quando mais precisava, davam no pé. O professor Mateus perguntou onde morava a mãe de Maria de Lurdes. O professor Alceu não sabia. A mulher dele não sabia. A professora que havia indicado a mãe de Maria de Lurdes pra faxina também não sabia. Então, o professor Mateus, que poderia deixar a história morrer aí - lamentável, muitas crianças abandonam os estudos todos os anos, comentou o professor Alceu -, o admirável professor Mateus foi adiante. Foi à única estação de rádio da cidade, anunciou que procurava a aluna. Ouvimos ele pedir, com voz trêmula, que quem tivesse notícia ligasse para o número tal (deixou o telefone de casa). Preferiríamos que tivesse virado o rosto para o quadro negro e os livros e jamais despregado os olhos deles. Quem se importava? Ele foi firme. Chegaram notícias de Maria de Lurdes. A mãe dela ligou, assustada, disse que a filha não voltava à escola. O professor perguntou se não poderia ir à casa dela conversar com Maria de Lurdes. Pegou o endereço antes que ela colocasse o fone no gancho. Ela deu o nome da vila em que morava. Num
bairro que mal sabíamos existir na cidade. Não tinha endereço, só indicação.
Todo mundo se conhecia. Foi fácil achar a mãe de Maria de Lurdes, contou
depois o professor Mateus. Quando disse que era o professor, a mulher
caiu O professor Mateus contou tudo sem um pingo de tristeza. Com a mesma cara indiferente com que ensinava a calcular juros e porcentagem, disse ter achado triste o sol desaparecer detrás dos barracos. A bola de fogo desmanchando, espalhando um arco de cores quentes sobre a vila. Devia ser efeito do cansaço, por perambular horas ali. Depois do trabalhão que teve para tentar achar a aluna ia embora. Ia embora quando a mãe de Maria de Lurdes perguntou. Por que o senhor veio aqui?
Antes
de nos enlutarmos pela tragédia de Maria de Lurdes abríamos as janelas
da sala de aula no terceiro andar com estardalhaço para provocar o primeiro
homem de nossas vidas. Sentávamos no parapeito, desafiadoras, olhando
a quadra de basquete vazia. O professor Mateus passou a ficar em pé
diante de outro parapeito, fumando e vendo a zeladora varrer o pátio.
Via as nuvens formarem figuras de animais: tigres, gatos. Peixes, bailarinas.
Por vezes uma girafa enroscando as patas traseiras nas dianteiras enquanto
corria na savana iluminada.
chincalho Martina
era mulher séria e robusta. Não tolerava descaramentos e brincadeiras
fora de hora. A bem da verdade, Martina não aturava nada que fosse bonito:
nem canto de passarinho, nem nuvem passeando no céu. Verdade
seja dita, o céu de Martina era medonho e cinza. Martina
tinha o hábito de se sentar em um banco de praia para ler a Bíblia e
se concentrava ferozmente na pregação dos castigos àqueles que, ao contrário
dela, sequer sabiam rezar o Pai-Nosso. Havia
um moço muito folgazão, o Casemiro, cuja principal diversão era atormentar
Martina. Quando a mulher passava em frente à sua casa, Casemiro berrava:
- Hei,
dona Martina, é verdade que a senhora nunca viu passarinho verde? E
roxo, a senhora viu? - Cale
a boca, seu descarado ateu! - Ainda
vou lhe mostrar, dona Martina, um passarinho diferente - E se acabava
de tanto riso, o Casemiro. Certo
dia começou a correr boato de que Martina estaria gravemente enferma,
presa ao leito, sem poder colocar os pés para fora de casa. Casemiro,
que além de desavergonhado, também era abelhudo, resolveu conferir pessoalmente
se, de fato, a mulher estava doente. Casemiro
bateu palmas, gritou e, sem resposta, entrou pelos fundos na casa de
Martina. Encontrou-a estatelada sobre a cama, vestida com um camisolão
florido. Os olhos estavam vidrados, os cabelos soltos e despenteados.
A mulher tremia. - Dona
Martina, a senhora está... - Quero
ver, Casemiro! - Ver
o quê? - Aquilo,
Casemiro. Aquilo que você diz ser diferente. - Ah,
dona Martina, foi só brincadeira descarada de desocupado. Não ligue...
- Agora,
Casemiro! Quero ver! Assustado,
o moço girou sobre os calcanhares, mas Martina, bem mais rápida, agarrou-o
aos gritos: - Anda!
Abaixe essas calças! - Não,
dona Martina, a senhora enlouqueceu? Cheia
de febre, suando, a grandalhona atirou-se sobre Casemiro, arriando-lhe
as calças. O moço bem que tentou se safar, mas a mulher tinha a força
de um cavalo. Martina
fez o que quis ao Casemiro: saltou sobre seu corpo, atracou-se a ele,
cavalgou-o, puxou-lhe os cabelos, estapeou-lhe a cara e sangrou-lhe
a boca. Finalmente
satisfeita, rolou para o lado, deu um berro e quedou desmaiada. Casemiro,
mais morto que vivo, cambaleou porta afora, todo estropiado. No dia
seguinte, Martina voltou às atividades diárias, emburrada e séria, como
sempre. Ao passar, porém, em frente à casa de Casemiro, soltou um pequeno
grunhido. - Passarinho
diferente. Pois sim! o
mito espancado Mercúrio,
um sujeito muito apressado e cheio de compromissos, teve que empreender
longa jornada. Ocorre que o dito cujo possuia uma caixa secretíssima,
a qual não poderia levar em sua viagem. Sem opção e devido à pressa,
deixou a caixa aos cuidados de Epimeteu, meninote metido a inteligente,
verdadeiro chato de galochas. Epimeteu,
louco para se fazer de importante, convidou a namoradinha Pandora a
ver a caixa que ficara sob sua guarda. A mocinha, claro, não gostou
nem um pouco daquele baú sem-graça e fez ares de quem preferiria tomar
sorvete ao lado do bonitésimo Apolo. - Oras,
Pandorinha, esta caixa esconde um tesouro dos mais importantes, sabia? - É jóia,
é? Ou dólar? - Não
sei, Pandorinha, mas o mensageiro recomendou muitos cuidados, dizendo,
inclusive, que a tampa desta caixa nunca foi aberta. - Hum...
Acho que vou tomar sorvete. - Imagina,
Pandorinha, vou até a sorveteria e volto em um minuto com seu picolé
preferido. Tão logo
Epimeteu saiu, Pandora abriu a caixa. Uma nuvem enorme tomou conta da
casa. Era o
gênio da caixa! - A senhora
tem direito a três desejos. Mas ande logo, porque preciso escapar desta
caixa antes que Mercúrio retorne de sua viagem. Já suportei aquele indivíduo
por tempo suficiente. - Quero
ser rica, quero ser bonita e... - E... - Quero
saber o segredo dos homens. - Bem,
os dois primeiros desejos já foram atendidos. Confira sua conta bancária
e o espelho. Quanto ao terceiro desejo, venha até aqui perto para que
eu possa dizê-lo baixinho. - Tá... - Mais
pertinho... - Assim? - Mais... - Vixi!
Então é este o segredo? O gênio,
sorrindo muito amarelo, nem se deu ao trabalho de responder, simplesmente
escafedeu-se janela afora. Epimeteu
encontrou Pandora sentada tranqüilamente em frente à caixa. Engraçado
- pensou o menino - Pandorinha está diferente, mais bonita, sei lá...
- Pandorinha,
não tinha de chocolate... - Não
tem importância, Epimeteu, preciso mesmo ir embora. - Vamos
ao cinema mais tarde? - Sabe,
estou com uma baita dor de cabeça. Passaram-se
os anos e as personagens desta história tomaram rumos diferentes: Mercúrio,
após longo processo administrativo por negligência, foi exonerado a
bem do serviço dos Deuses. A pressa, que sempre lhe garantira o cargo,
fora também sua ruína. Epimeteu
acabou se casando com a melhor amiga de Pandora, mas, lá no fundinho,
ainda tremia ao pensar na primeira namorada. Nunca conseguiu um bom
emprego, pois Zeus, assim como Mercúrio, não o consideravam de confiança. Pandora
mudou-se para Lesbos, tornou-se ativista política. E foi muito feliz. Bem, quanto ao gênio da caixa, sabe-se que ainda anda por aqui e ali, espalhando o segredo dos homens...
ele
É
noite de lua plena. Troquei as cortinas escuras de meu quarto por um
fino véu azul transparente. Há tempos o observo da janela. A primeira
vez que o vi chegar, acompanhado de uma bela mulher, pensei tratar-se
de um casal qualquer.
Tantos
já vi daqui a aproveitar o isolamento do parque à noite para saciar
suas ânsias de despirem-se, doarem-se e tomar do outro sua energia mais
íntima e sagrada. Era um casal estranho. Ele, feio demais para eu acreditar
naquilo, pedia coisas obscenas e aterradoras à bela. Ela negava visivelmente
agarrada ao pejo que forjaram em seu espírito. Negava, mas não tirava
os olhos dele, que ao invés de recuar avançava e lhe pedia algo ainda
mais obsceno e horrendo. A lua parecia iluminá-los mais à medida que
ele ousava nas palavras e falta de decoro.
As
peças que a cobriam iam sendo retiradas por ela em movimentos desconexos.
Parecia que a roupa pinicava-lhe ou passara a pinicar, pois se justificava
irritando-se com as pobres vestimentas e acessórios sem motivos aparentes.
Ele não olhava seus gestos diretamente. Preocupava-se em repetir os
pedidos, em verificar as mutações que aconteciam em seu corpo. Fazia
questão de deixá-las à luz da lua para que ela também visse. Seus pêlos
cresciam e encrespavam-se. Suas formas avolumavam e endureciam. Sim,
apesar da distância podia sentí-las rijas e delineadas.
O
nariz e a boca precipitavam-se à frente. A boca e os dentes aumentavam
em proporção inversa ao nariz. As narinas abriam e fechavam cada vez
mais rápidas. A bela, já completamente despida, elevava as mãos em sua
direção, mas ainda sem coragem de tocá-lo. Urinava-se. Apoiado nos pés
e nas mãos ele passou a rodeá-la bem de perto. Roçando os pêlos na sua
pele branca, quase a derrubando, ora para um lado, ora para outro. Permaneceu
assim durante muito tempo. Calmamente. Parecia não ligar para a ansiedade
dela. Ela tremia, acariciava-se, chorava baixinho, mostrava-lhe o sexo
e ele não a tomava.
Continuava
seu círculo ao redor dela, exalando seu cheiro cada vez mais forte.
Um cheiro agudo, oleoso, adocicado, azedo, que me turvava de leve os
sentidos, quando chegava com a brisa em minha janela. O suficiente para
eu não sentir pena dela, apenas inveja. O passeio continuou por mais
tempo. Mais tempo que ela podia suportar. Não fiquei surpresa ao ouvi-la
implorando que a devorasse. E ele o fez. Calmamente durante toda a noite.
À medida que a lua ia caminhando no céu seu corpo voltava à forma anterior.
De madrugada enterrou os ossos, limpou-se. Saiu tranqüilo, livre.
Todas
noites de lua plena ele volta. Nunca soube nada sobre aquelas mulheres.
Nenhuma reportagem, nenhuma busca, nenhum cartaz de desaparecimento.
Numa cidade deste tamanho muitas pessoas somem sem ser notadas. Já passa
das oito e ele não apareceu ainda. Estranho, alguém na porta, nunca
batem à minha porta.
correntes & correntezas -
É rim, doutor, tenho certeza. Dói quando sento, arde quando mijo, minhas
pernas ficam mais duras que um pedaço de pau. Dói feito a porra se fico
em pé, dói mais que a vida se deito. Doutor, não tenho posição pra nada,
pra qualquer coisa, o senhor entende? Só pode ser rim! Sérvulo
Márcio de Toledo Muller, o médico, olhava por cima dos óculos de aros
de ouro branco a caridade que faria à irmã de sua secretária. Rodava
entre os dedos finos de unhas polidas a grossa Aurora com um diamante
incrustado na tampa, presente da mulher magra e loura que sorria na
neve de Aspen, emoldurada de aço escovado. -
Mijei sangue, doutor, essas coisas acontecem quando fico de chico, mas
num tava. Só pode ser o rim. Jaleco
longo sobre a camisa de listras azuis e brancas, Hermenegildo Zegma.
Punhos brancos e antigas abotoaduras brasonadas. Minúsculos regadores
aguavam minimalistas florzinhas no azul marinho da gravata Hermes e
o decote à sua frente sugeria o Monte Olimpo, morada de todos os deuses,
néctar e ambrosia, quiçá leite de Amalthea na garoa do fim da tarde. -Tomei
chá de quebra-pedra, mama cadela, picão e nem assim. Trinta copos d'água
por dia, banho quente na banheira da vizinha, o senhor não acha que
só pode ser rim? Nenhuma
gravura numerada, tudo óleo sobre tela, todas as peças assinadas. Nenhum
furo de charuto nos Isfahan e Tabriz onde os pés de unhas um tanto longas,
vermelhas, cintilantes, revezavam-se num cruzar de pernas grossas, balançando
as plataformas de cortiça. -
É o rim, doutor? Vísceras
duplas que segregam a urina. Que é duas vezes maior que o outro. Posto
à margem. Marginalizado. Líquido excrementício. Dois dedos de raízes
grisalhas em meio à cabeleira loura. Linho sintético no casaquinho malcortado.
Um buraco na renda da calcinha. E a colônia da Avon perfumou a distância
que o separava do que, naquele instante, era tão próximo. -
Dois, dona Suely, somos dois, digo, são dois, os rins.
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