edição 9 | agosto de 2006
sonhos

 

1 poema
jussara salazar

a colheita dos sonhos

 

O manto do bosque abriu suas asas:

três álulas lunares,

três álulas

com fios luminosos nas

flores sob o manto sagrado de Tz’u-hsi

divagaram no meio da fumaça branca

mais precisamente quando

o filósofo atravessou o vão tatuado com papoulas negras nas paredes,

subiu até a porta do cômodo azul

e disse: das wässer — (em sua língua real a palavra síphon).

 

Filetes de água brotaram do chão

e o ar ecoou o canto

das náiades.

           

Parábola mágica,

 

alumbrou as cabras de pêlo longo

e os bois com corcova

e chifres de cabrito montês.

E alumbrou

os muros caiados

em volta da casa.

        Caeleste luce.

        Ayf. 

Dessa ceifa consumou-se a colheita de sonhos.  

 
 
 

 

trauma
mariza lourenço
 

Era bonita, jovem e doida pra encontrar marido.

 

E por conta dessa vontade, vivia acendendo velas pra Deus e pro Diabo.

 

Um dia suas preces foram atendidas, se por Deus ou pelo Outro, ninguém nunca há de saber. Arrumou um pretendente bonitão, com ares de honesto. Casaram-se e logo deram início à numerosa prole: seis ao todo.

 

Entre uma e outra lavagem de fraldas e cuecas sujas, a moça, que tanto sonhara estar casada, olhava-se ao espelho e constatava, com certa tristeza, a passagem do tempo, a chegada dos pés-de-galinha e, claro, o corpo que já nem era corpo, era depósito de leite, era coisa esquecida do amor.

 

Entre uma e outra lágrima, porque o tempo era escasso até pra chorar de verdade, resolveu apegar-se a antigas crenças. Acendeu algumas velas, sem destino certo. Tinha vergonha de (des)pedir o que já fora pe(r)dido.

 

Não foi atendida. Nem por Deus nem pelo Diabo, que tinham mais o que fazer.

 

 

 

 

um pouco mais  
roberta silva

Espere um pouco mais antes de perder a inocência. É o último ponto final, prometo. Não estou aqui faz tempo. Se tivesse chegado antes, bem antes... Tinha mais cachos meu cabelo, mais cor, daria volta em sua cintura. Seu braço laçaria a minha. Acharia graça de suas piadas mesmo sem entender a maioria. Ser encantador apenas me encantaria.  

 

Trago comigo o peso de amores-sem-fim finados à míngua. Promessas-sem-fim quebradas em várias línguas.

 

Espere um pouco mais e fuja de mim. Do medo que tenho de sua sede de vida. Da preguiça que sinto dos que sonham ainda. Sua fé debocha de minha apatia. Minha vista embaça com sua beleza. Sou vidraça, você ventania.  

 

Estamos em lados opostos do mesmo enredo. 

 

Espere um pouco mais antes de ouvir meu conselho.

 

 

 

 

o nobre encontro
ro druhens

A altiva testa, enfeitada de rugas e fios brancos, curvou-se em direção à mão de longas unhas, vermelhas, manchada pelo tempo. Os lábios finos ensaiaram um movimento de beijo. Entre os lábios e a mão passou a sombra dos boleros, da casimira inglesa, dos Cadillac. Ele a viu envolvida em cetim e pérolas e as longas luvas que lhe cobriam os antebraços. Ela se viu envolvida em Bond Street e Brilcream. 

 

Os olhos dela não mais lhe permitiam proximidade com o cardápio, sem que seus braços não atravessassem a mesa e quase o tocassem. Os olhos dele não mais lhe permitiam proximidade com o sonho, sem que seus braços não atravessassem o tempo e quase a tocassem. 

 

Era aquela a primeira vez que se viam depois de tanta conversa de fim de tarde no chat. 

 

O sorriso dela custara mais do que seis meses do aluguel dele. O sorriso dele custara noites insones, à procura dela.  

 

O corpo dele era uma curva descendente em direção ao cansaço. O corpo dela era uma curva ascendente em direção a ele.  

 

Os limites impostos pelo chá de saquinho. Pelo medo de que ela se aventurasse pelas tortas austríacas, pelas geléias inglesas, pela boulangerie francesa que, do outro lado do balcão, traziam até ele os melhores dias.  

 

Os limites impostos pelo chá de saquinho. Pelo medo de que ele se aventurasse pelas pregas de sua saia, pelos botões de seu decote, pela coqueterie francesa que, do outro lado da vida, traziam até ela os melhores dias.  

 

A visão do tempo na cara do outro trazia o tempo pra dentro da xícara do chá, dos botões e das pregas. Impedia o hoje. Levava de volta o amanhã para o ontem.  

 

Mais velhas do que eles, as lembranças.

 

E assim, em meio a teias e traças, traçaram a teia do nada.

 

 

 

.

 

compartilhar:

 
 
temas | escritoras | ex-suicidas | convidadas | notícias | créditos | elos | >>>