edição 11 | outubro de 2006
lugar

 

o engolidor de cidades
(De "O Teatro Circular")
jussara salazar

Se existe um lugar, um lugar verdadeiro, é o Lugar-Nenhum.

Assim repete Rosamundo, o engolidor de cidades.

Foi ele, inclusive, quem soprou ao ouvido de Italo Calvino a existência das cidades invisíveis, os territórios conquistados na imaginação de Kublai Khan, o imperador dos Tártaros, cidades essas que ele conheceu apenas através dos relatos feitos pelo viajante Marco Polo, mas isso é uma outra história.

Rosamundo gira pela terra, percorre todos os lugares e por onde passa com seu "Teatro de Alegorias Rosamundo Galaz", é aplaudido por uma platéia atenta que ouve o intrépido astro engolir as palavras das cidades e vilas, fazendo-as desaparecer.

O destemido Galaz canta sete loas de trás para frente descrevendo os lugares, e num piscar de olhos tudo transforma-se em idéia, tudo passa a fazer parte do mundo dos viajantes da memória, onde as cores são infinitas, onde os cristais refletem uma luz incomparável, onde enxerga-se através de paredes, onde as pessoas vivem em liberdade.

Do Lugar-Nenhum fazem parte os reis, as princesas, os duendes, os trevos de cinco folhas, o papagaio-da-cara-roxa, o saci e às vezes até os jacarés e os lobisomens.

Por onde o engolidor de cidades passa com o famoso "Teatro de Alegorias Rosamundo Galaz" nasce um jardim de novas e antigas palavras, cultivado pelos que ficam e território do Lugar-Nenhum. Haverá nesse planeta alguém sempre olhando uma estrela e à espera de que desse estranho lugar chegue um velho cartão postal.   

 
 
 

 

ausência
marília kubota

 

Qual o seu lugar?, ele perguntou. Respondeu: a cadeira vazia.

Lembrou o vaso retirado da mesa, em seu lugar o círculo de poeira. Lugar é espaço com memória. Dentro dela o círculo. Gracejou: Ninguém sabia que debaixo do vaso tinha tanto pó. Mas era preciso retirar-se, ele perguntou. Era. Touros em fúria, o vaso de porcelana. Nunca ouviu falar da história do mundo? Um irmão mata o outro por que o pai prefere o bom. Guerras são uma coisa só: esta morte precoce.

 

 

 

 

papo de criança  
mariza lourenço

— Tá olhando o quê?
— O céu.
— Por quê?
— Quero ver se encontro ela.
— Vó diz que, agora, ela é estrela.
— Não é não. Ela é anjo e anjo mora em nuvem. Olha lá, não parece ela?
— Parece.
— Se a gente chamar será que ela vem? 
— Não vem. Vó diz que ela vê a gente, mas não volta nunca mais.
— Mas vê a gente tão pequeno aqui embaixo?
— Isso vó não falou.
— Tô com uma dor estranha...
— Onde?
— Aqui dentro. Acho que é no coração.

 

 

 

 

algum lugar, lugar algum  
roberta silva

Deixei em algum lugar. A esperança de encontrar morreu e não foi a última, por último foi o tesão. Estímulos externos me dizem cada vez menos, custa-me até espirrar. Nem as bactérias me fazem chorar, mais um pouco congelo.

 

É estranho não saber onde procurar e ter certeza, apesar disto, de que está onde está a fé, a ousadia, a inocência, todas as minhas fichas e o amor de minha vida se perderam antes.

 

Durante um tempo pensei que um desses me reencontraria já que falhei na busca. Olhava nos olhos de pessoas estranhas, coisas estranhas, dias estranhos e dava-lhes meu sorriso. Seria esta a chave para que me reconhecessem. Não era ou nunca esbarrei neles?

 

(Quando a morte primeiro chega ao corpo, aos sentidos a alma fica ali, observando tudo, tentando retomar o controle, viva, ávida. Esvai-se aos poucos ainda disposta a se agarrar a qualquer mecanismo ou privação que a mantenha; máquinas de diálise, corações mecânicos, sem partes vitais, com o fígado de um estranho. Mas se é o espírito quem morre antes o corpo teima e não deteriora, ele quem luta pela vida, quem lhe prende por aqui)

 

Existe uma de mim que ninguém vê. Ela observa ao redor e se pergunta em que momento da aula foi explicado o que parece tão óbvio para o resto da humanidade: "A vida é só isto, isto é muito e devemos ser gratos".

 

Sonho sempre com esta estrada em construção, terra vermelha em dia de chuva. Todos passam por ela e não se sujam. Atravessam a ponte que tem no fim rapidamente, sem vacilar, uma ponte altíssima, feito um andaime tosco de madeiras mal pregadas. Eu tento e não consigo, tropeço, caio pela tangente. As pessoas me olham como se eu houvesse caído à toa, de propósito, como se fosse a primeira.

 

 

 

 

hotel rodoviária
ro druhens

o mofo traçava nas paredes mapas de estranhas paisagens...

 

eram riscos na minha alma arranhões que por ali foram deixados por outra alma que traçou mapas em minha vida e que pra lugar algum me conduziu que não pro mesmo eterno sempre ponto de partida e os recomeços trazem em sua essência a esperança de que possa ser diverso quando diverso só é apenas o modo como se conta uma história e todos os enredos se misturam e todas as histórias são a mesma história

 

a lâmpada vermelha desfocava os objetos que projetavam...

 

sombras

sombras soturnas

sombras perdidas em muros em chãos

sombras dos ecos

das vozes

da vida

vida perdida em muros em chãos

 

a estatueta de porcelana barata era de uma deusa...

 

imolada no altar de todas as perdas dilacerada como se alma me fosse retalhada abrindo sulcos por onde escorresse a bílis que corria em minhas veias pois que sangue já não tinha desde que me esvai nas esquinas de tantos desencontros ofertando o que me foi negado como se eu me negasse a receber o que me fora prometido

 

um cheiro azedo, de vinho velho, impregnava...

 

o lençol que descobrira meus desejos tinha nódoas de todas as cores como se os líquidos em que me desfazia a cada toque pudessem ter as cores de todas as sensações e medos e rebeldia e covardia e tesão e o prazer de me sentir sugada esvaziada morta a cada orgasmo renascida a cada orgasmo viva a cada orgasmo como se meu princípio e meu fim estivessem gravados nas linhas da palma daquela mão que afagava como mesmo ódio com que batia que batia com o mesmo desejo com que afagava

 

o letreiro, de néon vermelho, iluminava a noite como se fosse um...

 

farol de perdidos navegantes porto seguro em mar de tempestade raio de sol por dentre as nuvens negras ombro peito descanso fim da busca perda desencanto vontade de que assim não fosse sabendo que só assim é que era que seria para sempre e nunca mais e a caligrafia trôpega da navalha escreveria o final da minha história da minha vida do meu sonho de nunca acordar.

 

 

 

.

 

compartilhar:

 
 
temas | escritoras | ex-suicidas | convidadas | notícias | créditos | elos | >>>