edição 15 | abril de 2007
fuga

 

fin de siècle
 
no vídeo
um micro
orgasmo

 

 

1 conto
adriana oliveira

um gole

Coloco de volta a calcinha e saio dali, sem olhar para a cara dele. A festa acabou e preciso encontrar o meu marido. Na maioria das vezes, vou direto para o bar. Mas, pelo adiantado da hora, é mais fácil encontrá-lo caído em um canto qualquer.

Recolho os cacos e voltamos para casa.

No início, eu gritava e fazia as malas.

A seguir, veio a tristeza profunda.

Depois, a fase da vingança, em que descontava a minha raiva por suas bebedeiras, trepando com desconhecidos.

Hoje, evoluí na minha catarse, escolhendo como objeto o pau do seu melhor amigo.

Olho para o meu marido deitado sobre a cama, ainda vestido, babando sobre o lençol e não sinto nada.

Vou dormir, pois amanhã é sábado: dia de praia, churrasco e muita cerveja.

 

 

 

súbito barra óbito
bruna beber

meu amor perdeu

os dentes da frente

não pode mais assobiar

seu próprio uivo

 

meu amor perdeu

todos os dentes

não pode mastigar os cacos

de vidro da dor.

 

 

 

cabeça de cavalo
dominique lotte

A estrada que a gente percorre é aquela que a gente mesmo escolheu, nesta noite quente e sem lua eu mesmo a escolhi sem querer escolher, é o homem mesmo que faz, que escolhe seu destino, certo? Mas nada faz escolher o amor, não é mesmo? Não sei, talvez sim, talvez não, eu acho mesmo que ele não tem escolha porque se tivesse não se metia com a mulher errada, eu, por exemplo, estou nessa estrada do inferno fugindo de uma, ou melhor, do marido dela, melhor ainda, fugindo da morte a 110 km/hora, num carro fodido, cheio de problemas, a cada ondulação ele estremece, a cada buraco ele geme, parece até meu irmão de tão parecido que é comigo, eu também gemi quando vi as ondulações dela, estremeci, e meu Deus, como eu gemi agarrado nela e agora estou fodido e cheio de problemas, "se cuide, meu irmão", eu ouvia o motor resmungar, "se cuide, esta noite pode ser a última noite da sua vida", "vai ser nada, seu puto, será a primeira noite da minha vida", gritei para abafar o som do motor; eu não era Benjamin nem ela Mrs. Robinson daquele filme doido, A Primeira Noite de um Homem, eu não acabara de sair da faculdade nem ela era a mãe da minha namorada, nada parecido, eu era vendedor de peças de automóveis e já passava dos cinqüenta e ela era a legítima esposa de um cliente importante e já beirava os trinta; o cara era boa praça, grandão, gordo, contador de piada, chopeiro, já pra lá de Marrakesh, setenta primaveras e com esse cenário só podia dar merda, não acham? Pois bem, na noite que ele me levou pra casa dele ela tava lá de shortinho e aquelas blusas na moda, bem decotadas mostrando os seios, não vou perder o tempo tentando descrever o monumento, mulher chave de cadeia, foi isso que pensei logo ao cumprimentar ela e ele todo orgulhoso ao abraçar ela repetia sem cessar: "o que acha da minha pombinha? O que acha da minha pombinha? O que acha...", eu devia ter me mandado, dado uma desculpa qualquer, mas ela me olhava com jeito jeito de promessa e fiquei, resultado, ele bebeu pacas e adormeceu e eu e ela transamos ali mesmo na sala, no chão; o cara deu um ronco arrasa quarteirão, abriu os olhos, nos olhou, eu de bunda de fora e ela de pernas abertas, não deu pra segurar, gozei e rezei, ela me empurrou, ficou de pé, gritou: "ai amor, ele me obrigou, me ameaçou, tem um punhal, ele é um animal!", o cara deu um berro de elefante e... e... e veio pra cima de mim, corri que nem lebre com as calças na mão, me joguei no carro e agora cá estou, nessa estrada do inferno me mandando não sei pra onde; vocês podiam pensar que era besteira, que com certeza não fora a primeira vez que o figurão dera um flagra nela, que com certeza o corno era manso, mas acontece que ele era o  prefeito, podia me matar ali mesmo, sumir com meu cadáver e assim por diante, tipo filme americano de terceira categoria, portanto, pé na estrada...

 

- animal na rodovia é uma desgraça - falou o primeiro patrulheiro.    

- e esse puto morreu com a cabeça do cavalo enfiada no pára-brisa - respondeu o segundo, enquanto examinava os documentos do morto.

 

 

 

canção pânica
eugênia fernandes

Mancha momentânea

cinzenta penetrante

no todo circundante

baixando dolorosa

antes da treva total.

Numa panorâmica,

num giro radical

o ser se entontece e

na condição pânica

faz o pelo sinal.

Prédios, carros, praças,

nada mais se distingue

antes da treva total;

matiz do envelhece,

augúrio de desgraça

ou (que o Anjo não se

vingue) o Eterno que

desce definitivamente

sem deus que o desfaça?

É pavorosa, todavia,

tristeza que extravasa

e arregala a alma

de si insipiente sem

outra moradia que

o grito que a abrasa;

valia insustentável

da terrena agitação

no seu descompassado

impulso, milênios

num átimo, que a

mancha num rapto

vibra no seu pulso

e agulha a indagação:

"Conhece e não aceita,

não provou e já duvida,

pensa a porta suicida,

mas é na relva que

deita; insulta o Vital e

o vulgo do modo dos

que fazem sangrar e

dos que cospem;

cose e descose dias

para guiar-se e o que

mesmo difícil ilumina

usa para cegar; plana

na vertical divina e

ama a linha horizontal

do mar; ou ao sal se

destina ou apodrece

a vinha nos tonéis do

lagar; o real que rumina

(os cartéis do ar) no

côncavo cristal dos

olhos, o que salva ou

perdoa? Quando sonha

que pousa na louça

da matéria ela presta

se esboroa. Ouça,

pobre teimoso, o

rigor da artéria é

cérebro e coração;

você que é vagaroso,

cala-te, espera e crê.

Assim como é, assim vê".

 

A mancha cinzenta

momentaneamente

parece respirar antes

da noite total, que

tosca e violenta

cai sem anunciar,

trava alma e dente

com seu gume letal,

mas no centro da treva

a lua vista através

da trincada vidraça

é o último lume da

graça, que ele ínvio e

de viés mira sem

resmungar, e tenta

respirá-la feito planta

a luz; mas no espaço

da sala alterca o luar:

"Ínvio e de viés?

Dobra-te! O que

deduz da dor e da

miséria intrínseca

ao seu estar? Dobra-te!

Aceitar não é reduzir-se,

aprenda - morre a

estrela para mais

brilhar em sua senda".

Preso entre dois pesos

não nota a manhã

palmilhando a casa

com sua solaridade sã,

no entanto deixa o

ser aceso curvar-se

ante o secreto que

finíssimo vaza pelas

brechas do teto.

 

 

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