edição 16 | maio de 2007
cheiro

 

de abacaxi
andréa del fuego

Fico perto de meus semelhantes, os de fruta ficam longe dos com leite. O rapaz vai gritando: tem cremoso, tem com fruta. Quarenta graus. Saí da forma há oito horas, estou no fundo do carrinho. Vejo a luz entrar entre nós, pelas laterais, o rapaz deixa um ou outro tombar, procurando um côco queimado. Depois bota tudo no lugar, sem alterar minha rota.

 

Colegas de limão e uva vão desaparecendo ao meu lado, quase caio sobre o de goiaba. Chocolate é mais caro, com granulado dobra o preço. Ainda não vi de melancia, de onde vim, não fazem.

 

Quero dois de abacaxi, pediu uma senhora. A tampa do carrinho se abriu mais uma vez. Ouvi os cremosos em pote sendo tirados do lugar sem cair, ele tem muito cuidado com os de pote. Sundays de morango e baunilha.

 

Foi abrindo-se uma clareira e o amigo de cima foi retirado, fiquei de cara com o rapaz de uniforme vermelho. O céu azul, a senhora loira lembrou, quero mais um.

 

Fui erguido, enfim. O verão chegou pra mim. Das mãos dele para as dela, já transpirei um bocado. O suor escorria em meu vestido amarelo.

 

O rapaz seguiu gritando. A senhora sentou-se ao lado de um menino. Filho, peguei um pra você. Fui entregue ao garoto, rasgou com os dentes minha embalagem, a língua quente resgatava meu suco indo embora, alcançando os punhos.

 

Não me mordia, deixou-me de frente pro mar, diminuindo meu tamanho, lambendo aos poucos. Ofereceu-me ao sol, toda minha fruta, minha água, até chegar ao palito.

 

 

frasqueira
bruna beber

não me emocionam mais os surtos heróicos

de marina para segurar o que já vai

arranhando as unhas nas paredes do precipício

 

e deixo cair

 

os espasmos de saudade que marina sente

do que perdeu porque não cuidou

não me emocionam mais

 

ah, a juventude, a de marina segue relapsa

fazendo de conta como nos livros infantis

e aquela fantasia não me emociona mais

 

uma pena

 

meu coração parou de bater

na tecla que marina chama de destino

e agora o que marina chama de amor

eu não atendo mais.

 

 

 

 

fragile, de jean paul gaultier
dominique lotte

o tiroteio balança o berço,

balas passeiam ao luar,

noticiário alardeia: "o mundo está em chamas!"

e João e Maria rolam na cama igual a todos os dias,

jornais sussurram pavores e horrores

e carinhosamente adulam as madames:

"off price" no shopping do caralho

e por que a surpresa do sangue no assoalho

do trem, metrô, ônibus e andaimes

e nas manhãs do café requentado e pão dormido

e no jantar com a mulher desfalecida

é assim que muitos vivem com o cheiro de carne sem vida

e a noite na viagem de rotina

não sentem o perfume das estrelas.

 

 

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