edição 24 | março de 2008
temas:  labirinto | família

 

poema para uma cidade de ratos e de homens
jussara salazar

 

 

"Aspiro ao grande labirinto"

Hélio Oiticica

 

 

A cidade começa com uma linha.

Aqui rasteira, contorna, geométrica espinha

linha-cervical.

Linha quase, torta, sem rigor

traspassada por um sol escuro;

batida, cova a seco a cidade insiste.

Irrequietos, lá os ratos roem as elipses dos bueiros,

riem nas portas do palácio

— em coro ressoam — riem a roupa do rei, oco do nada rumam

e são ratos de pedra, idéias em estado de aridez

alimento rotundo a pino

sílabas sem Pai são.

 

Aqui as palavras também são

estão,

palavras mergulhadas no rosa rio escuro,

um rio em brasa,

rio em toras,

pesado, em águas de pouca vogal levando a palavra ardendo,

palavra cega

palavra demo.

A travessia é viva. Salobre animal

seu torpor abre as asas,

golpeia o ar esparge escura a água

contra faca, lâmina que fratura o dia

— furor assim não se viu.

 

Por isso ergueram o palácio ao grande Vento.

Plantaram a grande Árvore.

Oraram e beberam da grande Sede.

Santuário — um rosário rio aqui

no claro do papel se ergueu

e da linha-risco uma outra cidade vingou

talhou, desbastou, capinou

cortou o vazio enfurecido

para que se ouvisse o verbo ave o nome, enxame.

Águas de Espanha brincam agora o rio,

Santas semeiam o jardim

redondo em sua doçura de perfumes, frutas e flores

— cidade corpo aqui posta a fio e fogo.

 

 

9 poemas
líria porto

cão de guarda

 

cresceu a casa

ou pequeno fiquei eu

e o corredor não tira os olhos

 

quartos muitos quantos

entro num e durmo noutro

o corpo oco

 

troco as camas de lugar

fica a cômoda o incômodo

e a dor pisa repisa

 

ninguém na sala na cozinha

nos banheiros na lavanderia

quem diria?

 

sobra espaço

faltam passos

o silêncio faz barulho de fritura

 

paredes portas

janelas telhado

tudo vem abaixo

 

(havia passarinhos

eu gostava dessa casa

como um gato)

 

rosnam-me os ossos

 

 

 

 

palpites

 

toda casa tem paredes

todo caso tem_porão

 

as conversas têm palavras

todas elas têm desvãos

 

as pessoas quase sempre

têm bolhas de sabão

 

do silêncio não te arrisques

a dizer todos os vãos

 

nem te metas nestas gretas

repletas de sins de nãos

 

 

 

 

verídico

 

foi comprar açúcar

levou mais de vinte anos

 

um dia voltou

pôs o pacote sobre a mesa

sentou-se acendeu o cigarro

e perguntou — o café

vai demorar?

 

 

 

 

clã(destino)

 

o nosso amor é grupal

 

e quem triscar um só dedo

em qualquer um dos pentelhos

terá de se haver com o resto

 

 

 

 

restauração

 

à beira de um século

um bercinho de balanço

comprado em segunda mão

embalava minha mãe

e depois os filhos dela

os nove rebentos todos

nossos sonhos e quimeras

 

quiseram fazê-lo moderno

tiraram-lhe os arcos dos pés

cometeram um quase crime

ficou rijo equilibrado

ali dormiram uns meninos

um sono qualquer

sem asas

 

um dia busco uma nuvem

faço-o voltar ao que era

a balançar o meu neto

guardo o berço em minha casa

pode ser que nele nasçam

novos versos

um poeta

 

 

 

 

açúcar e muito afeto

 

e por falar em canela

panelas e coisas tais

põe uns cravos

ovos batidos

as casquinhas de um limão

leite açúcar derretido

bem fervido fumegante

deixa lá em fogo brando

quero ver se alguém resiste

à ambrosia dos céus

receita inigualável

doçuras de minha mãe

 

 

 

 

para afofar a terra

 

nossa casa era um canteiro

e as quatro flores formosas

perfumavam o ar

 

o tempo passou cresceram

quiseram ser borboletas

bateram asas

 

sou jardineiro fiquei

se antes plantava filhos

agora semeio versos

 

(e cá entre nós — espero netos)

 

 

 

 

difamação

 

despiu-se da alma dos véus e da pele

ficou carne-viva exposta aos abutres

 

comeram-lhe os olhos os rins as amígdalas

arrancaram-lhe as tripas as unhas o fígado

 

na hora do útero reagiu — aqui não

esta é a pátria dos meus filhos

 

 

 

 

¿hablas español?

 

num dia de domingo ao som de um belo tango

nasceu uma menina boca de morango

 

cabelos purpurina olhos de quebranto

chamava-se marina e usava um manto

 

morava numa esquina telhado de amianto

cresceu muito sozinha casou-se com um santo

 

foi tão infeliz ninguém sabe o quanto

e de tanto tanto e de espanto e sangue

 

mandou-o sem pesar

pros quintos do inferno

 

 

 

cromossomos
lucélia majistral

Casou-se com uma prima em primeiro grau e tiveram um casal de filhos com problemas. O menino tinha uma doença degenerativa e a menina cresceu por fora, mas não por dentro. Casou-se com uma prima em primeiro grau, o casal de filhos exigindo muito, exigindo tudo, e ele acordava muito, muito cedo e, antes de ir para o escritório, abria a janela da sala e a janela da sala dava para um muro. Passou a beber muito e a esposa, ocupada demais, não se deu conta. Começou a passar muito tempo fora e a esposa, ocupada demais, não se deu conta. Aos sete, o menino terminou de murchar e morreu. A menina enxergava menos e menos. A mulher, ocupada demais. E ele, na manhã em que, bêbado, acordou na cama da empregada, achou por bem não se sentir culpado.

 

lab
márcia bechara

Os homens azuis te pegaram e eu não tenho nada com isso. Você foi devorado, testado, reproduzido, capturado em suas artimanhas mais comuns, porque, procurando-me o tempo inteiro, você acabou se perdendo de você.

 

Os homens azuis são incorruptíveis. Em seu baile não podemos dançar, a menos que cruzemos seu estreito, mas ardilosíssimo labirinto. E, afinal, quem não quer dançar junto aos homens de cor correta e alfabeto sofisticado?

 

Os roxos são primários demais e os cobaltos ineficientes, sabemos. Os lilases nos adoram, mas quem disse que queremos provas de amor? Queremos nos igualar aos homens azuis e para isso é imprescindível a prova do labirinto.

 

Eu avisei, amigo. Pedi que não se distanciasse demais de você. Olho de ciclope, coração de serpente, gengivas de peixe, lembra? Esqueça o humano em você, eu insisti, durante as preparatórias. Não é isso — 23 indiscutíveis pares de cromossomos — que os homens azuis desejam, eu disse, enquanto alongava meu músculo lombar, julgando que isto fosse suficiente para os estreitos de guerra e dúvida que eu haveria de enfrentar.

 

Nem cromossomo nem musculatura resolvem dúvida. Nem o tutano dos ossos, nem a eletricidade elementar. É preciso ser azul, ter nascido azul, ter casado azul, ter reproduzido azul, ter passaporte azul ou, claro, ter enfrentado o portentoso labirinto da morte e da descaracterização elementar para conviver sob a plácida e generosa Olímpia dos azuis.

 

Quando os azuis caem e machucam, sabemos que faunos e outras criaturas de mitologias superiores vêm voando e cantando alguma música clássica e difícil para lhes amparar aquelas mãos finas e de agradável cheiro e aspecto. Curam imediatamente. Curam imediatamente exatamente porque são muito limpos e a higiene é o que mais invejamos e desejamos nestes povos azuis. A higiene, meus amigos, é o troféu de uma raça.

 

Os homens azuis são muito limpos e não têm bactéria na saliva. Por isso é justo que nos descarnemos em seu labirinto estreito antes de convivermos com a pureza da pele azul, essa última fronteira entre eles e nós.

 

Afinal, quando caímos, roçamos em terra e em microorganismos desconhecidos. Não há ninguém que nos ofereça a mão sem a suspeita de que haja também uma arma ou uma condição ou uma mão ainda mais suja que a nossa. Não somos limpos. Quando formos limpos, seremos azuis.

 

Queríamos tanto esta morte. Sonhamos tanto com este novo mundo. Desejamos tanto não sermos mais eu e você, mas outra espécie. Mais musical, eleita. Quiséramos tanto cruzar a baía, o muro, a faixa, a península, o rio.

 

Eu soube da sua captura quando ainda estava aqui, presa neste labirinto de mim mesma, tentando aparar minha enorme cabeça. Minha cebola tem um milhão de superfícies de proteção e esconde algo que não consigo ver. Estou presa entre gomos, enquanto tento ser azul.

 

Por isso, não pude assistir à sua fúria final no labirinto, aquela com o ombro tatuado de masculinidade e luta, porque estava entretida demais encontrando maneiras de continuar descascando essa enorme cebola que me tornei. Eu me atrasei e me perdi do grupo quando o labirinto me fez a pergunta. Todos vocês continuaram, não sem um pouco de sangue e dor, mas seguiram. Vocês têm mais facilidade em responder perguntas. Vocês têm mais vocação para o azul e eu torço por vocês, como uma mãe o faria.

 

Eu não dei a resposta e ainda permaneço aqui, neste lugar de dúvida. Serei o enorme bagaço do final. Enquanto isso, espero. Vou rasgando minhas carnes, vou me desfolhando. Não é esse o grande pentear do coração humano?

 

Espero encontrar em algum momento um objeto metálico no meio de minhas pernas atrofiadas, para propor ao mundo uma nova existência, mais perigosa. Quem sabe se me tornar perigosa eu não possa ser azul?

 

Você, meu amigo, olhou para trás. Concentrou-se na minha perda e isto o fez ineficaz. Suas orelhas, que já se alvoroçavam com um leve azulejar de liberdade, retomaram seu aspecto de granizo quando você começou a pensar em mim. Por que, Nacib? Por quê? Por que não seguiste teu destino, como os outros?

 

Eu já podia te ver azulejando o mundo e o caminho para seus descendentes lá onde tudo é mais feliz, você que tem a semente da liderança doce e permanente, mas você olhou para trás quando ainda travava a prova do labirinto, e não olhou por uma mulher, uma mãe, uma amante, uma filha, você olhou por uma amiga e esse tipo de emoção, tão lúcida quanto coerente, não é permitida a povos de outras cores. Perdeste a ti e não reencontraste a mim.

 

Riram de você, Nacib. Quantas vezes riram de você. O ódio de uma raça inteira não satisfaria minha sede de vingança, nessas entranhas. Eu gostaria de ter minhas partes metálicas no labirinto para mutilar homens e mulheres azuis que se aventurassem por cá.

 

E sua captura, sua captura não foi sofisticada. Foi rápida, com instrumentos antigos de destruição. Você não será azul, Nacib. Você morre a cada segundo que passa, enfiado em pó e esgoto. Eu serei aqui sua estrela desfolhada em gomos carnentos, cheia de metais e sangue.

 

Não me sentirei responsável por você.

 

A comida que comemos aqui é pouca, mas suficiente. Aprendi solidão muito cedo, um aprendizado curto e perene. Não tenho medo.

 

De agora, sou a reina deste labirinto, o potássio deste labirinto, a lágrima grossa deste labirinto, a semente deste labirinto, a chuva ácida deste labirinto, a carne deste labirinto, a mãe deste labirinto, a morte deste labirinto.

 

Novos bebês cianos se alimentarão de meus fluidos, antes de se manifestarem como ilhas de beleza. Serei a mãe deste labirinto e lhes permitirei cruzar a baía, a rua, a faixa e a península como cidadãos. Direi então, enquanto cato com naturalidade as cascas sem higiene que me desfolham a cabeça:

 

"Passaportes azuis no balcão da direita, por favor".

 

 

1 poema, 1 conto
márcia maia

nova mitologia


sem rumo

avesso a novos caminhos

perde-se em antigos labirintos

enquanto
       perfeitamente atualizado

liberto de complexos e mitos

o minotauro convida-me

       para jantar

(
e eu

      exausta de idas e vindas

aceito sem pestanejar

                                          )


 
 


a visita


Depois de subornar três serafins, todo um batalhão de anjos, dois arcanjos e um membro da alta hierarquia celeste, cujo nome, por razões óbvias, não pode ser revelado, finalmente ultrapassou os portões. Que portões? Do céu, elísio, paraíso, nirvana, como quiserem chamar. Que dá tudo no mesmo.

 

Estranhou no início a falta de vigilância. A sensação de liberdade, mesmo parcial, foi como um vento novo, uma brisa. Tinha apenas quatro horas. Depois de tantos anos, quatro horas! Mas trato é trato. E este lhe custara caro.

 

Voltara para ver os filhos. Um presente que se dava nesse dia. Dos pais. Encontrou-os reunidos em torno da mesa do jantar. Seis. Os filhos dos seus filhos. Quatorze. Seus netos. E a filha do filho da sua filha: sua bisneta, recém-nascida.

 

Ouviu conversas e risos. Pouco entendeu. Perscrutou suas faces. Os olhos, as bocas, as rugas. Os fios embranquecidos nos cabelos. Os risos. As vozes. Os gestos. Procurou vislumbrar-lhes a alma. Os traços de dor e alegria. Os medos. Os sonhos.


Depois, concentrou-se nos netos. Buscando em cada um a imagem que tinha de seus pais e mães pequenos, crianças ainda. Como eram quando partira. A contragosto, partira, evidentemente.

 

Súbito, deu-se conta de que, agora, seus filhos estavam, todos, mais velhos que ele, o pai. Passara o tempo para eles. E se esgotava o seu. Hora de retornar.

 

Beijou cada um, filhos, netos e bisneta, sem que o percebessem. Mas, cada um, de repente, sentiu vontade de falar do pai. Que partira há tanto. Do avô. Que não conhecera. Como um lampejo de saudade.

 

Terminado o jantar, despediram-se rindo e partiram. Ele, inclusive. Antes que para sempre lhe fossem fechados os portões. Do elísio, céu, nirvana, paraíso. O nome que lhe queiram dar.

 

 

explícito
maria terra

Louvai a Deus todo poderoso mulheres de toda a Terra

Amai a todos os homens como se fosse a si mesmas

Bebei de sua água repugnante e salvai vossos casamentos

Imaginai pra sempre que poderia ser pior

Rameiras romeiras rezeiras

Irmãs de toda caridade

Negai apenas o arrependimento

Trilhai a trilha confiante e sem choro

O amor de Deus é singular

 

 

 

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