edição 24 | março de 2008
temas:  labirinto | família

 

labirinto
marília kubota
   

ruas não abaladas pelo vento.

desconfiai de ruas não abaladas pelo vento!

são ruas mornas, sem asas, hipócritas,

sem o viço de avenidas

em que correm pernas velozes

felizes por evitar ruas sem saída!

jamais permita os astros conduzam

a becos imóveis

siga as folhas viradas no vento

jamais arrisque

ficar perdido

no labirinto

jamais arrisque

ficar cativo

no beco

imóvel.

 

 

a maldição das oliveiras
mariza lourenço
   

Quando Dona Leonice Oliveiras de Prates faleceu, após longa e dolorosa enfermidade, sua irmã, Leonora Oliveiras, mudou-se para a casa da finada a fim de cuidar da sobrinha Lidiane, mocinha de treze anos. Sabia-se, contudo, que o zelo ocultava um mal disfarçado desejo de consolar o cunhado, Mário de Prates. Sabia-se mais, que o viúvo, inconsolável, definhava a olhos vistos e chorava o tempo todo. O que não se sabia, entretanto, e aqui, por favor, peço-lhes a mais absoluta discrição, já que com o alheio não se faz pilhéria, é que tamanho desespero não guardava nenhuma relação com a imagem da defunta que, em vida, não passara de uma sombra triste e arredia.

 

A falta era bem outra, não menos louvável, no entanto. O homem ressentia-se da perda de sua gruta, como ele mesmo acostumara-se a chamar aquilo que a mulher trazia entre as pernas. "Oh, gruta úmida e estreita. Levassem-me tudo, suas pernas, sua alma, seus braços, menos a gruta". "Outra igual, nunca mais". Ocorre que a afirmação, pontuada por reticências, acabou por se transformar em expectativa ante a visão dos quadris balangantes da cunhada Leonora. E assim, ao cabo de seis meses, outra Oliveiras passou a ocupar o leito do viúvo.

 

Quem não gostou do arranjo foi Lidiane, mas os resmungos da menina não conseguiram fazer frente ao clima de romance que se instalara na casa. De maneira que, iniciado um novo tempo, com ele também chegou a rotina e, assustadoramente, as primeiras modificações na aparência, outrora saudável, de Leonora. Tal e qual Dona Leonice, sua irmã adquiriu uma estranha coloração acinzentada e uma tristeza esquisita. Mário de Prates parecia não notar as mudanças, mais preocupado, talvez, em manter para si as delícias de sua nova gruta, tão acolhedora quanto a anterior. Lidiane tampouco se importava, desde que não lhe fossem perturbadas as descobertas do mundo adolescente.

 

E foi deste modo que cinco anos se passaram, demasiadamente compridos para quem se transformara em sombra e relativamente agradáveis para o dono da casa que, afinal, não tivera trabalho algum em reencontrar o prazer que julgara perdido. E a vida teria seguido assim, quase normal, quase enfadonha, não fosse por uma certa manhã de julho, véspera do aniversário de dezoito anos de Lidiane. Naquela manhã, a tia, mais cinza do que nunca, irrompeu o quarto da sobrinha, atirou um envelope em seu colo e ordenou que deixasse a casa da família para sempre. E mudasse de nome, se possível. A moça obedeceu, sabe-se lá se movida pelo susto ou vontade de dar adeus àquela vidinha estranha.

 

No dia seguinte à partida de Lidiane, a qual supunha-se a salvo da fome paterna, sua tia, cuja tez surpreendentemente voltara a colorir-se de rosa, sentou-se em frente ao espelho, tingiu de carmim os lábios finos, escovou os longos cabelos negros e, envolvendo o delicado pescoço com a longa echarpe de seda azul de Leonice, abriu delicadamente os alvos braços e voou em direção ao jardim, florido de hortênsias.

 

"Outra igual, nunca mais".

 

ser de sagitário
nina rizzi

 

"[...] No aguardes la embestida

del toro que es un hombre y cuya extraña

forma plural da horror a la maraña

de interminable piedra entretejida.

No existe. Nada esperes. Ni siquiera

en el negro crepusculo la fiera".

Federico García Lorca

 

 

era como um fado. um círculo vicioso dando voltas e voltas e voltando sempre ao mesmo ponto. a única possibilidade de fuga pra além-tocatta era achar a saída.

cheguei a pensar que fosse má-vontade da moça, mas olhando agora pra ela, com esse distanciamento que me é permitido, vejo que me equivoquei em pré-julgamentos. é mais fácil sucumbir a si. ao labirinto.

 

*

 

sua primeira lembrança é de um hospital com suas paredes branco-sufocantes e metais-hostis. o pai olhava incrédulo pro filho através do vidro.

lembro de ele ter resmungado algo como

cria desgraçada

não havia percebido que a filha estava próxima.

com três anos já era atleta. corria louca por aqueles corredores da morte a fugir do superego. ele até tentou alcançar, mas a tocatta evoluía rápida. em saltos.

o pobrezinho tinha malsimioto. doença de macacos rara em humanos.

se vira. eu avisei que não queria filhos.

foi à benzedeira, rezadeira, macumbeira, médicos. e nada.

que coisa. salvou-o um banho em permanganato. um dono de parque de diversões.

registrou o menino como seu, apesar de ser casado com outra. aplacou por um pouco o medo da mãe: ficar só. da menina, que tinha então três anos, não gostava.

essa menina ainda vai cagar na sua boca.

a mãe enviou a menina pra um antigo pasto pra entregar ao homem a certidão de nascimento do bebê. sua esposa estava lá. acho que foi a primeira surra de estranhos. ela puxava a menina pelos cabelos como a uma sacola velha, pra que a levasse até sua mãe. no mercado em que a esperava, as duas desperdiçaram quilos e mais quilos de alimentos.

então um tal de arlindo. a espancar mãe e filha. molestar o bebê.

depois, o trem a levar os três pra longe dali.

 

*

 

o tio, irmão da mãe, que lhes apresentou o futuro marido-pai.

ele era bom. doces pras crianças, quinquilharias pras ilusões-consumistas da mãe.

ele adoeceu e conforme crescia a enfermidade também a infidelidade da esposa.

não entendo ainda hoje porque em doença foi que começou a violentar a garota. da prima vez disse às mulheres que confundiu filha com mãe. estava bêbedo. das outras todos fingiram que nada ocorria.

ele agonizou até a morte clamando pela garota que já havia fugido. há muito.

sinto culpa por sentir sua falta. do pai.

 

*

 

mas compreendo as sucessivas fugas de labirintos familiares.

claro que o moralismo judaico-cristão está arraigado em mim. em todos. mas sempre que preciso sociabilizar em família (que não é mais a minha — sujeito composto inexistente), entro em profunda melancolia. histeria. sempre acontece. pra mim, a família é uma instituição degradada, degradante e desnecessária. fonte de todas as falhas de cárater.

não me lembro de ela ter lido a origem da família, estado e propriedade.

choro. pereço. quero sumir ou morrer. terríveis dores me assolam o corpo. espelho da mente. não obstante, devo mesmo pelegar. como poderei educar uma criança fora dos moldes familiares, nem conheço outro. se criar, qual invento.

mas se casou. sem igrejas ou contratos. mas casou. nesse período suicidou-se infindas vezes. é dramática, claro. e prepotente. me irrita. o marido, coitado, era um fraco, ora sucumbindo às chantagens, ora fazendo-a aceitar as suas.

"no fundo são boas pessoas, juntos é que não prestam".

por fim, essa maluca vive com amante e esposa nos mesmos metros cúbicos. se entristece a todo instante em qualquer canto escondido. drama? não. ego. ísta. aí está. mas não pode romper. é sensível demais. como a ex-mulher, pára estanque. dique.

mas meus beijos são como de adeus. lágrimas nos olhos. não consigo remar contra essa maré de merda. menos ainda ser romântica a ansiar uma sociedade primitiva.

a mãe perdeu filhos e maridos. parece até que sabemos o que o destino nos reserva de pior. ela é só. e só.

a filha perdeu-se no labirinto. teve um filho. todos dizem que é boa mãe, mas o garoto é melhor. ainda não foi formatado.

conquanto não tem família

: o minotauro a devorou.

 

 

síndrome de leigo
roberta silva
   

Do aro de seus óculos mergulharia em seus olhos no instante exato em que me olhasse a olho nu. Prefere me ver assim quando quer fazer entender que está à minha altura. Estaria perdida se soubesse que está além. Queria entender o que é odiar os próprios passos e ser viciada em escapadas suicidas morro abaixo em sua cadeira de rodas. Como pode amar tão alucinadamente meu homem a ponto de me chamar para perto quando ele a tem no colo e o obriga a me beijar? Que floresta é esta de neurônios famintos, ávidos de vida, atenção e torturados de desejos? Quero entender seu nome, sua carne tão minha que a mim saciaria, mas para você é tão pouca e a consome. De onde vem este laço, esse ranço, esse medo? E como pode dentro dos olhos guardar tanto segredo?

 

 

família
ro druhens
 

1.

 

Ele voltou a São Paulo dez anos depois e a casa tinha sido demolida.

 

O japonês do empório estava morto e sua filha não sabia pra onde a família do fim da rua havia se mudado. Conhecera dona Deolinda e seu Atanásio de vista, nunca foram íntimos, achava Marta metida, esnobe, esquisita. Disse que deram o cachorro pra uma vizinha quando mudaram, isso a filha do japonês do empório lembrava e de mais não sabia.

 

Piloto, um vira-lata, velho e cego, não o reconheceu quando ele tocou a campanhia do 76. Dera aquele cachorro pra Marta no dia em que voltou pro Espírito Santo, dia seguinte ao dia em que se deram.

 

— Foram pro interior, disse a dona da casa 76. A filha casou, mas eu não acredito. Foram embora porque ela tava prenha. Nunca mais soube deles e, se o senhor me der licença,  preciso cuidar da vida.

 

Saiu ladeira abaixo, sentindo frio e fome.

 

Marta perdida pelo mundo, um filho que não conhecia e o sentido absoluto da inutilidade colado na pele, na cara, nos passos que o levavam pra lugar nenhum.

 

Média, pão com manteiga, um maço de Derby e uma caixa de fósforo. O avental do cara do botequim era tão encardido quanto a sua alma.

 

A Mulher sentada de costas, passando manteiga no pão do Menino, bem que podia virar de repente e ser Marta. Sorrir e apontar pra ele dizendo pro Menino: olha, é seu pai, ele voltou.

 

— Como é o seu nome, garoto?

 

— Júnior.

 

A Mulher fez um gesto, um convite pra sentar. Falaram do tempo. Começou o Jornal Nacional e ela quis esperar pela novela. O Menino fazia palavras cruzadas, mania que ele tinha desde que, assim como ele, era menino.

 

Um quartinho no fundo de um quintal, limpo. O Menino na cama de cima da beliche e a Mulher pedindo pra ele gozar em silêncio.

 

O mesmo silêncio com que fez um filho há dez anos, no quartinho de fundos, na casa que tinha sido demolida quando voltou a São Paulo.

 

 

2.

 

Seu Atanásio cresceu naquela casa.

 

Foi pra lá, entregue aos cuidados da madrinha, quando seus pais morreram num acidente de caminhão.

 

A madrinha nunca teve filhos e deu a ele todo o amor guardado para aqueles que nunca nasceram. O padrinho, português de poucas palavras, tinha uma carroça e um cavalo e com eles distribuía leite e pão nas redondezas. Se do pão e do leite nunca fez sua refeição favorita, o cavalo despertou seu bem querer. E tanto que largou os estudos, os padrinhos, a cidade grande e foi atrás de trabalho de peão nas fazendas do interior.

 

Já andava por lá pra mais de tempo quando soube pela carta da madrinha que o padrinho morrera dormindo, sentado na frente na televisão. E mais dizia ela: que  voltasse, que a casa era dele, que chegasse pra alegrar a viuvez e a solidão que fizeram morada no quarto dela, no quarto dele.

 

Nesse tempo ele já tinha trabalho na fazenda Dois Corações e já se enrabichara pelos olhos verdes da filha do patrão, Deolinda, que lhe disse que seu nome significava a linda dos deuses e ele invejava os deuses e desejava que ela fosse a linda do Atanásio.

 

Foi no Natal que Deolinda ganhou do avô a égua prenha e nos cuidados do parto muito mais se aproximaram. Mais que um potro valente, nasceu um amor corajoso. Amor disposto a enfrentar o mundo e fincar bandeira na terra prometida, muito além das fronteiras de todos os preconceitos.

 

E foram noites de luar, banhos de cachoeira, cavalgadas nos canaviais. Quando Deolinda, moça menina de 18 anos fez barriga, caminho não havia que o da fuga.

 

Escreveu pra madrinha que mandou pintar a casa, por dentro e por fora. Remexeu a terra do jardim pra plantar dama da noite e reformou o quartinho do quintal, disse que seria quarto de brinquedos pra criança que estufava a barriga de Deolinda e o peito de Atanásio.

 

E pegaram o rumo da estrada e da vida quando na fazenda Dois Corações faziam festa de bodas. Deolinda e Atanásio, um só coração.

 

 

3.

 

Era o dia das bodas de prata de seus pais e das bodas de ouro de seus avós e o casarão da fazenda amanheceu com cheiro de doce de tacho, com gosto de mamão verde. Eram tantos entre tios, primos, sobrinhos, gente velha, gente moça, família grande, coisa de roça que ninguém reparava em ninguém que não fosse os noivos.

 

O avô lustrava o cabo de prata da bengala que a ninguém delegava competência pra serviço que fora do pai do avô, do avô do avô. A avó estendia sob os poucos raios de sol que nuvens cinzentas ameaçavam, o branco amarelado do vestido de há tantos anos, cinqüenta. Ainda tão magrinha e frágil como sempre fora, desde que chegara na fazenda em garupa de cavalo bravo e de novo ia se vestir de noiva e merecia porque de pureza sempre fora recheada.

 

A mãe mascarava a vida boba com cuidados por ela, sua filha, Deolinda. E a vida boba é por conta da falta da presença do pai que caixeiro viajante vivia com a perna no mundo. A mãe nem tinha mais vestido de noiva que nem o da avó e ia pra festa com roupa espalhafatosa que o pai trouxera da viagem pelo mundo. Mundo de perto que nem na capital ele nunca fora.

 

E estava tudo assentado para que Deolinda fosse com Atanásio e a nega Luiza buscar as flores na fazenda de Dona Esmeraldina quando por volta das cinco  da tarde que era pra ficar tudo ainda bem viçoso ao chegarem o padre e os convidados. Do que ninguém sabia é que Atanásio e Deolinda já tinham acordo feito de sair bem mais antes do que isso e da nega Luiza não levar nem a sombra.

 

Fazia mais de ano que  tinham namoro firme e tudo era segredo pois que Atanásio era só um moço de cocheira, coisa muito pouca pra filha de fazendeiro. E ela  pouco se importava que nunca conheceu outro homem que fosse mais lindo, mais forte e mais bondoso. Era com ele que queria ter seus filhos, passar a vida toda e se assim não era o desejo dos avós, da mãe e do pai, vivessem eles a vida deles que ela ia mais Atanásio procurar lugar no mundo que acolhida desse pro amor que era só deles e muito grande.

 

De certo que pensou que pra mais de bom seria se pudesse se casar naquele dia, no mesmo em que se casaram a mãe e avó. E, porque assim pensou, achou que tinha que ser mesmo naquele dia e contou pro Atanásio e foi assim que aconteceu.

 

Quando anoiteceu já iam longe na estrada,no rumo de São Paulo onde Atanásio tinha madrinha com casa pronta pra receber os dois, quase três.

 

Nunca mais teve notícia dos parentes, nem eles nunca souberam da filha que pariu, nada souberam da vida dela. Do emprego que Atanásio arrumou na cidade grande, nem muito menos nunca souberam dos doces que Deolinda fazia pra vender na vizinhança. Mamão verde.

 

Melhor assim, porque nunca ser-lhe-ia perdoada a falta das flores nas bodas dos avós e dos seus pais.

 

 

4.

 

Marta tem os olhos verdes da mãe, Deolinda, e o cabelo negro do pai, Atanásio.

 

E os há de ter pra sempre porque cravados estão feitos pregos na cruz, redentoras lembranças daqueles idos e sucedidos. 

 

Foram eles, os olhos verdes de Marta, que primeiro viu quando ela abriu a porta da casa do fim da rua onde alugavam um quarto no fundo do quintal.

 

Uma luz verde que escurecia, em vez de iluminar, todo o mundo que ele trazia na mochila.

 

Mostrou o anúncio, recortado do jornal.

 

Marta fala baixo, olha pro chão, seus cabelos têm o brilho de todas as luas que ele sabe muitas há nesse universo sem fim e sem começo.

 

— Entre, vou chamar o pai.

 

A mesa posta pro jantar, a santa ceia, o rádio antigo, de válvulas.

 

— Senta, ele já vem.

 

E sentou na beira do sofá olhando os pés de Marta, descalços, e os tornozelos que pareciam aquelas argolas de prender guardanapos.

 

— Boa noite.

 

E a voz de Seu Atanásio foi como um apito de trem na curva. Estendeu a mão esquerda, a direita era aleijada.

 

— Boa noite, vim pelo anúncio do quarto.

 

— Marta, traz um café pro moço.

 

E foi quando pela primeira vez ouviu o nome dela.

 

Marta, Marte, Morte.

 

E essas coisas ficaram martelando, martaelando, mortelando na sua cabeça enquanto seu Atanásio falava e perguntava e perguntava e falava. Pelo corredor da casa, pela porta da cozinha, pelo quintal, até a porta do quartinho dos fundos. Limpo e asseado, pintado de novo, chuveiro, pia e privada. Janela azul que dava pra mangueira e o muro que dividia o mundo.

 

— Este quarto era o lugar onde minha filha brincava quando era criança...

 

Dona Deolinda tinha aquele sorriso de mãe, aquele olhar de pôr-do-sol em beira de rio e falava dando o braço pro marido e era como se fossem um só.

 

No rosto comum havia dois olhos verdes, primeira edição dos de Marta, estes revisados, transformados de ribeirão pra mar revolto.

 

 

5. 

 

Marta se  trancava no quartinho do fundo do quintal desde sempre e ali vivia todos os sonhos. E o quartinho foi castelo, navio de piratas, sala de aula. Pouco  importava se as crianças da rua não a chamavam pras brincadeiras na calçada, ou se as meninas do colégio das freiras nunca vieram a sua casa. Sua casa era o quartinho, no fundo do quintal.

 

E quando aquele homem estranho veio na hora do jantar, sentiu revolta, sentiu medo. Invasão no que era dela. Seus segredos revelados. Suas defesas postas abaixo. Suas pontes destruídas.

 

Toda semana chegava carta. Envelope cor-de-rosa. Tinha vontade de abrir no bico da chaleira e ler, quem sabe? Naquelas noites ele ficava com a luz acesa até bem tarde

 

Quando dona Deolinda ficou doente de tristeza desconhecida, pediu a Marta que fizesse a faxina no quartinho.

 

Viu as camisas brancas penduradas, eram poucas, emblema da empresa nos bolsos. Gaveta de roupa íntima, as coisas de higiene no banheiro, nenhum perfume. E as cartas amarradas com barbante.

 

Naquela noite Marta começou a escrever cartas pra ninguém e sonhar com igreja e flor de laranjeira.

 

Quando dona Deolinda teve a segunda crise de tristeza desconhecida, Marta voltou ao quartinho e abriu o amarrado de cartas e nada nelas havia que não houvesse nas que escrevia pra ninguém. O amor é sempre igual e disso ela sabia.

 

E sabia também que o moço só estava em casa pra passar uma chuva. E logo, logo Marta teria de volta o quartinho só pra ela, pensou.

 

 

6.

 

Quando Marta engravidou, dona Deolinda pensou em fazer segredo pra seu Atanásio e resolver de outro jeito que nem de tudo homem carece de  saber.

 

E quando falou com Marta sobre o plano de não deixar nascer o filho de pai que fora embora, viu os olhos verdes flamejarem e era ódio do tamanho que nunca vira.

 

Sentada na cama do quartinho do fundo do quintal, Marta contou da noite estrelada quando fora buscar manga verde.

 

Era domingo, dia da missa solene e Dona Deolinda e seu Atanásio pra lá tinha ido.

 

E o moço ajudou com as mangas e nada fez que Marta não quisesse ou permitisse. Na véspera ele tinha dado a ela o cachorro, filhote de boa raça, era justo, pois que ela, de alguma forma, retribuísse o presente.

 

E no outro dia ele iria embora, de volta pra sua cidade, pras cartas de papel cor-de-rosa, nenhuma história que tivesse continuidade no amanhã, que tivesse origem no passado, só o hoje daquele dia.

 

E foi assim. Calmo e manso. Se filho viria, que viesse, era a conseqüência natural.

 

Seu Atanásio, mesmo que desconfortável com os vizinhos que veriam a barriga de Marta crescer junto com sua vergonha, concordou bem depressa e sem reclamos de procurar outra cidade onde de ninguém fossem conhecidos e de cujo rumo nenhuma pessoa jamais soubesse.

 

E deu o cachorro pra vizinha, vendeu a casa pra empreiteira que queria construir um shopping center, despachou mudança e a perua fez a curva da ladeira quando já passava da meia-noite e a vizinhança adormecia.

 

E  nunca mais se soube deles disse a filha do japonês do empório.

 

 

7.

 

E dez anos depois deste acontecido, ele veio pra São Paulo. Se o bolso ainda era vazio de outros bens, o coração era pleno de saudade.

 

Nunca mais voltou pra Vitória.

 

Alugou a casa em cujo quartinho de fundo de quintal dormira pela primeira vez com a Mulher e com ela se juntou de vez pra sempre. Fez-se pai postiço do Menino a quem trata com desvelos como se feito de seu esperma fosse.

 

Trabalha de segurança no shopping que é onde fora a casa da família de Marta e descansa, algumas vezes, à sombra da mangueira que ainda está por lá, dividindo o mundo.

 

E ele é pai postiço de Júnior. Júnior que é filho da Mulher com seu Atanásio. Seu Atanásio que é avô de seu filho. Seu filho que também se chama Atanásio.

 

Mas disso ele não sabe.

 

 

labirintite
romina conti
 

Ela andava à procura de alguém. Alguém não andava à procura de ninguém. Ninguém era só um pedaço do sistema. O sistema era ficar só, porque só assim se consegue chegar ao próprio âmago. O âmago, solitário por natureza, estava em tudo. Nos caminhos em que ela andava, perseguia ele, mas ele não sabia ou se sabia era por alguns segundos, porque ele disse que a amava tão desesperadamente, que desistiria de encontrar seu âmago por ela. Assim todos iam pelo labirinto feito sombras e sobras. As sobras das pessoas iam ficando imprimidas nas sombras. Então, olhava-se de frente como quem olha algum ser menos preparado do que eu para a vida. A vida é um segundo aflito e desesperado. Cada um com o seu cada qual. Cada qual com o seu cada um. Iam se formando os casais que dançavam numa rave sua última culpa. A culpa era só a tristeza de ser quem é. Ser quem sou é tão difícil que quase desisto de me encontrar nesta ilha que formei ao redor do meu deserto. Oásis é quando alguém se afasta por medo ou por delicadeza. Viver é estar com a cara sempre preparada pra receber o batom. Seja num outro beijo. Seja pintando um quadro. Com tudo isso que não faz sentido, vou me iluminando por um segundo como se escutasse algumas vozes que insistem em me dizer saia deste labirinto. E havia muita coisa fora do labirinto. Nave espacial preparada para levar todo mundo ao seu lugar natal. Sim porque ninguém ali pertencia ao labirinto. Pertenciam uns aos outros, mas nunca se encontravam perdidos como a estátua bronze e com sardas. Uma estátua é só um labirinto parado: coisa que nunca quis ser.

 

 

 

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