edição 26 | maio de 2008
temas:  inverno | rotina

 

purpurina
adelaide do julinho  (& rubem braga, 1966)

a calhandra grinfa
(ou trissa)
o pato gracita
o cisne arensa
o camelo blatera
a raposa regouga
o pavão pupila
a cegonha glotera
a rola turturina
minha pomba gira
(e brilha)

  

2 contos
assionara souza
 

reminiscências

Para ele derramaria lágrimas sempre exagerando a história. Mas haveria o encontro no meio da tarde com aquela adorável desconhecida. No meio da tarde quente, o encontro cheio de palavras e descobertas. O tempo simplesmente escorrendo. Na noite anterior, desconfiava de que algo acontecera com a moça. E, sim, havia acontecido algo e a moça não poderia dizer uma palavra. Não havia quem ouvisse. Não havia um rosto solidário que realmente perguntasse: Ei, como têm estado as coisas?. Eles simplesmente sorriam e levantavam a mão e faziam seus pedidos. A moça estava sofrendo de verdade. Na noite anterior, um telefonema, que a mãe não estava bem. Uma outra cidade e o mês não acabado restando apenas alguns trocados com que fizesse uma ligação interurbana. Antes de ir para o trabalho, a notícia. A moça não quis chorar ainda pois estava a ponto de sair de casa e ir. Deveria sim, conter aquela sensação. Porque haveria muitas pessoas. E no canto da mesa  as duas que conversavam tão intensamente. As dispersões cada vez mais freqüentes. Uma delas contou que na tarde anterior estava em casa pensando em começar algo importante. Realmente importante para o seu futuro. Afinal estava sozinha e todo o tempo aberto a uma possibilidade de fazer, executar, pôr em prática. Mas que acabara inerte, deitada no sofá com uma tristeza da qual não sabia a origem. Simplesmente uma tristeza. No meio da tarde, a adorável desconhecida diria que também sofria muito dessas sensações. Na tarde anterior ela sentaria com ele decidida a não falar absolutamente coisa alguma. Mas o olhar era demasiado receptivo, e se deixou, sim, dizer daquela grande e pesada sensação. Veja só o que aconteceu. Veja só o que aconteceu comigo!, ela diria. Nesse mesmo lugar, ela e a adorável desconhecida tomariam chá e falariam da dispersão clandestina que sentiam. E ela quis então naquele momento contar da dor da moça que servia a todos no bar, na noite anterior. Um rosto tão delicadamente sentido. Trajetórias de formigas. Coisas que ninguém adivinha. Percebem até. Espalharia livros pela cidade. Talvez alguém os lesse. Flores de palavras. Falou para ele também de sua dor e incapacidade de seguir um ritmo contínuo. Tudo parecia tão disperso. Eu fui arrumar gavetas. Roupas antigas, de quando ainda garota. Quando ela estivesse no café com a adorável desconhecida, ligariam para a poeta. Não posso ir, me desculpem. Por favor, compreendam. Na noite anterior a moça quebraria um copo e cortaria a mão. Isso nunca havia antes acontecido. Nesse momento as duas sutilmente perceberiam uma tristeza transitando pelo sorriso operário da moça. Me desculpem. Por favor. Ninguém que dissesse: Ei, vamos lá fora, fumar um cigarro e conversar um pouco. A tarde toda passaria. E a noite. E chegaria o dia seguinte em que ela e a adorável desconhecida se sentariam para falar de sensações. Nesse momento é que as coisas iriam parecer fazer algum sentido. Nesse momento iria se lembrar do continuado tempo anterior em que havia saído com a amiga para o bar em que trabalhava a moça, que aquela noite especialmente parecia estar muito triste. Mas nada fariam além de uma observação. Depois é que surgiriam sugestões de motivos para aquela tristeza toda. Conversaria muito com a amiga, que confessava uma sensação de fracasso de uma tarde completamente improdutiva em que se deixou perder-se em antigos pensamentos agarrada a uma blusa de quando ainda era garota enquanto o tempo passava alheio a tarefas concretas. Lá fora, no frio, o menino que guarda carros lia um desses livros que ela espalha pelas ruas. Uma delicadeza seletiva. Outras vezes já o vira com o olhar completamente defensivo e necessário para quem habita as esquinas. E era mesmo surpreendente para ela que tudo fizesse sentido. Que aquelas sensações anteriormente tão dispersas estivessem moldando por dentro uma estranha estrutura, como o bordado que a avó seguiu, em um tempo remoto, com os olhos e as mãos. Entenderia, no exato momento em que deveria estar pondo a casa em ordem para começar bem o dia, o porquê de relembrar todo o encontro com a adorável desconhecida. Entenderia o que ela dissera sobre envolver-se com as clandestinidades mais secretas. No final haveria, sim, um bordado de tecido poético em algum lugar, dentro da alma. Então a vida seria assim. Reminiscências. Mesmo consciente das estruturas planejadas geometricamente. À revelia de tudo, o grande acaso. Com o fluxo de tempo correndo em volta. Mesma seqüência entrecortada de sono e sonhos.

 

figuras

        Não tive qualquer intimidade com a cantora de solos magníficos. Isso até hoje me deixa furioso. E profundamente desconsolado. Tenho medo de perder a voz. Tenho medo de não saber mais fazer coisas que faço bem desde pequeno. Concentro-me em resolver essa história para evitar problemas futuros. Não quero perder as palavras. Não quero jamais me esquecer de como se deve enrolar o pião antes de lançá-lo. Para que ele caia zuuuum. Imitando os ventos que roubou quando ainda tinha a forma de um bruxo poderoso seqüestrador de tempestades. Ela não me perdoou jamais. Eu jamais me perdoarei pelo que aconteceu.

        Em tardes de inverno intenso como essa fico pensando que tudo teria sido mais fácil se eu não tivesse feito o que fiz. Mas não pude evitar. Saiu como uma rajada. Disse que não saber o tempo certo de produzir uma metáfora era o mesmo que não saber usá-la. E disse isso com raiva. Estava sentindo muita raiva quando pronunciei essa sentença. O que eu disse não foi uma metáfora. Foi um insulto.  Talvez devesse ter adotado mais brandura em minhas palavras. Deveria tê-la feito compreender que havíamos perdido tempo. Mas sei que disse. Disse que ela não tinha a menor sensibilidade para lidar com metáforas. Até esse dia em toda sua vida ela não havia sido tão humilhada. E o mais estranho é que ela se chamava Felice. Assim como Letícia ou Leda. E esses tantos nomes que nos lembram coisas como: felicidade, alegria, dança e música.          

        Não se deve usar de violência para alguém de natureza musical. Os cantores entendem de metáfora sem que pensem a respeito delas. É algo que nasce como qualquer outra reação física. As metáforas saem espontâneas. Não sabem sequer se o que fizeram foi dizer uma metáfora. Mas o corpo todo se satisfaz enquanto eles estão metaforizando especialmente para um outro corpo.           

        Lembro da preparação que foi quando Felice começou a se aproximar poeticamente de mim. Mas só hoje isso faz sentido. A minha presença a incomodava. Como se a fizesse cócegas e ela quisesse rir muito. E tivesse que esconder o riso como a deusa grega escondia o rosto quando tocava flauta. Suas palavras desencontravam completamente do ritmo das minhas. Aquilo era estranho. E ela fugia de perto. Eu me sentia um gato cuidando das muitas crias que eram minhas dúvidas: "Por que ela me odeia tanto? O que fiz de errado dessa vez?". Nem percebi que era a tentativa sincera de produzir metáforas que agitava o seu espírito. E a fazia fugir o olhar de mim. Uma vez ela me pareceu completamente mudada. Olhou firme em meus olhos e me disse: "Hoje poderia até ser um dia de chuva e vento". Eu sorri como quem nada quer e não querendo ou não achando que poderia querer mesmo alguma coisa. Pois bem. Não esbocei qualquer reação. O meu olhar era o mesmo de quem está no cruzamento e espera o sinal abrir. Acho que queria ir pra casa. Afinal tínhamos exercitado uma dificílima récita camoniana prontos a sairmos dali contando qualquer piada sem graça em Dolce Stil Nuovo. Eu estava cansado de poesia.           

        Ao chegar sozinho em casa, ainda olhando para os vincos da minha sólida porta de madeira, ver se descobria uma imagem nova, o clarão da metáfora explodiu na segunda virada da chave. Hypocrite lecteur! O diabo me sussurrou com sua voz irônica: "Hoje poderia até ser um dia de chuva e vento". Talvez sem que eu soubesse — e eu não imaginei mesmo — aquela metáfora tenha me acompanhado todo o caminho. Como o zunido do pião depois que é lançado. Bem quieta. Vagando. Uma metáfora completa. Com o tom da voz exato. Meu corpo quase caiu ali mesmo.           

        Quando dois começam a trocar metáforas, corre-se o risco de morrer afogados nas próprias palavras. É preciso ter muita paciência. O que eu podia fazer? Se era eu oficialmente aquele que conhecia bem as metáforas e o seu modo de usar. E ela foi tão sincera. Parecia que estava fazendo a Primeira Comunhão: "Hoje poderia até ser um dia de chuva e vento". Eu não tinha hóstia alguma para aquela boca aberta como um morango partido ao meio. Se ela desconfiasse de que tudo o que eu dizia era fruto do que colhia nos livros mais estranhos. Nem teria visto em mim um domador de metáforas. Agora é que tudo fazia sentido. O timbre e o peso de sua voz. Silêncios expressivos. Imagens que eu teimara em não enxergar. Olhares.                   

        Caminhei pelas ruas mais sujas da cidade e a metáfora se conservava fresca e cheia de nervuras como um morango sorridente recém cortado. Eu já estava ficando, não sabia porquê, com uma espécie de ódio. Mas um ódio que me deixava entontecido. "Hoje", assim como em Ricardo III: "Agora". E caindo para um imprevisível não se sabe o quê. Todos os dias que seguiram à noite em que ela me lançou aquela metáfora, repeti cuidadosamente: "Hoje". "Hoje". "Hoje". O restante do mistério "poderia até ser" dobrava-se no desenho da curva de nível de um abismo. O "poderia" não traz efetivamente nada de especial. Mais uma forma desgastada que pode denotar preguiça. Isso se não viesse obviamente carregada com o "até". De tão parecido que estava: "poderia até ser". De tanto que era certo: "poderia até ser". Fazia tanto sentido que: "poderia até ser". Um dia de chuva e vento.          

        Eu soube tudo de uma vez. Porque certamente não quis pensar. Na minha distração, não pensei que fosse possível. Não pensei. Como supor que uma luminosidade estava sendo produzida? Há quanto tempo estaria? Nem sempre o que vem em nossa direção é publicidade. Nem sempre estão só querendo nos encher de testes do tipo "Eu sei, mas duvido que você saiba". No primeiro dia em que vi Felice tive um pressentimento. Ela não me pareceu alguém que usava testes do tipo "Eu sei, mas duvido que você saiba". Vi algum mistério que eu não saberia atingir. Vi alguma violência da qual deveria me prevenir. Uma tempestade. É muito comum que poetas sintam medo. Colhemos as metáforas direto nos livros. E nos assustamos quando ela é formada dentro de um coração aberto como um morango partido ao meio. Os olhos dela me compreendendo. E o coração ansioso por escrever em palavras a sensação. No interior do corpo. As batidas empurrando o sangue para as faces: "Hoje poderia até ser um dia de chuva e vento". E eu deixei a metáfora caída no chão. Depois de um dia inteiro envolvido na cansativa tarefa de semear palavras no caos. Os outros que estavam ali, achando-se grandes poetas, pisaram a metáfora que a cantora de solos magníficos acabara de construir com todo o corpo. Lastimável.

                     

        Na semana seguinte a esse acontecimento ela estava indiferente. Parecia até triste. Não tinha mais nada que me pudesse permitir arriscar uma aproximação. Então senti mais raiva ainda. E me dirigi contra ela. Como se estivesse instruindo todos ali. Não saber usar uma metáfora no tempo certo, eu quase gritei, é o mesmo que não saber usar uma metáfora. Bem no meio da cara da cantora de solos magníficos. Olhando furiosamente em seus olhos.

        Ela correu dali cobrindo as faces e chorando. Aquela imagem para mim foi uma grande ironia. Nunca mais nos vimos de novo. Nunca pude conhecê-la em profundidade. A metáfora não interpretada pode gerar silêncios irreversíveis. Hoje é um dia de chuva e vento. Lembro de Felice e fico com medo de perder a voz. Não saber mais dizer uma palavra que seja.

 

 

que haja de tudo e de tudo haja
cida pedrosa

Foi adquirida na esquina da Guararapes com a Dantas Barreto, Centro do Recife. Sua origem a 25 de março em São Paulo, ou quem sabe a Ponte da Amizade. Marca Prada, mas podia ser Victor Hugo Zoomp ou Forum. Da cor roxa e grande como manda a moda e o espaço da compradora. Altiva e com muita personalidade transportava sempre um absorvente médio para os dias de fluxo insistente e um pequeno para aqueles em que a ovulação é presente e se assemelha a uma clara de ovo, na calcinha. Um batom vermelho e outro pastel. Um para os finais de tarde, pós- trabalho, vinho na boca riso nos lábios, outro para o retoque apressado antes da reunião chata com o chefe sacana. Lápis rímel pó compacto base sombra e delineador, também convêm e fazem os ajustes finais. Dois vidrinhos com aromas diversos. Um de cor verde cítrico seco e discreto faz duo com o batom pastel, o outro provoca o olfato e faz feliz o entardecer. Um par de pentes e escova com a função de soltar os cachos ou de simplesmente amaciar o cabelo para as mãos. Uma calcinha dentro de um saquinho especial é importante. Socorre nas situações difíceis e resolve urgências de amor ou outra mais prosaica de contagem errada de ciclo; da mesma forma as toalhinhas de papel umedecido. Lenços para assoar nariz, hidratante de mão, fio dental escova e pasta de dentes. Duas caixinhas para óculos. Grau e sol. Uma tesoura, um kit linhas de três cores, pressão colchete e botão, salvam a braguilha do colega de sala e de vez em quando agrada o chefe com um ponto aqui outro acolá. Caneta grafite borracha marca texto e clipes, cobrados logo a seguir ao empréstimo. Calculadora e MP3, pen drive e celular para sobrevivência. Porta moeda, carteira de dinheiro, documentos cartões de crédito e uma imagem de São Expedito para ajudar a saldar as dívidas. Chaves da casa do carro e da gaveta do birô. Uma medalhinha de Nossa Senhora Desatadora de Nós, uma camisinha Jontex sabor cereja e uma embalagem aberta de chicletes Trident light. Nunca se sabe a hora do beijo. 

 

 

 

fugir para a rotina
daniela lima

Saí do cinema meio tonta, procurando me apoiar nas paredes, mas e a bombinha, cadê? [A asma é uma doença inflamatória crônica das vias aéreas. Em indivíduos suscetíveis essa inflamação causa episódios recorrentes de tosse, chiado, aperto no peito e dificuldade para respirar.] Esqueci em casa ou acabou. Droga! A minha rotina é uma espécie de ante-sala da vida, onde nada acontece: passado e presente; sonho e realidade quase imiscíveis. Mas essa calmaria, esse nada, é uma espécie de contagem regressiva para um colapso, eu sei. De repente: escuro.

 

Acordo com um rosto desconhecido muito próximo ao meu, demoro a decodificar a imagem: dois olhos vivos e negros, diferentes dos meus que não têm brilho, mais parecem uns ocelos, opacos e mortos; o nariz dele é pequeno, bonito e proporcional; os lábios estão rachados, quase sangrando — a matéria viva querendo escapar. Ei, moça, tudo bem com você? Tudo, tudo bem. Foi só uma tontura. Mas você ficou desmaiada um tempo. Quanto tempo? Não sei. Mas muito? Não, não muito. Isso acontece sempre? Algumas vezes. Você não deveria andar sozinha por aí, ainda mais nessa época do ano. Carnaval. É, no carnaval as pessoas piram, sei lá. Vou tentar levantar. Oquei, se apóia em mim. Tá.

 

Um prédio de seis andares. Antigo. E, por Deus, tinha banheira! Sempre quis ter uma banheira em casa. E poder ficar imersa na espuma, em silêncio, ouvindo apenas o barulho que vem de mim, a rotina do organismo, o coração bombeando sangue para o meu corpo, oxigenando, impedindo que eu apodreça — muitas vezes pedi baixinho para que ele parasse; para que a força que faz com que essa bomba funcione falhasse e então eu:.

 

Era a primeira vez que entrava na casa dele, mas o meu corpo interpretava aquele momento como um retorno — era íntima da rotina e dos detalhes pequenos e, portanto, indivisíveis: as infiltrações, os livros e o barulho do ventilador de teto. Déjà vu. Quantas vezes eu já estive aqui? Percebia fragmentos de mim nas grossas camadas de poeira sobre os móveis e nos cantos do apartamento: o inevitável é leve. E nós, moço, somos inevitáveis, como a chuva e a morte.

 

 

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