edição 2
| novembro de 2005
3 limeiriques
(Mamãe, não leia, por favor)
Bebeu muita vodka orlofe,
"Ai" — Diva gritava em
falsete:
Moça singela, a Catarina
Notas da autora: 1. segundo o poeta Luiz Roberto Guedes, "o limerick é um poema popular, basicamente oral, de tradição inglesa, cuja temática, dixit Glauco Mattoso, oscila entre o nonsense e o escatológico. Foi introduzido no Brasil, no final dos anos 70, pelo poeta, escritor e letrista Braulio Tavares, nas páginas então avulsas do Jornal Dobrabil, do próprio Mattoso, que também lançaria os seus Limeiriques (Edições Dubolso, 1989)". (...) "Algumas autoras de livros infanto-juvenis vêm usando essa forma poética para fins didáticos, mas limericks são mesmo os jogos florais do baixo calão e do bom humor"; 2. conforme Barros Toledo, "quanto ao abrasileiramento do nome, trata-se dum trocadilho proposto por Braulio Tavares, aludindo ao lendário 'poeta do absurdo' Zé Limeira, popular no nordeste"; 3. ganhei a aposta.
gira Nunca vem, quando vem, vem fraca. Meninota me disseram que adulta eu ia desenvolver mediunidade. E como? Sou rádio de pilha minguada, não sintonizo a voz. Porque não recebo, não posso girar a saia, acender um pito. Fico de assistente, chego a ter bondade antes de entrar no centro, mas pego os nomes que quero perto e deixo no bolso do avental. Vai que a cigana lê. Fico ali entre o médium e o consulente. O pai-de-santo recebe uma cigana ruiva e gorda, ele é magro e se senta feito obeso num banco miúdo; ajeitando as dobras do outro mundo. Faço de um tudo pra traduzir o que diz à moça. Anoto os banhos e as preces. Ela é noiva e quer que um fulano, casado, a esqueça; e rápido, está sem paciência. É a primeira vez que pedem pra afastar e não juntar, disse a cigana. É que afastando ela queria unir, matemática enrolada, raiz de três. Quando a última foi atendida - só vai moça no terreiro - pedi pra cigana ver minha causa. Ela foi dizendo que me faltava concentração nas sessões, que faltava disciplina, constância. Achei que quem falava era o cavalo e não o cavaleiro. Concordei com aquela mistura de magro com gorda e acendi as velas roxas, junto com a batata doce. Vou levando. O pai-de-santo é meu marido, culpa minha. Um dia o levei no centro pra benzer, mandaram desenvolver, fazer a cabeça; justo ele sintoniza a voz. Agora faço a ponte entre ele e moças que querem homem. Num centro, o que se pede é a volta de alguém, eu inclusa. Meu marido, de cigana nos ombros, faz voltar até a memória. Sim, é pra ele enquanto aparelho que peço pra outro homem vir me buscar. Ele de nada se lembra depois que sobe a cigana, e me agradece. Pedi pra conhecer o que impedia minha fuga e ela veio. Veio, aqui no centro, a esposa do amante que não me larga nem me toma. Perturbada, veio pedir pra cigana que eu, logo eu ali ao lado, saísse do caminho. Ri. Sabe quando? Nem quando o pai-de-santo é o marido da chaga dela, nem quando eu mesma é que escrevo o despacho feito com meu nome. Meu prazer é ver fazer e desfazer; quando a fé não é minha, desconfio do milagre.
dionisismos No panteão grego, como todos
sabem, está lá Dioniso. Tão pop e controverso
quanto Michel Jackson, o celebrado Deus do Teatro Oficina, bênção
das orgias ocidente afora, é filho de Zeus com Sêmele,
uma mortal filha dos guerreiros autóctones, nascidos da terra
tebana. Os dois, Zeus e Sêmele, são amantes e o sonho
dela é vê-lo fulgurante, como o Deus que é. Atendendo
ao pedido da amada, Zeus acaba queimando-a, tamanha a força
de sua luz. Sêmele está grávida de seis meses
e Zeus retira o bebê de seu ventre, guardando-o na própria
coxa, continuando assim a gestação. Após três
meses, Dioniso "renasce". Penteu se fixa no alto
de uma árvore mas é percebido e bravamente esquartejado
pelas fêmeas em fúria. Quem lhe corta a cabeça
é a própria mãe, Ágave. Doida, ela não
percebe que se trata da cabeça de seu filho, mas, quando se
dá conta, o grito de horror...
sugar blues um corpo em chamas eu avisei para não brincar eu avisei que não se pode
viver você indo embora com o foco
da coqueluche era você se desfazendo era você em pó agora eu vou rezar pela sua
alma
ponto de ruptura No
início foi só uma idéia, um impulso, o corpo dela esparramado no sofá,
os cabelos longos e negros contrastando com a estranha luminosidade
do rosto, os cílios espessos, os lábios avermelhados; um braço estendia-se
ao longo do torso, o outro pendia para fora do sofá, parecia dormir,
embora ele soubesse que era mentira, que ela, intuindo a sua presença,
premeditadamente fechara os olhos e se deitara naquela posição, com
o cuidado de insinuar o decote, a fenda lateral do vestido. Chegou
em casa e ficou olhando, não com raiva, só aquele olhar insistente,
passeando para lá e para cá, examinando os detalhes, tentando encontrar
alguma advertência, algum sinal.
Sem hesitar pegou a tesoura esquecida em cima da cômoda, pegou-a como quem segura um punhal, a ponta afiada de um punhal e enterrou-o entre os seios que se mostravam pelo decote, enterrou-o várias vezes como se isso pudesse aliviar a febre, as palavras presas na garganta; depois largou a tesoura e foi abrindo, desfazendo com as próprias mãos a carne que ele sabia suave, com as próprias mãos, e os pedaços iam se espalhando pelo tapete e uma gota de suor escorria-lhe pela face, ela que sempre aquela gargalhada, que agora acabou, acabou a gargalhada, acabou, continuou dizendo, repetindo feito choro, feito ladainha, até que finalmente deixou-se cair resignado, as mãos trêmulas, as veias ainda saltadas nas têmporas e no pescoço. Deixou-se ficar ali, suspenso, vazio, até que com o passar das horas, pouco a pouco, o carinho foi voltando, e com ele um desejo, uma saudade. Arrependido, olhou em volta sem compreender bem o que tinha feito, ele que a amava tanto, que faria qualquer coisa para tê-la ao seu lado, qualquer coisa. E foi recolhendo os pedaços, um a um, guardando-os com cuidado na gaveta da cômoda, pensando que agora era tarde, mas que no dia seguinte, assim que acordasse, sentaria-se com calma e tentaria colar novamente os restos da foto que rasgara.
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