edição 2 | novembro de 2005
fúria

 

delicadezas
dominique lotte

teclado

 

O colchão acomodou o corpo dele. Suado, quente, inquieto.

 

- Onde esteve? -, balbuciou ela.

 

- O tempo todo ao seu lado -, respondeu ele, irônico.

 

Pegou na mão dela e puxou-a, enquanto acariciava seus longos cabelos louros. Ela sentiu seu coração pulsar mais forte. Arrepiou-se. Ele murmurou algo em seu ouvido. O hálito úmido envolveu-lhe o pescoço e caminhou em gotas sobre seus seios mornos. A voz dele, agora macia e lírica, tocou-a como uma asa de libélula. Imagens surgiram em sua mente. Escada, árvore, telhado, estrela.

 

*

 

O radio-relógio, agressivo e insensível, acordou-o. Levantou-se da cama vazia e ligou o computador. Ansioso.

 

O sangue jorrou do seu pescoço, a cabeça tombou sobre o teclado - gu6y7khjf.

 

Ela escureceu a tela. Deitou-se na cama. Adormeceu.

 

 

 

bactérias

 

- Não deve alimentá-lo com isso -, falou a médica, tentando livrar-se do fedor de vômito e suor que impregnava o barraco.

 

- Mas é o que ele gosta. E melhora.

 

- Por pouco tempo. É o que o adoece.

 

A mãe cerrou os lábios, cruzou os braços, teimosa.

 

- Quantas vezes já lhe disse que deve ferver a água? Tá cheia de bactérias.

 

- Não tenho dinheiro pra comprar botijão de gás.

 

A médica deu de ombros.

 

O baque surdo do seu corpo caído da encosta do morro abafou o choro da criança.

 

 

 

o presente

 

A campainha tocou, ele abriu a porta, ela entrou.


- Que calor! Desculpem-me...


- De novo, atrasada -, falei.

 

Os olhos dela, negros, sorriram. Os olhos dele, verdes, agitaram-se.

 

- Não fique zangada, trouxe um presente.

 

Entregou-me um embrulho. Abri:

 

- Obrigada!

 

Atirei duas vezes nele. Mais quatro, depois que ele caiu.

 

Lúcia me beijou. Na boca.

 

 

tia hilda
eugênia fernandes

Fúria em tia Hilda não queria dizer descontrole. Era, sobretudo, incisão e antipieguice. Se alguma fulana apoquentasse por reclamona, tia Hilda diagnosticava — é a vara. Ou melhor, a falta dela.

Do finado dizia: — só disse sim uma única vez no fatídico dia. O casamento é inviável.

Era nascer menino na família, a sentença saltava pronta da ponta da língua: — mais um problema.

Em dois anos enterrou cinco — pais, irmãos e marido. Seis meses do enterro do último, eles os mortos a perseguiam em sonhos e ela os enxotou, que voltassem pras tumbas que ela queria desfrutar o seu — enfim só.

Mas não desfrutou. Se perguntássemos, rebatia: — canário de gaiola quando abrem a janela só tartamudeia, minha filha. Ficou ali na sua prisão, entre a cozinha e as roseiras, sonhando em ver o mar.

Antes do fatídico dia viajou o mundo, rosto lindo, doceira finérrima, hibridava rosas em sua casa rodeada de jardins por todos os lados e buscou cores extravagantes. Falhando, claro.

Pra não restar resquício do finado trocou a cama de casal por duas de solteiro. Na primeira noite desacostumada caiu. Na queda (tia Hilda era magra) machucou um rim e aí foi coágulo cancerígeno.

Talvez prenunciando a sua morte pediu — nada de flores! É cláusula irrevogável do testamento.

Quando ela morreu foi a primeira coisa que eu me lembrei.

Como prometido nada de flores, caixão fechado só com vidro no lugar do rosto, assim ela queria. Ninguém tirando partido da defunta. Nenhuma notícia sobre o tamanho da sua barriga, as unhas malfeitas.

Lá se foi tia Hilda sem ver o mar. Que ela sabia — sua cara morta demonstrava feliz: era doce.


 

N.A.: Qualquer semelhança com personagem da vida real não é pura coincidência. Tia Hilda existiu, era tia da Silvana Guimarães.

 

 

5 poemas
jane sprenger bodnar

paraíso

 

destratos

nos desapegos

a que me proponho

 

limiar do desalento

 

humana que sou

mesmo que um mago

me torne pedra

 

além de preciosa

 

ociosa tempestade

lânguida

o todo de cada metade

 

ana luíza e renata

dormem juntas

 

paraíso

 

 

 

 

nuclear

 

desosso os interesses

molusco sem paredes

 

 

 

 

lance

 

ágata

três miçangas baratas

a pata do lince sobre a mesa

esmaga domingos

e assusta as saladas

 

 

 

 

overzen

 

 

a chuva ressuscita cenários

 

o corpo do gato se contrai

no último salto para que continue lindo

 

oficina de milagres

 

poder nenhum

 

 

 

 

instalação

 

 

não importa

quero aberta a janela

 

perigo não há

já me assaltaram tantos sonhos

 

leve tudo

deixe apenas a luz do sol

 

grudada na parede

grafitando

o nome das horas

 

1 poema
marília kubota

*

 

eu também quero
mentir bastante
eu também quero
gritar céu-silêncio
eu também
(impossível controlar)
que você sirva
ao  ponto cego
que se entregue à fúria
que não acredite
num deus que desmanche

 

 

 

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