edição 2
| novembro de 2005
delicadezas teclado
O colchão acomodou o corpo dele. Suado, quente, inquieto.
- Onde esteve? -, balbuciou ela.
- O tempo todo ao seu lado -, respondeu ele, irônico.
Pegou na mão dela e puxou-a, enquanto acariciava seus longos cabelos louros. Ela sentiu seu coração pulsar mais forte. Arrepiou-se. Ele murmurou algo em seu ouvido. O hálito úmido envolveu-lhe o pescoço e caminhou em gotas sobre seus seios mornos. A voz dele, agora macia e lírica, tocou-a como uma asa de libélula. Imagens surgiram em sua mente. Escada, árvore, telhado, estrela.
* O radio-relógio, agressivo e insensível, acordou-o. Levantou-se da cama vazia e ligou o computador. Ansioso.
O sangue jorrou do seu pescoço, a cabeça tombou sobre o teclado - gu6y7khjf.
Ela escureceu a tela. Deitou-se na cama. Adormeceu.
bactérias
- Não deve alimentá-lo com isso -, falou a médica, tentando livrar-se do fedor de vômito e suor que impregnava o barraco.
- Mas é o que ele gosta. E melhora.
- Por pouco tempo. É o que o adoece.
A mãe cerrou os lábios, cruzou os braços, teimosa.
- Quantas vezes já lhe disse que deve ferver a água? Tá cheia de bactérias.
- Não tenho dinheiro pra comprar botijão de gás.
A médica deu de ombros.
O baque surdo do seu corpo caído da encosta do morro abafou o choro da criança.
o presente
A campainha tocou, ele abriu a porta, ela entrou.
Os olhos dela, negros,
sorriram. Os olhos dele, verdes, agitaram-se. - Não fique zangada, trouxe
um presente. Entregou-me um embrulho.
Abri: - Obrigada!
Atirei duas vezes nele. Mais quatro, depois que ele caiu.
Lúcia me beijou. Na boca.
tia hilda Fúria em tia Hilda não queria dizer descontrole. Era, sobretudo, incisão e antipieguice. Se alguma fulana apoquentasse por reclamona, tia Hilda diagnosticava — é a vara. Ou melhor, a falta dela. Do finado dizia: — só disse sim uma única vez no fatídico dia. O casamento é inviável. Era nascer menino na família, a sentença saltava pronta da ponta da língua: — mais um problema. Em dois anos enterrou cinco — pais, irmãos e marido. Seis meses do enterro do último, eles os mortos a perseguiam em sonhos e ela os enxotou, que voltassem pras tumbas que ela queria desfrutar o seu — enfim só. Mas não desfrutou. Se perguntássemos, rebatia: — canário de gaiola quando abrem a janela só tartamudeia, minha filha. Ficou ali na sua prisão, entre a cozinha e as roseiras, sonhando em ver o mar. Antes do fatídico dia viajou o mundo, rosto lindo, doceira finérrima, hibridava rosas em sua casa rodeada de jardins por todos os lados e buscou cores extravagantes. Falhando, claro. Pra não restar resquício do finado trocou a cama de casal por duas de solteiro. Na primeira noite desacostumada caiu. Na queda (tia Hilda era magra) machucou um rim e aí foi coágulo cancerígeno. Talvez prenunciando a sua morte pediu — nada de flores! É cláusula irrevogável do testamento. Quando ela morreu foi a primeira coisa que eu me lembrei. Como prometido nada de flores, caixão fechado só com vidro no lugar do rosto, assim ela queria. Ninguém tirando partido da defunta. Nenhuma notícia sobre o tamanho da sua barriga, as unhas malfeitas. Lá se foi tia Hilda sem ver o mar. Que ela sabia — sua cara morta demonstrava feliz: era doce.
N.A.: Qualquer semelhança com personagem da vida real não é pura coincidência. Tia Hilda existiu, era tia da Silvana Guimarães.
5 poemas paraíso destratos nos
desapegos a
que me proponho limiar
do desalento humana
que sou mesmo
que um mago me
torne pedra além
de preciosa ociosa
tempestade lânguida o
todo de cada metade ana
luíza e renata dormem
juntas paraíso nuclear desosso
os interesses molusco
sem paredes lance ágata três
miçangas baratas a
pata do lince sobre a mesa esmaga
domingos e
assusta as saladas overzen a
chuva ressuscita cenários o
corpo do gato se contrai no
último salto para que continue lindo oficina
de milagres poder
nenhum instalação não
importa quero
aberta a janela perigo
não há já
me assaltaram tantos sonhos leve
tudo deixe
apenas a luz do sol grudada
na parede grafitando o nome das horas
1 poema
*
eu
também quero
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