edição 35 | junho de 2009
temas:  farpas | o outro lado | retrato

 

sino de prata

roberta silva

 

beijar-te as pálpebras

até as farpas de teus cílios

sangrarem-me os lábios

 

comer-te de garfo e faca

aos pedacinhos

é de melão gelado

o teu sabor

 

de canhota escrevo este poema

inspira-o a falange distal do médio destro

ou tua voz rouca, sino de prata?

 

gegê

ro druhens

 

 

E era feito uma prisão, correntes, correntezas, corredeiras. Correria em direção contrária, contramão em seus quereres. Pois que o bom era o outro lado, que não via. Nem sabia, nunca fora. Mas sonhava, mais queria. Sem o tempo do relógio, sem o cheiro do feijão. Sem barriga de cerveja, tabuada, fralda suja de cocô.

 

Mais cebola nos temperos, faca cega, cegos eles a suas lágrimas, já o eram a seus desejos.

 

De batom. Era vermelho. E não seria?

 

Carimbou os guardanapos. Um gole de nada em cada copo vazio, posta a mesa. No colarinho e na cueca. No espelho do banheiro fez desenho. Coração apunhalado, pingando na pia: "Saio da história para entrar na vida".

 

Levou um tiro no meio do peito, às 6 da tarde, no boteco da esquina, bebendo cachaça, com mão de macho em suas coxas.

 

E cantando a Ave Maria.

 

 

1 miniconto, 3 poemas
romina conti

alma gêmea

 

O retrato me dizia algo quando não me dizia nada. Assim íamos até o dia em que a empregada o espatifou no chão. O retrato ficou em papel. Mas a moldura feita do nosso amor, não. Empregada gostosa é foda.

 

 

 

 

3 X 4

 

o três por quatro

não é um retrato

é o close de um fato

 

algo que fica na carteira

de identidade pra sempre

como se nunca um dia

 

tivéssemos sido gente

 

 

 

 

retratinho

 

o retratinho se iguala ao retratão

quando feito por um artista

 

o retratinho só não é igual ao grande

quando a gente fica maior que a vista

 

e o retrato e o quadro se igualam

quando o pintor é um chato

 

que pinta tudo o que vê

como se fosse mero retrato

 

 

 

 

fotógrafo

 

também aguardo a primavera

e seus dedos de aurora

 

mastigo os ventos do inverno

e assim cavalgo a libélula

 

então me diga quanto tempo

temos antes de comer os elefantes

 

as vozes que escuto são iguanas

e as iguanas são as semanas

 

assim estive em Bélgica

olhando a pele de uma cobra

 

como se todo esse movimento

fosse na sua totalidade um nada

 

que envolto num barulho musgo

cuspisse tudo o que é sujo

 

e sujo vou me alimentando de tintas

riscando-me como um lápis sem grafite

 

toda a esquisitice existe

e a minha poesia é a mais pura velhice

 

 

©eliége jachini

 

confissões
santa maria

I

 

— Queria muito ainda ser virgem! Confessou a puta cansada.

Sempre quis ser puta! Respondeu a virgem exaltada.

 

 

II

 

Descobri que não vivo sem você!

Eu é que não vivo sem você!

Nesse caso, acho melhor nos separarmos.

 

 

III

 

Boa noite Desejou ela, apagando a luz.

Boa noite Responderam os mortos.

  

 

a pitonisa pronuncia que está nevando no
outro lado do nada

shânkara lis

Sonho que sou uma tempestade perfeita lá no alto, mas, cá embaixo, próximo do cotidiano de um copo d'água e de uma folha que cai, sei que pareço mais a um pequeno sopro de chuva na vidraça e aprendi, nesses dias em que reverencio uma planta bravia que eu chamo de A., aprendi que de ar sou e me interessa muito o que a pitonisa pronuncia perto da veneziana, e ela pronuncia que está nevando do outro lado do nada, e também me diz que posso, ainda, espiar a restinga, sim, eu aqui nesse hotel Continental à beira do azul-mar-grosso-de-sal, em pleno século V dos leões transparentes, eu, durante a sagração dos oráculos, sou aquele que escuto atentamente a pitonisa consagrada, a mesma que pronuncia tudo e tudo sabe e devasta um quarteirão com apenas um suspiro seu ou um andar pelas tábuas do quarto. E, quando anoitece nas grutas, nos pulmões e nos sentimentos indecisos, a pitonisa se desnuda até da pele nua e, agora, a planta bravia que eu chamo A. tem uma cútis de Palmolive e sonha que a tempestade guarda entre as coxas uma claridade que não é desse mundo nem do outro. Ela enche os terraços de músicas, de buracos, de árias, de legiões: sua língua não passa de ar, mas um ar que deleita até mesmo aqueles que sorvem cianureto porque eles têm nostalgia das noites molhadas quando um corpo penetra num corpo alheio: água na areia. Mesmo se eu tivesse a alma rasa e inquieta, a pitonisa viria pra chorar uma estrela em meu tímpano, e também ela viria pra revelar que a única coisa que existe nesse mundo é uma sereia de cabelo azul, e esse cabelo azul traz à tona um saber vasto e profundo, para enfim aprendemos que só escapamos do pó se estivermos atentos à respiração da planta bravia A.: porque diante dela curva-se o que em nós apodrece e, se o desejo for mais fundo no escurento, e se nada temermos da tempestade, a tempestade estará em nós sonhando, e quanto mais no alto formos a chuva, mais acordamos do sonho e penetramos no hall do hotel Continental pra descansar naquela cama com aquela pitonisa agarrada à planta bravia A. que pronuncia o oráculo delicado: não somos nada — as palavras — mais fortes que cada um de nós!

 

 

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