edição 36 | agosto de 2009
temas:  agora é quase amanhã | brinquedo | o nono mandamento

 

virgem maria
florbela de itamambuca

parece mas não é dedo de moça

faz prece na quermesse e se coça

nas minha mão se conta qual mulher

com que batina coça as valizer

 

as namorada lá do interior

fica pedindo muito por favor

não é porque puseram lá na lei

que o padre necessariamente é frei

 

quando eu era menina ia na igreja

pura inocente e linda de bandeja

hoje prefiro a reza aqui do mar

 

no mar tem oração santo e altar

e é sem sabor de inveja dessas feia

e pra rezar nem preciso de meia

 

 

  

mimética
jane sprenger bodnar

já que não posso

tapete de musgo

 

que eu assalte

o banco da praça

 

               musgamente

 

 

 

 
 
 

brinquedo-corpo
julya vasconcelos

 

I - os cabelos

 

Enrolar nos dedos, nos dentes.

 

Secar ao sol sem escová-los.

 

Deixá-los loucos

 

porque assim me parece

que você passou o dia a escutar

mexicanita veracruzana,

música mais bonita.

 

 

II - os pés

 

Simetria imperfeita.

Cama, apartamento, passeios.

Queria poder traçar rotas e te pôr patins.

Puxar por uma cordinha.

 

 

III - os olhos

 

Nunca vi feridas tão grandes e redondas embaixo da testa.

 

Moviam-se como vitrolas, vinis negros coalhados de tempo e verbo

E vazios

e cheios

e cheios

e vazios de vertigens e línguas: correspondentes assim a qualquer líquido, de vodca a água de tilo.

 

E tinham as chaves pro mistério do que é sempre e secretamente familiar,

como quando entendemos Joyce ou as cartas de Sor Juana Inês de La Cruz.

Ou quando vemos a cara de Deus.

 

 

  

©simonia fukue

 

miçangas:
caligrama de um escriba morto

jussara salazar

 

O monge tem os pés descalços

 

                                 medita (coríndon sobre o manto)

 

um dia quis ser o rei. Ser o rei. A bacia com água reflete o ouro 

                

círculo solar

 

     que enlouquecendo

 

cega até o monge, cega até el rei.

 

  

 

3 contos, 1 poema

lia beltrão

 

outro dia

 

O que estou fazendo aqui, presa neste dia? Todos os nãos que um dia pode dar a uma mulher, este dia já me deu. Acordei cansada, mal dormida. Não por ter dormido só, mas por ter querido não dormir só.  O fim da manhã de sábado pagando os pecados da noite da sexta-feira.

 

O café de sempre amargou na minha boca.  Fumei demais. O cheiro de pão torrado dando embrulho no estômago. Bebi demais. Comi o que não presta. Vi televisão até morrer. Ressucitei com o cair da tarde. Tomei um banho frio, conferi as olheiras e desabei no sofá.

 

Quem sabe o celular me salva o sábado. Nenhuma amiga disponível. Minha mãe passando o fim de semana num fim de mundo sem sinal. Homem, nem pensar. Estas olheiras só inspiram piedade. E de que vale um homem quando se quer apenas dois olhos amigos e ouvidos atentos aos nossos resmungos e fungados?

 

Não é dor o que me abate neste dia. É um sentimento de prisão, cofinamento, de deserto. Grandes são os desertos, dizia um homem de alma feminina.

 

Mas por maior que seja o deserto deste dia, já é quase amanhã. Outro dia. Outra.

 

 

 

brinquedo

 

Não me toque às cegas

Não me dispa logo

Não me morda os lóbulos

Não me amasse os seios

Não me afunde os dedos

Não me coma às pressas

Que eu não sou brinquedo

 

Me toque

Me dispa

Me morda

Me amasse

Me afunde

Me coma

Bricando comigo

 

 

 

não desejarás...

 

E, no entanto, eu a desejei. Não sei de onde veio o brilho, a piscadela, o movimento imperceptível que pôs em movimento meu desejo. Foi um querer urgente. Uma necessidade. Um frêmito de vida e morte. Uma lâmina correu minha medula pondo todos meus sentidos em alerta. Estava ali uma mulher bonita como eu, atônita como eu, exalando — é isto, exalando —, um convite, um pedido, um chamado, um mandato.

 

Nunca um corpo de mulher tinha afetado tanto meu corpo de mulher. E o movimento subterrâneo de minha carne revelou-me uma verdade que eu temia. Queria aquela igual, tão diferente. Queria aquela outra, tão próxima de mim.

Não desejarás a mulher do próximo, reza o código. E, sim, havia ali um próximo. Próximo no espaço, no braço dado, na cara de dono. Mas a milhas de distância do que aquele corpo exalava.

 

Somente eu, sozinha e perplexa, percebi o seu apelo, o seu mandato. De outra vez, talvez o próximo não esteja próximo. Então saberei o que fazer do meu desejo.

 

 

 

o nono está liberado

 

Pois é, meninas, que sorte a nossa. Não existe nenhum mandamento nos proibindo desejar o homem da próxima. Os machos do velho e do novo testamentos estavam tão seguros da nossa subserviência que esqueceram de proibir nosso desejo. Achavam que tinham feito o serviço repressivo tão bem feito que nós mesmas cuidaríamos de baixar a cabeça, desviar os olhos e apagar da mente qualquer traço de um homem que não fosse o nosso. Isto, ou homem nenhum.

 

Por conta deste cochilo dos legisladores, estamos livres para o pleno exercício do desejo. Desejemos, pois, os homens, os fihos, as filhas, os gatos e cachorros de nossas próximas. Desejemos mesmo nosas próximas, pois o desejo é que move o mundo. Essa vontade, esse furor de estar próximo, de conviver, de amar que não se esgota numa cama. Foi isto que escapou dos legisladores. Desejar é querer o bem do alvo do nosso desejo. Só os psicanalistas pensam de outro jeito. Os psicanalistas e os autores dos dez mandamentos.

 

 

 

10 estórias mínimas
lídia

 

1.

 

nono mandamento, primeira confissão

 

Eu me deito, todos os dias, com o saltimbanco dessa zorra toda, Barrabás, e ele chora, nas falhas de meu pensamento, o orvalho de seu labirinto. Depois ligo o rádio e o coral de Monteverdi destroça os barcos na praia.

 

 

2.

 

Ela sabe que só se ama pelo intelecto.

 

 

3.

 

Eu queria ser aquela sombra que o chapéu faz em tua clavícula.

 

 

4.

 

nono mandamento, segunda confissão

 

Ainda ontem me passaram o sabão no sono do sexo. — A sede dos brutos é um improviso cruel: eles me chuparam a coxa, o brinco.

 

 

5.

 

Eu queria poder fugir nesse instante em que v. executa essa flauta transversal no meu ouvido.

 

 

6.

 

Temo que amanhã eu acorde e v. tenha bordado as velas da nau.

 

Temo que a última cena seja essa:

 

Primeiro v. dirá, A arquitetura do desespero e do medo, só o que teus olhos sabem decifrar. Teu coração bate o luto dos dias.

 

Depois prepara o café enquanto cola selos em postais de despedida, esse é para meu pai que, mesmo morto, ainda martela, em meus sonhos, a rigidez e a palmatória.

 

FIM.

 

 

7.

 

eu queria escrever esse poema de chuva para livrá-la de todo cansaço inútil, eu que te acho mais bonita que a lenda do boto e de quem escuto, todos os dias, que temos que aprender a lapidar aquilo que em nós é o divino espírito santo de uma varanda com pomar de conchas,

 

...

 

 

8.

 

No meu sonho John Cage executa um solo de peixe.

 

 

9.

 

Na primeira vez em que ela choveu por aqui — o essenfelder emanava do rádio cansado da tarde —, toda angorá, com sua saia, suas coxas, fui às casas bahia. O dia morreu nela.

 

Na segunda em que ela aqui apareceu, toda suja de Manuel Bandeira, eu bebia um copo de graxa com o prefeito.

 

À terceira vez ela entrou no mar. À noite sonhei com generais que ardiam na fogueira.

 

 

10.

 

e disse o Führer:

 

Bebam desse mar gelado o sal que ele, o mar gelado, é, nada mais, nada menos, que a vossa própria sede.

  

  

 

compartilhar: