edição 36 | agosto de 2009
temas:  agora é quase amanhã | brinquedo | o nono mandamento

 

11 poemas
líria porto

o fio da meada é cor de prata

 

o tempo passarava e o canto do galo

rasgava com um dardo

as madrugadas

 

amanhã era hoje num instante

embora nos olhássemos

e jamais fôssemos grandes

 

a vida pássara deixa-nos atrás

traz-nos cabelos brancos

 

o galo canta — não sei se agora

ou ontem

 

 

 

lembranças

 

quando amanhã for ontem

esperanças serão acervo

 

 

 

entardece

 

à volta da mesa

outras cadeiras

 

sirvo-me de ausências

e sopa de feijão

 

quem sabe amanhã?

 

 

 

perdulário

 

amanhã será hoje

e hoje passado

(ter-se-á esgotado

o tempo de viver)

 

) quem joga vida fora

não sabe a importância

do agora (

 

 

 

adiamentos

 

a lua esperava o sol

redonda um talismã

quando ela se despiu

ficou de manhã

 

o sol lambia a lua

o meio o lado as beiras

lamberia a face oculta

a nuvem veio

 

só amanhã

 

 

 

brinquedo

 

um pião uma fieira

uma laçada no pino

estico a corda à ponteira

enrolo-a firme sem medo

seguro a linha entre os dedos

e num impulso

atiro-me

 

gira coração

 

 

 

ioiôs

 

atados a sentimentos

corações vão e voltam

como brinquedos

 

 

 

 

lavai

 

tal qual um menino

procura brinquedos

lá vai o poeta

a tinta as letras

 

tal qual passarinho

no uso das asas

lá vai o poeta

o voo as palavras

 

tal qual a canoa

por cima do rio

lá vai o poeta

o remo a rima

 

tal qual marinheiro

no rumo do mar

lá vai o poeta

a barca o navio

 

tal qual lavra_dor

na lida da terra

lá vai o poeta

a enxada a caneta

 

lavai

 

 

 

mágica

 

nossos dedos

brinquedos de deus

como abelhas ou aranhas

transformam em obras de arte

as coisas simples

 

 

 

ralo

 

outra arrancou fio a fio

os pelos do seu bigode

aquele colchão macio

onde deitava meus beijos

e sentia cócegas

 

 

 

finjo-me esfinge

 

meia lua meu amor

é tua

 

a outra metade

guardei-a para o compadre

que me beija a boca

quando chegas tarde

da casa da outra

©simonia fukue

 

2 poemas, 1 miniconto

márcia maia

 

 

versos de circunstância

 

o relógio do corredor parou à 1:23:55

deixando a madrugada suspensa no ar

 

quanto de sonho dor desejo beijo

se prolongou ou se perdeu

 

atado a esse instante

 

quantos versos bailaram em minhas

mãos sem inscrever-se

 

até que desmentindo o relógio o dia

amanhecesse e

 

desatasse a madrugada suspensa no ar

 

 

 

top secret

 

os pelos que enegrecem-me

o púbis

enroscam-se carentes

de tuas mãos a desejá-los

perto

 

 

 

ao pé da letra

 

Não adianta insistir. Ficar repetindo que é pecado. Só se for pra você, que é  padre. Eu sou livre. E não desejo a mulher de ninguém. Muito pelo contrário. Meu Dagoberto, todo negro e todo lindo, gostoso como ele só em toda e qualquer posição, é homem. Muito homem. Com todas as letras e em todas as acepções. E ainda que eu desconsiderasse a literalidade da escrita de Moisés e todos os seus tradutores, a tal mulher, caso exista, de próxima não tem nada: mora tão longe, mas tão longe, que, como escreveu o poeta Alberto, as cobras se perdem no meio do caminho.

 

 

 

pequeno deslize
mariza lourenço

— Então, escreva um bilhete mais ou menos assim: querido P., estou de partida, acabou. Seja feliz. Adeus!

 

— Maldade!

 

— Maldade é continuar enganando o pobre.

 

— Credo, sua horrorosa.

 

— Isso, minha filha, reze um credo, porque você necessitará de ajuda divina caso resolva ter uma conversa com P.

 

— P. sempre foi calmo.

 

— Homem traído é homem traído, não acredite em tanta mansidão, a não ser, claro, que ele tenha vocação pra coisa.

 

— Ih, o celular. Alô? Oi, amor. Ahn? Quê? Ah! Tá, compreendo... Não, tudo bem... Tá, tudo bem... Não, tudo bem... Tá, tudo bem!

 

(clic)

 

— E... Aposto que era o C.

 

— Era.

 

— E... Aposto que ele deu pra trás.

 

— Deu... Ai, que vontade de chorar.

 

— Não faça cerimônia, chore à vontade. Não, não, espere um minuto. Pense numa coisa, você já passou dos quarenta e nessa idade, sabe como é, despenca tudo.

 

— O que eu faço agora?

 

— A comida favorita do P.

 

— Tem camarão no congelador. Você é louca.

 

— Bem, mais vale um P. na mão...

 

— É?

 

— É. Abra um vinho também. Viva o P.

 

— Viva! Ai, que vontade de chorar.

  

 

2 poemas
nina rizzi

in:dependência

 

amor,

ah, desculpe, se te firo, digo

: amiga

 

(ainda que aqui permaneça

e seja sempre amor

uma parte-toda história minha,

e mais, hein

: o amor é meu e foda-se você

se não o quer,

é em mim que ele está

e independe de você)

 

então, amor,

é que comigo não tem essa

de se re-encantar do desencanto,

ou se está e quer e é

ou nada disso basta.

 

eu não sou brincadeira

(apesar de me-nina

sem eira nem beira)

: uma pipa que sobe em

altos ventos voos

cai no mormaço

e corta a linha

quando tão alta.

 

pode me chamar de

pândega, quadrada,

pandorga, pipa, papagaia

ou tudos que sonhar,

mas eu tenho um nome

muito meu, viu!

não sou um teu

iô-iô

que vaievem.

 

e aí

vo(u)o ou (r)acho-a?

 

 

 

poemeto do triste desespero

 

não sou lúbrica, esbelta ou feminil

tampouco merecedora de poemas

                     ou poucas letras

[logo eu, (mo)vida em palavras]

sou arrogante

                mal-humorada

[textos ressentidos

                       escondidos]

sujeito não

substantivo composto

: passatempo

 

  

 

 

 

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