edição 37 | outubro de 2009
temas:  os quatro elementos (água, fogo, terra, ar) ou os signos | pés | aquele beijo que te dei

 

por um fio

ro druhens

 

O porteiro me entregou o telegrama, me borrei de medo, claro. Eu falei com sua mãe ontem, contou que a Kika pariu. Imagina, oito filhotes de uma vez, a pobrezinha. Até hoje ela late quando escuta o Frank Sinatra. Não, a Kika late, embora sua mãe pudesse fazer isso muito bem. Muito preocupada se havia algum filhote fora das tetas, bem a cara dela. Até hoje ela acha que você está pendurado nas muxibas dela, ô velha filha da puta. É, meu filho, quem sai aos seus não degenera. Espera, não desliga, ainda não terminei. Não disse ainda o motivo dessa ligação. A porra do telegrama. Que merda, você pensa que eu cago dinheiro? E a cretina da sua mãe me enrolando, dizendo que, numa altura dessas, você já podia ter arrumado emprego, falando de merda de cachorra parida pra me distrair. Sei. Mas é mesmo, reconheça ao menos uma vez na vida. Porra, que saco. Ligasse a cobrar, cacete. Telegrama? Puta merda, a gente recebe telegrama e, se não estiver casando, só pensa em desgraça, é que nem telefonema no meio da madrugada. Eu sei, porra, mas o que você quer que eu faça? Dê o cu na zona? Num tá valendo nada, não, você já gastou as minhas pregas. Que isso o quê? Falo sim, falo quanto eu quiser, não sou uma maquininha eletrônica de esquina, onde você enfia e saca, enfia e saca, enfia e saca. Para, cacete. Vai falar sacanagem pra tua mãe. Ou pras vagabundas que você deve estar fodendo aí nesse fim de mundo. Quem? Eu? Vai mentir pra puta que te pariu. Tá, desculpe. Lembro. Foi em Cabo Frio, carnaval de mil novecentos e antigamente. Sarongue. Claro que lembro. Eu nunca tinha ido à praia de madrugada. Entrado no mar pelada. Chupado pau salgado, com gosto de mar... loucura... eu também... muita... também te amo, repete o número da conta...

 

 

zodíaco

santa maria

 

Era tão apaixonado pelo céu, que passava a vida na janela, a namorar de longe as estrelas. Então, descobriu que era pouco. O seu amor tinha uma fome ainda maior. Precisava de uma aproximação. Comprou uma luneta, observando de perto, através das grossas lentes, as constelações. Não satisfeito, a sua paixão requeria tocar, sentir, possuir. E subiu na torre mais alta que encontrou, venerando os seus astros. Mas era pouco, ainda. Queria chegar ao céu, não estar apenas perto dele. Só quando seu desespero o fez atirar-se para baixo é que finalmente conheceu as estrelas.

 


©cristina carriconde

 

 

pés
suzana bandeira

me travo na terra.

a água me lava os turbilhões de fogo.

o ar é o que sobra no meu olho.

  

 

pegadas
tati skor

Um ano atrás, mesma data, mesmo local. Crepúsculo. Chegamos ao final da praia, onde a montanha avança sobre as águas. Sentamos numa rocha. Carícias, abraços, beijos. Olhei para trás, vi nossas pegadas, trilha que se perdia na areia. Olhei meus pés bem cuidados, vi nossos caminhos paralelos vindo de longe até aquele agora. Mesmo assim a angústia. No horóscopo dele, "alegria no amor". No meu, "vereda que se afasta". Ar.

 

Agora, mesma data, mesmo local. Crepúsculo. Os últimos lampejos rosa e púrpura, perdendo a luta para a noite banhada na névoa da maresia. Olhei para trás, minhas pegadas vindo de longe, eu sentada na rocha, entrevendo meus pés descuidados. Uma brisa tentando trazer alento. Em mim, um tufão por dentro. O horóscopo. Minha trilha as ondas apagarão de imediato. Mar.

 

 

 

 

compartilhar: