edição 3
| dezembro de 2005
Nove e meia. Ele disse que ligaria às nove e meia. Pelo jeito que respondeu quando perguntei se ligaria mesmo, pareceu que ia. Oito e quarenta. Vou tomar um banho. Um banho bem demorado. Cinqüenta minutos, não, uma hora. Ele liga, não posso atender, depois eu ligo. Digo que estava no banho e nem ouvi o telefone tocar. "Quando saí e vi o número no Bina é que me dei conta de que estava tarde". "Sim". "Ótima, um pouco cansada". Bocejo? Não, só quando ele começar a contar seu dia. Isso vai deixá-lo sem graça. Sim. Vai. Peço desculpas e falo que passei o dia escrevendo, que em cima da hora a editora recusou o texto, que deu prazo para ontem. Se ele perguntar se não prefiro descansar? Posso dizer: "Não vai ficar chateado? Insisti tanto para você ligar". Aí ele diz: "Não, tudo bem". Com cara de rato molhado. Bem que podia. Ia ser bom. É. Ia. Será que o banho não demorou? Sempre ouço o telefone. Nove e quarenta e cinco? Não. Tem linha. Vou passar meus cremes. Assim ganho uns quinze minutos. Dez horas. Talvez ele tenha dormido. Tem trabalhado tanto! Não, não ligue! Por favor! Por favor! Por favor! Não ligue! Toda vez a mesma coisa! Ele esqueceu! Ele esqueceu! Ou não quis. Coitado! Pode ter acontecido algo bem mais simples. Sim. Simples como ele não estar nem aí para você, Idiota! É estranha a dor disso. Será que tenho problema no coração? Está doendo aqui. Ai. Liga! Liga! Liga, Seu Desgraçado! Pare de chorar! Pare de chorar! Pare de chorar! Tome um calmante! Todos? Não! Não! Não! Só um. Meio. Só para relaxar. Dois, melhor. Senão não durmo e fica pior. Droga! Droga!... Droga... Hummm... o... te-le-fo-ne... alô?... não, eu... não... es-tou...
a solidão das suicidas uma artista Morta. Na varanda, a mesa posta. Toalha de linho irlandês. Limoges e Bacarat, restos de trufas e champagne. Morta e nua. Na boca, restos de porra e formicida. Nos lençóis, a graxa do motorista, a terra do jardineiro, as luvas do mordomo, o leite do leiteiro, a massa do padeiro, as tripas do açougueiro, o suor dos jogadores, o vento dos marinheiros. E as palavras do poeta. Morta. No bilhete de despedida a letra desenhara com pena de ganso: "Que me ponham as mãos em cruz, sobre o sexo, e nelas sejam pregados os restos de todos eles".
Todas as noites, logo após o jantar, ela sentava-se ao lado do rádio, ouvia a novela e bordava as camisolas do seu enxoval. Em seus dedos as sedas e as rendas transformavam-se na pele que lhe cobriria a alma quando o corpo cedesse aos riscos da mão do noivo. Não ousava nos decotes, tampouco nas transparências. Seu capricho era o recorte da renda que aplicava sobre a seda, com o mesmo cuidado com que o orvalho borda as manhãs. Guardava o bastidor e as agulhas quando Albertinho Limonta chorava nos seios fartos de mamãe Dolores e levava o noivo ao portão. O noivado durou mais do que durou o Direito de Nascer. Dezoito anos de rendas, sedas e bordados. E o noivo escreveu na vida dela a derradeira novela: O Direito de Partir. Muito tempo depois voltou às camisolas. Aos embrulhos feitos com papel de seda azul. Ao fundo das gavetas. Ao quarto que seria deles. Era uma tarde quente de dezembro. Arrancou os lençóis que cobriam os móveis. Despiu-se e procurou o embrulho azul que resguardava a camisola de seda rosa enfeitada com minúsculos leques feitos de renda. E tudo se desfez em suas mãos. Vestida de andrajos, coberta de trapos, deitou-se na cama tão virgem quanto ela e riu. Riu da aranha que, próxima à janela, tecia a renda de uma teia, rosa pela luz do sol, em feitio de leque.
Por vezes, às seis da tarde, Dolores sentava-se no fundo do quintal. À sua volta, 12 velas. E as dispunha como os números são nos mostradores dos relógios, as casas num mapa astral, os cavaleiros em torno da távola. Quando o rádio da empregada tocava a Ave Maira, Dolores fechava os olhos e brincava de ser santa. Entronizada em altar de grama e formigueiros. Os canteiros de sempre-vivas eram-lhe guirlandas de gratas oferendas. As maltratadas bonecas, sem braços e de olhos vazados, eram-lhe ex-votos. Muitas vezes, às seis da tarde, Dolores senta-se no fundo do quintal. À sua volta, esfarrapados lençóis e as marcas indeléveis dos desejos baratos, dispostos como fantasmas que assombram as noites. Quando o rádio toca o tema da novela, Dolores fecha os olhos e brinca de ser pecadora. Entronizada em altar de seda e plumas. As cédulas amarrotadas são-lhe parcas oferendas. Vazados olhares e maltratados abraços são-lhe votos de nunca mais.
dias de guerra Todas as cinco televisões da casa ligadas. Cada um no seu quarto. Papai na sala. Mamãe na suíte. Todo mundo vendo o canal 4. Portas fechadas. Todos fechados em seus quartos. Alguma mulher morta na tevê. Mal dá seis horas. Não é noite em lugar nenhum do Brasil. Ouço um boa-noite. Detesto ouvir boa-noite porque as noites nunca são boas. Naturalmente bate uma tristeza às seis horas. É a hora em que começam a dar boa-noite. Nesta mesma hora, passo um e-mail para mim. Assim recebo meu e-mail diário, contando-me as minhas novidades. Há muito tempo que não tenho novidades. Mas invento. Outro dia danei-me a contar quantas motos passavam lá embaixo, na rua. A rua é um lugar calorento feio cheio de gente com mendigos por todo lado pedindo cada centavo que não temos e muito mais coisa ruim do que coisa boa. A rua não é a Lua. Se fosse a Lua ia ser um lugar interessante para ficar. Um lugar vazio. Com coisas a fazer. Aqui tudo já está feito e de vez em quando alguém inventa uma nova obra, só para dizer que está fazendo alguma coisa. Perto daqui estão abrindo um buraco para o metrô passar. Para todas aquelas pessoas tristes aborrecidas chatas pentelhas descaradas caras-de-pau que estão sempre comendo alguma coisa, fodendo no horário de almoço e escondendo do marido que está fodendo com outro. Nunca escondi de ninguém que gosto de devassidão. Tudo para não ter um marido. Ninguém na cola. Às vezes eu penso que daria uma boa prostituta, porque gosto da coisa. Adoro foder. Gosto de me foder sozinha também. O acompanhante nem sempre me dá o mesmo prazer que meu vibrador dá. Às vezes fico pensando nas pessoas realmente solitárias. Naquelas que não têm ninguém. Não sei se são piores ou melhores. Acho que aprenderam a conviver tanto consigo mesmas, que não agüentariam olhar para uma latrina e ver ali a merda ou o restinho de merda que o parceiro deixou, depois de dar uma cagada. Para se viver em grupo tem que se acostumar com a merda alheia, fazer um bolo de merda, se for possível, e recomê-la e regurgitá-la. O que eu mais gosto na solidão do meu quarto é que só tenho seres inanimados por perto. Nada de gente. Gente dá trabalho. Gente é chata pra cacete. Posso gostar de uma piroca, mas sei viver bem sem uma. Sei que estou ficando velha. Logo logo completo cinqüenta anos, aí os parentes vão morrendo e se a gente tiver azar a gente vai ficando, hipoglós fralda geriátrica internação e soro. Como enfrentar isso sozinha? Por isso, talvez, tenha que encontrar logo uma pica que me dê um lugar melhor na minha velhice. Mas as picas morrem primeiro que as buças. Por isso sou só e sou feliz e gosto de fazer bolo de chocolate todo dia ímpar. Dia desses um cara bateu na porta com flores para mim. Ué. Não saio com ninguém faz anos e não tenho um amor, nem tenho sequer uma pica fixa. Mandei devolver as flores ao florista. Disse que veio errado. Não olhei o cartão. Não quis saber. Se não fosse ninguém interessante, ia ficar decepcionada triste solitária angustiada e ia me arruinar cada vez mais e mais e para sempre, até o fim daquele minuto em que vi o Dumbo. Era um amigo de infância. Não precisa explicar o apelido. Ele havia voltado da guerra. Fazia dez anos que eu não o via e ele veio para o meu lado me querendo e perguntando se havia recebido as flores que ele havia mandado no dia seguinte à sua chegada. Perguntei como foi a guerra, se matou muita gente, como eram os corpos dos mutilados e ele chorou e chorou. Eu fiquei com pena dele e dei pra ele minha superficialidade que era o meu sexo. Coitado, o cara estava tão travado que demorou um tempo para dar no coro. Ele me comeu e eu resolvi, por aquele segundinho, o problema dele. Criei um grilo dentro de mim. O grilo foi crescendo e crescendo e estava de um tamanho insuportável no meu peito que tive que dizer. Não tenho lugar para ninguém na minha vida. Ele chorou e chorou lágrimas de sangue. Dei mais uma vez para ele. Resolvi o seu problema imediato. Criei um problema para mim. Todo o dia ele vem chorar no meu colo. Agora sim, minha solidão está completa.
três mulheres sós a mulher só - I Chegou em casa,
Deitada no banco frio
Antes de fechar os olhos,
passional Outro dia fiz sinal para o primeiro táxi que passou, fui entrando e dizendo ao motorista siga aquela nuca. Aquela que vai naquele ônibus. A sua nuca. Enfiada numa gola de malha branca, a sua cor. Foi um custo chegar perto, por causa do trânsito embaralhado, e foi só chegar e ver que faltava a marca, a pinta que eu gostava de beijar e passar a língua e que era a número vinte e nove se somada com as que eu sempre contava nas suas costas, de baixo pra cima. Aí eu danei a chorar feito doida, pensando se tem outra contando as suas pintas, do jeito que eu fazia, arrastando o dedo bem de levinho nelas e o motorista achou que eu estava passando mal, se ofereceu pra ajudar, eu disse a ele pra continuar rodando atrás do ônibus pela cidade. Que eu estava era com dor na vesícula, eu que nem sei onde isso fica no corpo da gente, torcendo pra ele não entender de vesícula, não receitar remédio, nem chá, nem simpatia. Inda expliquei que minha vesícula tem dessas coisas, mas que melhora rapidinho quando eu passeio de carro chorando calada. Então ele sossegou, me dizendo pra chorar à vontade, até desligou o rádio, e era só o que eu queria. Chorar aquela raiva do atrevimento da outra alisando suas costas com a vontade que era minha, pensando que era um desaforo você deixar ela fazer isso com você. Como se tivesse me esquecido da maneira definitiva que você prometeu que ia esquecer, quando a gente brigou por aquela bobagem que você disse que era pura bobagem, que eu entendia as coisas com muita paixão, que não era bem assim nem assado, que eu devia pedir desculpa, e eu não quis pedir, bati o pé e você chutou a porta na hora de sair com a mala. E fui chorando mais, com mais raiva ainda, vendo a assanhada alisando as suas costas, e você repetindo pra ela, com aquela sua voz rouca, agora arranha, do modo como falava comigo, assim você me deixa doido, porque homem é tudo igual. Só de pensar como é que você teve coragem de me esquecer dessa maneira tão definitiva, você que dizia que eu era seu doce de leite, sua flor, seu pão de queijo, seu pedaço de mau caminho, seu manjericão. E fui vendo o seu olhar pra ela, aquele que você olhava pra mim respirando diferente, resfolegado, que eu sabia bem o que vinha depois, e pensando que era muito pouca vergonha sua, já resolvida a não querer homem nenhum mais na minha vida, nem pintado, mas o motorista avisou que o ônibus estava parado no ponto final. Então eu me lembrei de que você não anda de ônibus, você não mora mais aqui, a gente nem acontece mais e estava passando da hora de voltar, de novo, pra nossa casa vazia daquela maneira. Toda definitiva.
uma só palavra
Vazio:
que não contém nada ou só contém ar. Era
assim que eu me sentia. As
pessoas nunca compreenderam o porquê do meu
suicídio. Aos
cinco anos comecei a sentir este vazio. Brincava perto de casa, numa de
suas ruas mais quietas. Avoada e sem rumo, alguém me chamou a
atenção. Um
motorista ao volante de um táxi estacionado. Pediu que me aproximasse e
perguntou se eu conhecia tal rua. Fez o gesto de que ía tirar um papel do
bolso. Fiquei pensando, conhecia o nome de quase todas as ruas da
redondeza. Eram nomes de flores: rua das Rosas, rua das Violetas, rua das
Margaridas, rua das Orquídeas, eu tentava enumerar mentalmente todas
elas. Quando
olhei melhor, vi que o desgraçado estava de braguilha aberta, agitando seu
pau. Eu quis gritar, mas o grito não veio. Então saí correndo, apenas
isso, e guardei essa lembrança pra sempre. Como se nada tivesse
ocorrido. Aos
seis anos tive que ficar na casa de uma conhecida de meus pais, não lembro
por quê, só lembro que chorei muito. Tive a sensação de estar só, perdida,
desconectada do mundo. Cheguei à conclusão de que os seres humanos são
maus, pois sentem prazer com o sofrimento dos outros. Essa mulher,
irritada comigo, por um instante fez com que eu acreditasse que meus pais
haviam me abandonado. Até que finalmente vi meus pais
retornando. Aos
sete anos percebi que as crianças também são más. Eu era muito tímida, na
escola quase não falava, por isso sofri muitas decepções e humilhações.
Todos gozavam de mim. Nessa
época descobri também que a beleza e o dinheiro não faziam parte de minha
vida. A beleza e o dinheiro. Para a maioria das pessoas ambos são
imprescindíveis. Após
tantas descobertas fechei o coração e cresci assim. Amargurada. Nunca
consegui acreditar em alguém. Nunca consegui acreditar nem mesmo em
mim. Aos
quinze anos pensei ter encontrado alguém em quem pudesse confiar, me
sentia bem na sua companhia, ao seu lado podia ser eu mesma. Até que um
dia percebi que a amava. Era
a minha melhor amiga, mesmo assim ela não entendeu nada, logo começou a me
chamar de lésbica e espalhou isso para o colégio inteiro. Mais uma vez
senti um enorme vazio, uma angústia fria, fui expulsa do
colégio. Nunca
quiseram ouvir a minha versão dos fatos, eu a amava sim, queria apenas um
pouco de carinho, um pouco de calor e compreensão, por que não? Eu queria
andar de mãos dadas, trocar segredos. Talvez porque eu nunca tenha tido
uma irmã. Meus
pais, sempre preocupados com o que os outros iam dizer, acabaram me
levando para outro colégio. Um convento. Meus pais eram muito religiosos e
diziam que só Deus poderia endireitar a minha vida. Só
Deus mesmo, que tudo vê e tudo ouve, poderia ver e ouvir o que acontecia
nas salas, nos quartos e nos corredores desse convento. Apelidei-o de
Falsarium. Eu
era a noviça mais nova e a mais cobiçada. Todas, tão atenciosas, me
chamavam carinhosamente de Anjo Loiro. Passaram-se meses desde a minha
chegada e tudo corria muito bem. Eu podia estudar, ler e fazer o que mais
quisesse. Eu até estava me tornando uma religiosa de verdade. Senti a
minha verdadeira vocação. Aprendi a rezar e a conversar com o
Todo-Poderoso. Escrevia
cartas aos meus pais, dizendo que estava adorando o convento e queria
realmente seguir esse chamado tão irresistível. Comecei a acreditar em
algo, a confiar nas minhas irmãs e a achar que o vazio que eu sentia podia
ser preenchido com o amor divino. Numa
manhã de sábado uma das freiras me chamou aos seus aposentos, onde já
estavam, além de mim, a madre superiora e mais duas noviças. Pensei que
iríamos estudar as Escrituras ou rezar em intenção de uma das madres, que
estava enferma. Fiquei
perplexa. Todas começaram a tirar o hábito e a ficar nuas. Perguntei
ingenuamente o que estava acontecendo. Uma delas sorriu e piscou pra mim,
dizendo: -
Tire o seu hábito, querida. Nós já sabemos de tudo, já sabemos de sua
amiguinha do colégio. Achamos que você gostaria de matar a
saudade. Corri
para a porta, mas a madre, do outro lado do quarto, acenava com a chave no
meio das pernas: -
Vem cá, meu Anjo Loiro. Vem pegar a chave com sua boquinha
angelical. As
outras riram. Fui
agarrada e deitada à força na cama. Depois
que todas se saciaram, saíram do quarto. Antes de fechar a porta, uma
delas ainda me chamou de tesão loiro. Ninguém percebeu que eu estava
totalmente gelada, que lágrimas secas tornavam pegajoso o canto dos meu
olhos. Voltei
ao meu quarto. Desse
dia em diante não consegui dizer uma só palavra. Tive febre alta por
muitos dias. Algo no meu organismo parou de
funcionar. Nunca
mais ninguém me tocou. Nenhum comentário foi feito. Deixavam-me trancada
em meu quarto. Nem a visita de meus pais eu podia receber, e todas as
cartas que escrevia eram lidas de antemão. Passaram-se
dois anos. Mudez total. Eu
ainda não conseguia dizer uma palavra. Certa
de que nunca abriria a minha boca, as freiras afrouxaram o laço. Tive o
consentimento de sair do meu quarto e, uma vez ou outra, rever os meus
pais. Dezoito
anos. Eu tinha acabado de completar. Para
comemorar meu aniversário, tomei vidros e vidros de comprimidos que eu
havia pego no ambulatório. Estava
ainda lúcida quando consegui escrever na parede do meu quarto a palavra
que sempre fez parte da minha vida. Essa palavra que nunca me pediu
permissão, apenas se instalou e ficou. Vazio. Trinta
anos. Como
podem ver, eu menti. Suicídio? Não. A quantidade de comprimidos não foi
suficiente. Fui
condenada pelo assassinato da madre superiora, da freira e das duas
noviças. Os corpos ainda não foram encontrados. Jamais serão. Fazem parte
do meu metabolismo: como os meus pais, são carne da minha
carne. Nesta
cela, neste presídio, faço a minha justiça, a minha refeição sagrada. O
vazio é diariamente preenchido não mais com a minha dor, mas com a carne
alheia que hoje me acompanha. Isso
me anima, é minha vocação. Há tantas coisas por
fazer. Certo taxista que ainda preciso localizar.
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