edição 40 | maio de
2010
floral
um
antúrio muito rijo pedindo abrigo
em um vaso úmido: tempo
de poda.
para ademir
assunção
2 minicontos,
1 poema
para
ana Escrevo
agora para esta que se revela aos poucos e de quem nunca falei. Uma que
cresceu dentro de mim e que, por vezes, me obcecou. Aquela rolando nas
dunas ali embaixo, falando alto e gesticulando frenética. A outra que
tropeçou na pedra e feriu os joelhos. Soprei neles, vai passar. Queria
nunca houvesse o telefonema. Talvez grades nas janelas ou Francisco lendo
um romance, fumando um cigarro, escrevendo uma ode. Ela que se esquivou
sempre e nas noites de insônia sonhava sonhos de morte. Agora a carta que
jamais escrevi que não tem endereço, pois só sobraram ossos e um beijo
impossível. Desenho um coração na poeira de sua lápide e choro minha
querida. Choro muito porque sinto dor. michêmeretriz No
sinal Ele pegou Ela
mordeu com força Ele
cuspiu, falou à beça Ela
bateu no vidro Ele
torceu o braço, Ela
quebrou a unha, Ele
abriu a porta, jogou pra fora, Ela
chorou e Ele
caiu bêbado na Via Expressa. No
sinal Ela pegou Ele
bateu no vidro Ela
falou, cuspiu à beça Ele
torceu com força Ela
quebrou a cara Ele
abriu a porta, jogou pra fora Ela
rolou no beco Ele
mordeu e Ela
caiu bêbada na Via Expressa Ela: Cinderela
da calçada. Ele: Poeta
da sarjeta. ElaNeleEleNela. Semolhosempernasemletra No
guardanapo do Malleta canteiro
de rosas Ele
tem o controle. No
alpendre, Vera chora ao vê-lo cimentar o canteiro de rosas: é o cheiro da
infância que enterra. (Dizia-lhe
que não havia lugar para guardar as coisas; desejava abrir um negócio no
galpão; os meninos já criados, era justo que descansasse um pouco; ficar
mais tempo em casa cuidando do viveiro, dela que envelhecia e sentia
dores; comprar linhas para que bordasse com capricho os olhos das
bonecas). Ele
tem a
pá. Vera
sente que, assim como a música de Mozart, a morte faz
parte. No alpendre, seus olhos são a memória das rosas.
do you believe in love?... 1.
pula
do alto do morro amarrado
ao grito de socorro um
brinde e deixa a vida guaraná
com formicida abre
o gás do aquecedor e
dorme a dor dois
cortes nos pulsos dão
ao sangue um novo curso enquanto
tudo se arvora em plena festa a
vida se esvai por uma fresta 2. joana
rasga as fotos do
amor já torto e roto waldemar
toca a beber pra
matar a embriaguez martins
arranha os discos e
por fim o prego no ouvido inês
dá três tiros na aorta três
seu número da sorte as
pazes se desfazem a
cara cospe a metade resta
sem ganir o cão que
ainda fareja as mãos onde
já não há pessoa só o cachorro perdoa
estas areias pesadas são
linguagem O
último presente que você me deu foi um livro da Ana Cristina César.
Comprou dois. Um pra mim e um pra ter. E fizemos como sempre fazíamos.
Abrimos lá o livro num café e lemos um poema. Agora eu fico lembrando tudo
isso e me sentindo meio estúpida. De não ter percebido que eram sempre a
primeira e última vez aqueles momentos todos. Fico me sentindo insensível
por ter me distraído por uns instantes. Achando que tudo estava ainda por
acontecer. E que nossa vida — a grande vida — estava só por começar. Vou à
estante. Pego o livro. Não sei mais qual foi o poema. Perdi-o. Perdi a
entonação, talvez apressada (tentando acertar), que usei para ler o poema.
Enquanto você fumava um Marlboro vermelho. Orquestrando com o olhar firme
as palavras que se diluíam na fumaça do seu sopro. Tentando sacar, talvez,
por que essa moça Ana Cristina César foi essa poeta Ana Cristina César. O
cheiro do café sempre dizia Manuel Bandeira. Àquele momento, nós ali,
lendo "antigos e soltos". Lembrar é mais triste que escrever um poema que
será
esquecido. 1 poema, 2 contos
arquivo
morto "organizei
a memória em alfabetos" como
Ana Cristina César me ensinou: na
letra A arquivei os afetos os
desafetos na letra D mas
não consigo me lembrar em
que letra arquivei você baguncei
essa porra toda só
porque queria me lembrar do seu nome como
se um homem valesse tamanho trabalho ah!
agora me lembrei você
está em C de Caralho. strip-tease bebo.
bebo muito. no primeiro copo a consciência pesa porque me lembro do ano
que penei pra perder os trinta quilos que ganhei quando estava amancebada
com um corno de Curitiba que — não contente em meter no meu cu e depois me
mandar chupar a pica suja de merda — resolveu bancar exclusividade. isso
foi quando eu ainda morava em Jacarezinho e é história pra contar aqui em
outra ocasião, mas que pode ser lida no meu livro As mãos me falam, os falos me
calam, que será lançado na China nos próximos meses.
no
primeiro copo eu me lembro que 300 ml de cerveja têm 126 calorias,
equivalentes a quase uma hora de bicicleta. no segundo copo eu
contemporizo. penso que posso ficar sem uma refeição e prometo a mim mesma
que não irei além do terceiro copo. no terceiro copo eu peço o cardápio de
tira-gosto. mesmo sabendo que pedirei o de sempre:
lingüiça-com-batatas-fritas. pausa
pra dizer que a porra do corretor ortográfico — utilíssimo, porque sou
ortograficamente lastimável — insiste em colocar trema em linguiça, que,
além de trema, perdeu o sabor que tinha na infância. não. não sou
saudosista. convenhamos que não se pode mais obter linguiça gostosa usando
carne desses porcos criados em cativeiros mais higiênicos que salas de
cirurgias. porcos e putaria, meus amores, decisivamente não combinam com
limpeza. dez.
apenas dez pauzinhos de batatinhas fritas têm 274 calorias. não precisa
conferir, confie em mim, eu sei de cor e salteado o valor calórico de
todas as merdas de que eu gosto. é impossível, pelo menos para mim, comer
menos que 30 batatinhas. não vou me dar ao trabalho de fazer contas. se
você fizer não esqueça de acrescentar 190 calorias para cada 60 gramas de
linguiça sem trema. no
quarto copo, meus amores, eu já não estou nem aí nem chegando pra
calorias, gorduras, regimes, estética, saúde, porra nenhuma. e como não
sei beber sem beliscar, peço uma generosa porção de camarão ao alho e
óleo, ou um prato de torresmo pra me lembrar de certos dias que passei no
Mercado Central de Belo Horizonte, a barriga encostada no balcão do
boteco, entronando cerveja, torresmo, fígado com jiló... e lembrando,
obviamente, de uns caras, que eu nem via a cara, fazendo terra na minha
bunda. volumosa e voluptuosa bunda que ocupava quase a metade do espaço
que há entre o balcão do boteco, até o balcão do boteco do outro lado do
corredor. tenho certeza que o cara que projetou aqueles bares gostava de
uma boa sacanagem. no
quinto copo eu tiro a blusa, pretextando calor. no sexto subo na mesa,
peço pra aumentar a música e começo o strip-tease. bebo.
bebo muito. um
fogo que arde sem se ver o
homem mais sacana que eu conheci era jardineiro. já
morreu, o coitado... será
que coitado vem de coito? sendo assim não faz sentido.
o
dicionário etimológico que me custou muitos coitos, uns prazerosos, outros
não — mas nenhum que eu possa incluir entre as tragédias que me fariam uma
coitada —, diz que coitado "deriva do latim vulgar, coctãre, de cõctus, por coactus..." verbete que a mim não esclarece
porra alguma. morreu
na prisão. foi
morto pelos colegas de cela que, antes de chucharem-no, fizeram ele de
mulherzinha porque souberam que estava pagando pena por estupro de
menor. fazia
canteiros lindíssimos.
chamava-se
Severino. era
cearense, ou paraibano, pernambucano, baiano, alagoano...
de
fato não sei, mas com esse nome, aquela cabeça achatada, a pele amarela
acinzentada, é batata, nordestino da gema. Severino
era jardineiro e poeta. dei
pra ele em uma clareira gramada que ele deixou no centro de um enorme
canteiro de hibisco. me penetrou delicadamente sussurrando sonetos de
Camões ao meu ouvido, virgem de poesia e fantasias. eu acho que tinha doze
ou treze anos. foi a primeira vez que ouvi que o "amor é um fogo que arde
sem se ver, é ferida que dói e não se sente, é um contentamento
descontente, é dor que desatina sem doer". doer,
doeu, porque ele tinha um pau enorme, mas o meu contentamento superava
qualquer dor. Fizemo-nos
noivos. Ele
me disse que casaríamos quando eu fosse de maior e não precisasse de
autorização paterna. disse que ficaria rico e me levaria para conhecer os
mais belos jardins do mundo: os jardins de tulipas da Holanda, os jardins
do Palácio de Versailles... só faltou incluir os jardins suspensos da
Babilônia. mas, até lá, ele pediu que eu não contasse a ninguém, nem mesmo
à minha melhor amiga, que, depois eu descobri, ele também
comia. mas
eu não estou me queixando. Severino
era um poeta. talvez jamais tenha escrito algo. analfabeto talvez não
fosse, apesar de que há talvez milhares de nordestinos analfabetos que
recitam poemas e até os compõem. mas só posso classificar entre os poetas
um homem que enquanto enfia diz as coisas mais lindas que se pode
ouvir. sempre que posso eu vou ao cemitério e levo um hibisco para enfeitar a sepultura do meu primeiro noivo.
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