edição 40 | maio de 2010
temas:  um verso de Ana Cristina César | mesa de bar | jardineiro, flores, jardim

 

floral
adelaide do julinho

um antúrio muito rijo pedindo

abrigo em um vaso úmido:

tempo de poda.

 

                   para ademir assunção

 

 

2 minicontos, 1 poema
adriana versiani

 

para ana

 

Escrevo agora para esta que se revela aos poucos e de quem nunca falei. Uma que cresceu dentro de mim e que, por vezes, me obcecou. Aquela rolando nas dunas ali embaixo, falando alto e gesticulando frenética. A outra que tropeçou na pedra e feriu os joelhos. Soprei neles, vai passar. Queria nunca houvesse o telefonema. Talvez grades nas janelas ou Francisco lendo um romance, fumando um cigarro, escrevendo uma ode. Ela que se esquivou sempre e nas noites de insônia sonhava sonhos de morte. Agora a carta que jamais escrevi que não tem endereço, pois só sobraram ossos e um beijo impossível. Desenho um coração na poeira de sua lápide e choro minha querida. Choro muito porque sinto dor.

 

 

 

 

michêmeretriz

 

No sinal Ele pegou

Ela mordeu com força

Ele cuspiu, falou à beça

Ela bateu no vidro

Ele torceu o braço,

Ela quebrou a unha,

Ele abriu a porta, jogou pra fora,

Ela chorou

e

Ele caiu bêbado na Via Expressa.

 

No sinal Ela pegou

Ele bateu no vidro

Ela falou, cuspiu à beça

Ele torceu com força

Ela quebrou a cara

Ele abriu a porta, jogou pra fora

Ela rolou no beco

Ele mordeu

e

Ela caiu bêbada na Via Expressa

 

Ela:

Cinderela da calçada.

Ele:

Poeta da sarjeta.

 

ElaNeleEleNela.

Semolhosempernasemletra

No guardanapo do Malleta

 

 

 

 

canteiro de rosas

 

Ele tem o controle.

No alpendre, Vera chora ao vê-lo cimentar o canteiro de rosas: é o cheiro da infância que enterra.

(Dizia-lhe que não havia lugar para guardar as coisas; desejava abrir um negócio no galpão; os meninos já criados, era justo que descansasse um pouco; ficar mais tempo em casa cuidando do viveiro, dela que envelhecia e sentia dores; comprar linhas para que bordasse com capricho os olhos das bonecas).

Ele tem  a pá.

Vera sente que, assim como a música de Mozart, a morte faz parte.

No alpendre, seus olhos são a memória das rosas.

 

 


©audrey

 

do you believe in love?...
alice barreira

1.      

pula do alto do morro

amarrado ao grito de socorro

 

um brinde e deixa a vida

guaraná com formicida

 

abre o gás do aquecedor

e dorme a dor

 

dois cortes nos pulsos

dão ao sangue um novo curso

 

enquanto tudo se arvora em plena festa

a vida se esvai por uma fresta

 

 

 

 

2.

joana rasga as fotos

do amor já torto e roto

 

waldemar toca a beber

pra matar a embriaguez

 

martins arranha os discos

e por fim o prego no ouvido

 

inês dá três tiros na aorta

três seu número da sorte

 

as pazes se desfazem

a cara cospe a metade

 

resta sem ganir o cão

que ainda fareja as mãos

 

onde já não há pessoa

só o cachorro perdoa

 

 

 

estas areias pesadas são linguagem
assionara souza

 

O último presente que você me deu foi um livro da Ana Cristina César. Comprou dois. Um pra mim e um pra ter. E fizemos como sempre fazíamos. Abrimos lá o livro num café e lemos um poema. Agora eu fico lembrando tudo isso e me sentindo meio estúpida. De não ter percebido que eram sempre a primeira e última vez aqueles momentos todos. Fico me sentindo insensível por ter me distraído por uns instantes. Achando que tudo estava ainda por acontecer. E que nossa vida — a grande vida — estava só por começar. Vou à estante. Pego o livro. Não sei mais qual foi o poema. Perdi-o. Perdi a entonação, talvez apressada (tentando acertar), que usei para ler o poema. Enquanto você fumava um Marlboro vermelho. Orquestrando com o olhar firme as palavras que se diluíam na fumaça do seu sopro. Tentando sacar, talvez, por que essa moça Ana Cristina César foi essa poeta Ana Cristina César. O cheiro do café sempre dizia Manuel Bandeira. Àquele momento, nós ali, lendo "antigos e soltos". Lembrar é mais triste que escrever um poema que será esquecido.

 

1 poema, 2 contos
carla luma

 

arquivo morto

 

"organizei a memória em alfabetos"

como Ana Cristina César me ensinou:

 

na letra A arquivei os afetos

os desafetos na letra D

mas não consigo me lembrar

em que letra arquivei você

 

baguncei essa porra toda

só porque queria me lembrar do seu nome

como se um homem valesse tamanho trabalho

 

ah! agora me lembrei

você está em C de Caralho.

 

 

 

 

strip-tease

 

bebo. bebo muito. no primeiro copo a consciência pesa porque me lembro do ano que penei pra perder os trinta quilos que ganhei quando estava amancebada com um corno de Curitiba que — não contente em meter no meu cu e depois me mandar chupar a pica suja de merda — resolveu bancar exclusividade. isso foi quando eu ainda morava em Jacarezinho e é história pra contar aqui em outra ocasião, mas que pode ser lida no meu livro As mãos me falam, os falos me calam, que será lançado na China nos próximos meses.

 

no primeiro copo eu me lembro que 300 ml de cerveja têm 126 calorias, equivalentes a quase uma hora de bicicleta. no segundo copo eu contemporizo. penso que posso ficar sem uma refeição e prometo a mim mesma que não irei além do terceiro copo. no terceiro copo eu peço o cardápio de tira-gosto. mesmo sabendo que pedirei o de sempre: lingüiça-com-batatas-fritas.

 

pausa pra dizer que a porra do corretor ortográfico — utilíssimo, porque sou ortograficamente lastimável — insiste em colocar trema em linguiça, que, além de trema, perdeu o sabor que tinha na infância. não. não sou saudosista. convenhamos que não se pode mais obter linguiça gostosa usando carne desses porcos criados em cativeiros mais higiênicos que salas de cirurgias. porcos e putaria, meus amores, decisivamente não combinam com limpeza.

 

dez. apenas dez pauzinhos de batatinhas fritas têm 274 calorias. não precisa conferir, confie em mim, eu sei de cor e salteado o valor calórico de todas as merdas de que eu gosto. é impossível, pelo menos para mim, comer menos que 30 batatinhas. não vou me dar ao trabalho de fazer contas. se você fizer não esqueça de acrescentar 190 calorias para cada 60 gramas de linguiça sem trema.

 

no quarto copo, meus amores, eu já não estou nem aí nem chegando pra calorias, gorduras, regimes, estética, saúde, porra nenhuma. e como não sei beber sem beliscar, peço uma generosa porção de camarão ao alho e óleo, ou um prato de torresmo pra me lembrar de certos dias que passei no Mercado Central de Belo Horizonte, a barriga encostada no balcão do boteco, entronando cerveja, torresmo, fígado com jiló... e lembrando, obviamente, de uns caras, que eu nem via a cara, fazendo terra na minha bunda. volumosa e voluptuosa bunda que ocupava quase a metade do espaço que há entre o balcão do boteco, até o balcão do boteco do outro lado do corredor. tenho certeza que o cara que projetou aqueles bares gostava de uma boa sacanagem.

 

no quinto copo eu tiro a blusa, pretextando calor. no sexto subo na mesa, peço pra aumentar a música e começo o strip-tease.

 

bebo. bebo muito.

 

 

 

 

um fogo que arde sem se ver

 

o homem mais sacana que eu conheci era jardineiro.

já morreu, o coitado...

será que coitado vem de coito? sendo assim não faz sentido.

o dicionário etimológico que me custou muitos coitos, uns prazerosos, outros não — mas nenhum que eu possa incluir entre as tragédias que me fariam uma coitada —, diz que coitado "deriva do latim vulgar, coctãre, de cõctus, por coactus..."  verbete que a mim não esclarece porra alguma.

morreu na prisão.

foi morto pelos colegas de cela que, antes de chucharem-no, fizeram ele de mulherzinha porque souberam que estava pagando pena por estupro de menor.

fazia canteiros lindíssimos. 

chamava-se Severino.

era cearense, ou paraibano, pernambucano, baiano, alagoano...

de fato não sei, mas com esse nome, aquela cabeça achatada, a pele amarela acinzentada, é batata, nordestino da gema.

Severino era jardineiro e poeta.

dei pra ele em uma clareira gramada que ele deixou no centro de um enorme canteiro de hibisco. me penetrou delicadamente sussurrando sonetos de Camões ao meu ouvido, virgem de poesia e fantasias. eu acho que tinha doze ou treze anos. foi a primeira vez que ouvi que o "amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente, é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer".

doer, doeu, porque ele tinha um pau enorme, mas o meu contentamento superava qualquer dor.

Fizemo-nos noivos.

Ele me disse que casaríamos quando eu fosse de maior e não precisasse de autorização paterna. disse que ficaria rico e me levaria para conhecer os mais belos jardins do mundo: os jardins de tulipas da Holanda, os jardins do Palácio de Versailles... só faltou incluir os jardins suspensos da Babilônia. mas, até lá, ele pediu que eu não contasse a ninguém, nem mesmo à minha melhor amiga, que, depois eu descobri, ele também comia.

mas eu não estou me queixando.

Severino era um poeta. talvez jamais tenha escrito algo. analfabeto talvez não fosse, apesar de que há talvez milhares de nordestinos analfabetos que recitam poemas e até os compõem. mas só posso classificar entre os poetas um homem que enquanto enfia diz as coisas mais lindas que se pode ouvir.

sempre que posso eu vou ao cemitério e levo um hibisco para enfeitar a sepultura do meu primeiro noivo.

 

 

 

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