edição 42 | setembro de 2010
temas:  masturbação | proposta | phoenix

  


©juh moraes

 

8 poemas

líria porto

 

 

moita

queres mesmo vir — pois chega inteiro
não tragas do teu mundo tantos vínculos
nem me trates por judith ou por marília

há coisas que emputecem as mulheres
causam-lhes queimaduras e feridas
são piores bem piores

                       que águas-vivas

 

 

 

 

elegância


pois saibas
eu não ligo a mínima
vai ver tenho até homônima
pareço sou igual a fênix
revivo recupero o ânimo
e encaro como corriqueiras
quaisquer traições

depois resolvo as pendências
(na ponta do punhal)

 

 

 

 

tatame

 

quem pode phode

quem não phode

bate com a mão

 

 

 

 

abducción con cumplicidad


eu trago a palavra
na ponta da língua
lambida sugada
molhada em saliva

se queres sabê-la
beija-me a boca
depois cala o bico
pois isso é segredo
é pacto é acordo
selado com lacre
entre bruxa e corvo

(abracadabra)

 

 

 

 

phoenix

 

ressurgir das cinzas como labareda

e com a brasa acesa

                       pôr fogo n'aranha

 

 

 

 

pro_posição

 

eu te proponho

um naco de realidade

e um sonho

:

és do ramo — abre tua flor

quebra meu galho

 

eu me arrasto

tu te arrastas

nós nus

 

(um sobre o outro)

 

 

 

 

bigorna

 

um estado permanente de bater
de apanhar — de malhar em ferro frio
polir ferra_dura forjar verdades
em mentiras

 

 

 

 

coberta de cisma

 

pilha de nervos

ameaça os outros

e a si mesma


qualquer vento acende a chispa
(muita alma nessa hora)

 

 

 

 

 

 

carménère

lucélia majistral

 

 

Ele fica me olhando com cara de bobo. Eu tento esquecer que ele está ali. Faço de conta que estou sozinha com a câmera, a luz vermelha piscando e piscando e piscando quase no mesmo ritmo com que eu me toco. Tinha visto um filme no qual um cineasta testa várias atrizes para um filme que pretende rodar. Elas se masturbam na frente dele, às vezes transam com outras atrizes ou candidatas a. Antes e depois, falam e falam e falam. Ele não é um cineasta, não é nada, um nada com cara de bobo e uma ereção esperando que eu o chame. Eu me masturbo e vou até o fim e o proíbo de dizer ou fazer o que quer que seja enquanto eu me masturbo e vou até o fim. A cama é enorme e o lençol branco cobre apenas os meus pés. Depois, tomo uma ducha enquanto ele me espera na sala. Assistimos à gravação. Ele está muito excitado. Estamos sentados no sofá de três lugares, cada qual em um extremo. Bebemos vinho. Eu digo a ele agora, sim. Mas não olhe para mim. Ele abre a braguilha e coloca para fora e se masturba com os olhos fixos na televisão. Trago uma toalha de rosto para que ele possa se limpar. Manchou as calças e a camisa. Eu limpo o sofá com a mesma toalha que ele usou. Terminamos de beber o vinho à mesa da cozinha. A mesma cara de bobo. Eu digo você não tem que dizer nada. Ele obedece. Eu digo essa uva veio da França, acho que de Médoc, na região de Bordeaux. As videiras foram trucidadas por uma praga e eles acharam melhor substituir por outras castas de uvas mais resistentes. Não sei quando foi isso. Hoje em dia, a Carménère só existe no Chile. Eu acho. Não tenho certeza. Ele não parece estar me ouvindo. Ficamos calados por um tempo. Talvez não goste de vinho. Talvez prefira cerveja.

 

 

 

 

paisagem na janela

márcia maia

 

Tenha paciência comigo, ele disse, pouco antes de adormecer no sofá, embriagado demais para o amor. E ela, que o amava mas não tinha o menor saco pra conversa de bêbado, tirou a roupa e estirou-se nua no ladrilho da varanda. Chovia fino. Uma nuvem escondera a lua. Deixou que a mão descesse até a vulva, abrindo os lábios e tocando o grelo leve e ritmadamente. Masturbou-se longamente, mudando o ritmo, prolongando o prazer, adiando o gozo. E adormeceu sem perceber os dois adolescentes quase imberbes, que na janela do vizinho, a observavam masturbando-se e gozando, repetidamente, com furor.

 

  


©juh moraes

 

 

avis rara

mariza lourenço

 

Daí que resolveu nascer de novo: novo nome, novos peitos, nova cor de cabelo, loiro total.

 

As cantadas pipocavam aeroporto afora, estava orgulhosíssima do silicone recém-implantado.

 

— Minha senhora, lamento a inconveniência, mas serei obrigado a pedir que me acompanhe.

 

— Por que, meu bem? — perguntou, irritada.

 

— É que seu documento de identidade...

 

— O que tem minha identidade? — engrossou a voz.

 

— Aqui diz...

 

— E daí, fofo? Pequeno acidente de registro.

 

A essa altura já havia se formado uma pequena roda em torno da moça.

 

— Ih! Repararam no nome da perua? — disseram.

 

— Algum problema, ô palhaço?

 

O pau quebrou.

 

No dia seguinte, em Buenos Aires, uma loira exuberante e de olho roxo chorava desconsolada com a cabeça encostada nos ombros de um novo amigo:

 

— Ah, mi cariño, mulher no Brasil não é respeitada.

 

— Pobrecita...

 

O belo rapaz aproveitou a deixa e escorregou a mão coxa adentro da moça desconsolada.

 

O pau quebrou.

 

 

 

 

1 poema, 1 conto
nina rizzi

 

um gato pra apollinaire

 

caminha por entre os livros, agarrada aos gatos,

a mulher cheia de razão.

 

quando acorda não me faz café:

esgueira até o banheiro seus dedos de arranhar azulejos;

se ama, se beija, se cospe, se come.

 

antes e depois de mim

 

— não está disposta a nos desperdiçar.

 

 

 

 

em lugar de cantata

 

saí daquele poema há pouco. venho pra fazermos amor. eu pensava no banheiro, que uso vestido de cores quentes e largo até os joelhos, desses fáceis de levantar. eu tirava a calcinha e me colocava no lavatório, mexia, mexia, mexia, sentindo a rigidez macia da louça a me friccionar como fosse seus dedos, sua boca ou mesmo a louça, mas você à minha frente me olhando e devorando desse jeito de me olhar.

 

mas não. o sujeito da bodega aparece pra entregar a água e depois fumo um baseado, pra te esfregar melhor, te comer melhor e amar. aqui na palavra. a palavra nosso lugar. esse ler que é nos olhar, materializar desse modo barroco. de eu te escrever, mas te falar, de te falar, mas te olhar, de te olhar, mas venerar.

 

essa coisa é melosa porque eu tô melada. de ontem à noite, quando sentada no banco, lá na sacada, o vento forte a bater em meu rosto como suas mãos, e meus quadris dançando a nossa modinha pros lados, subindo e descendo no meu vagar de fada, essa fada essa fada...

 

eu gostava de poder viver todo meu dionismo. não, não promessas inúteis, mas que fosse como flor. eu tomo um vinho horroroso com nome de santo e ouço mentalmente as estrelinhas do mar, as canções de amor desesperado e sinto uma leve dor na testa. se fossem chifres, que me importava? na minha história são símbolos de fertilidade e abundância. e eu quero mais é me abundar em você. me dá um filho? pergunta retórica.

 

assisti de novo às bicicletas de belleville e fiquei a pensar que queria ter uma bicicleta mágica que me levasse até aí onde nem sei que é. essas coisas piegas que penso quando fico tão melancólica que me encho de cio. aí meto um vestido bem curto e decotado e colado como você devia estar, que é pra ficar corada ao sentir os olhos que pousam sobre minha carne como se fosse a sua. imagina, que dançante, eu assim e ninguém nem toca.

 

é, eu oscilei de novo, foi por volta da zero hora, quando aquela menina que há em mim perguntava por que ando tão esquiva e quieta e sonhando ainda mais as nuvens, por que não pode ser possível tal redundância. mas é, né. eu me venho com esses trechos inteiros e decorados de poemas e mínimas frases que nada me respondem e descubro que estou louca, doida, desvairada, ensandecida, essa redundância que você poderia chamar "maluquinha".

 

aquele senhor que podia ser uma senhora casada beirando os setenta. aí eu entendo porque não pego nada e essas minhas recusas. e entendo também seu nome musical que me provoca frêmitos quando nos abraçamos bem forte estas palavras.

 

então mais uma vez eu vou àquela praia de te ver em cores de outono. e chove. então eu vou bem longe a sentir as ondas cada vez mais violentas, me distanciando da praia. por instantes creio na minha própria metafísica, a do afogamento, que talvez eu te encontrasse lá no fundo a me chamar os olhos.

 

mas eu nado muitíssimo bem. e fico lá umas duas horas em alto mar, te sentindo ondas, te sentindo espumas de me fazer nascer. te sentindo chuva de me cortar a pele e me fazer mulher.

 

volto à praia e me deito na areia, fico ali jogada, te sentindo sol de me aquecer. e penso que se fossem os teus olhos a me ver com esse biquíni vermelho tão pequeno, nessa praia, você nunca mais me deixasse... mas uns caras se sentam ao meu lado, então eu saio, bebo duas cervejas e volto pra casa pra te sonhar.

 

(os dedos-lábios.)

  

 

na ponta de meus dedos

(De Memórias de Patty Flag)

patty flag

 

 

Gustaff já usava farda do exército alemão, fardinha de soldado raso, sem galões, mas na bobeira plena dos 15 anos, achava aquilo lindo.

 

Conhecemo-nos na rua, eu com a estrela amarela na manga, ele organizando tumulto. Logo estávamos nos vendo cegos aos becos, aos beijos.

 

Foi minha primeira proposta de casamento. Nunca falamos com meu pai. Primeiro amor, todo real é ilusão.

 

44 anos depois, terceiro casamento, novos passos no ar viciado do enlevo. Dessa vez, a última, fui eu a propor. E por me entregar assim, como quem se agarra à corrente da âncora, eu que não enlouqueci — violentada, desmembrada, descarada — acabei no batel das tolas comuns, aos 70, por viuvez, internada em clínica mental.

 

Para o confinamento só me arrastaram desta vez. Até então vivi solta. Será que a loucura começou pequena e cresceu comigo, ou será que eu já era louca completa quando nasci? E vivi, fui vivendo, comendo e convivendo com minha demência?

 

Lembranças soporíferas, drogas pesadas, pesadelos vaporosos.

 

Três meses, alguns choques, muitos golpes de cinta e um golpe de sorte: a clínica fechada por maus tratos aos idosos. Obrigada a renascer.

 

Parto doloroso, doses de carolice na Igreja Universal, de uísque paraguaio nos bares de Copacabana, porque a Fênix renasce das cinzas, mas não sem vento ou diabo que a carregue.

 

De louca a escritora, de puta de meu corpo a puta de minha vida, de meus sonhos, de minhas memórias.

 

Hoje, quando quero prazer, descubro-o sozinha. Ao papel acrescento açúcar açúcar açúcar mexendo leve leve levantar fervura, e vendo as fantasias, ilusões, delusions, dissoluções, loucuras para minha editora.

 

As leitoras, sabrinas e biancas, todas loucas, sozinhas e cândidas, adoram — e descobrem o prazer na ponta de meus dedos.

 

  

 

 

 

compartilhar:

 
 
temas | escritoras | ex-suicidas | convidadas | notícias | créditos | elos | >>>