edição 45 | dezembro de
2013 de frente para o mar, fechei os olhos para ver patty flag Peço para
minha enfermeira-faxineira abrir as cortinas. A luz entra pelo oco dos
olhos e se debruça na sala vazia de meu peito. Na incapacidade de ficar
nas pontas dos pés, executo meu plié em cadeira de rodas: estico o
pescoço. Mas não alcanço o mar, o batente inferior da janela bem na minha
cara.
— Amélia, me
leva pra ver o mar?
— Tenho três
horas de roupa para passar, dona Patrícia...
— Deixa a
roupa pra lá! Nem saio mais de casa direito... É só hospital uma vez por
mês.
— Não é roupa
sua, não. É da dona do 312. Peguei por fora.
— Puta que
pariu, Amélia! Eu quero ir ao cassino! Àquela prainha atrás do
cassino!
— À Urca? Tão
longe...
— À Urca! À
Urca!
Nem foi esse
sacrifício todo para ela. O mais difícil foi entrar e sair do táxi, a
cadeira, a má vontade da Amélia. Mas chegando à praia, praticamente deixou
a cadeira rolar pela rampa dos barcos e encalhar na areia, depois foi
direto tomar suas cervejas na barraca da praia. Não me importei, de frente
para o mar, fechei os olhos para ver.
A maré alta
lambia meus pés e me arrastou praquela noite de 1946. Calor, lua-cheia, as
luzes do Botafogo tremendo nas ondas e seus dedos firmes na minha cintura.
No intervalo entre dois shows, escapamos para dançar aqui, na areia. Tirei
os saltos e a meia. Dançávamos molhando os pés.
Talvez
pensasse em se casar, como muitos pensaram. Talvez quisesse apenas me
levar para a cama no fim da noite, o que fez, aliás, quando me comeu pela
segunda vez naquela noite, em seu quarto de hotel depois de me comer ali,
de pé, encostada na parede de trás do cassino.
Mas não me
lembro de uma palavra, de sua voz, de teu rosto. Lembro-me apenas de seu
desespero quando a maré quase levou seus sapatos, e de suas mãos firmes em
minha cintura. O tesão está nas mãos e escorre pela ponta dos
dedos.
O mar subia
rápido, mas eu não abriria os olhos agora, troquei suas mãos pelas minhas
e me dei o primeiro orgasmo desde o derrame.
Depois do
orgasmo, sim, entreabri os olhos. E a fresta de luz da tarde já não
encontrou vazio. Aqui e ali, brilhavam estrelas do
mar.
Estava pronta
para morrer, que demônios me arrastassem agora para o fundo do mar. Mas
Amélia, bêbada, aos beijos com o rapaz da barraca da praia, o mar já
batendo em minhas coxas, apareceu para me devolver ao mundo
real.
Desatolaram a
cadeira, chamaram um táxi, e a tarde, passageira clandestina, foi-se
embora com a gente.
![]() ©thereza
portes
linha da morte Cara
editora
Pois bem, não
é como das outras vezes em que perdi o prazo por esquecer de ler seu
e-mail ou daquelas que li e fui acometida da síndrome da última hora.
Dessa vez foi verdade. Nas três primeiras semanas do mês do prazo final
para a entrega do texto escolhi entre um dos temas e o amadureci na
imaginação. Deixei para escrevê-lo no início da última semana, os dois
dias seguintes o deixaria maturando e depois do terceiro dia tiraria a
pedra da porta da caverna e o encontraria, para tirar suas carnes podres,
lavá-lo e vesti-lo com algo digno dessa nova edição.
Acontece que
iniciada essa última semana, depois de cumprir com excelência o cronograma
planejado uma sucessão de intempéries, acidentes e coisas inesperadas
aconteceram.
No dia em que
eu deveria escrever o texto acordei bem animada, tomei um banho para
despertar e fui para a frente do computador. Nessa hora o telefone tocou,
bem ali do lado do meu notebook, que ainda iniciava o Windows. Era minha
tia Anilda, ela estava apavorada, pediu-me desculpas por me acordar tão
cedo, mas estava em apuros e precisava de mim.
Contou-me que
o marido, aquele que morreu às vésperas do lançamento da penúltima edição,
havia deixado uma dívida enorme no terreiro de briga de galos e que eles
estiveram cobrando a dívida, de forma bem violenta nos últimos meses, e
que agora a estavam perseguindo. Ela conseguiu escapar pegando um trem
para a São Paulo, mas só conseguiu despistá-los quando entrou
clandestinamente em um caminhão carregado de madeira que seguia para a
Bolívia.
Como ela não
dormia direito há muitos dias por causa dos gângsteres, acabou por pegar
no sono e só acordou quando havia cruzado a fronteira e o caminhão
chacoalhava por entre uma trilha no meio da mata, que a levou direto para
uma plantação de papoulas de um traficante local chamado Sancho.
Por puro
milagre ela conseguiu um sinal em seu celular e a única pessoa que aceitou
a ligação internacional a cobrar fui eu.
Depois de
ouvir sua triste história, não tive como não deixar tudo, arrumar uma
pequena mala, raspar as economias da minha conta, os dólares antigos que
herdei de minha tia avó Bernarda que morreu alguns meses atrás (lembra?).
Não sabia
como agir, mal saí do meu Estado uma única vez, quando tive que resgatar
meu sobrinho, sequestrado por traficantes de escravos no porto de Santos,
já te contei sobre ele também, há algum tempo. Mas isso não vem ao caso
agora, o fato é que eu precisei me ausentar por uma semana, viajando de
carona com ciganos, depois, em um trem de carga cheio de clandestinos
nepaleses, em seguida, de carona para a Bolívia, em uma jardineira cheia
de homens comendo cebolas e mulheres com galinhas em
gaiolas.
Primeiro,
tentei por um dia inteiro negociar a libertação de minha tia com o Sancho
— Papá, como o chamam por lá —, mas ele não acreditou muito na minha
história, que cá para nós é mesmo meio absurda. Poxa, essas coisas vivem
acontecendo comigo, não é? Ele me pediu dois dias para verificar minha
história e confirmar que minha tia não era nenhuma agente da Interpol,
para liberá-la. Eu não havia colocado meu notebook na bolsa, pois saí
muito apressada de casa e perderia o prazo se esperasse tanto tempo.
Fugimos então
pela floresta num momento de distração dos seus capangas, quando eles
disputavam quem esfolaria um delator que haviam prendido. Pegamos febre
amarela, fomos atacadas por sanguessugas e minha tia quase foi levada por
um boto cor-de-rosa, virado em belo moço, para o fundo do rio. Conseguimos
carona até o Rio Grande do Sul e de lá apanhamos um trem para Minas.
Fizemos de
tudo, mas não foi possível chegar antes e, por isso, peço sua compreensão
para que estenda só mais essa vez, o prazo de entrega do meu texto para a
próxima edição.
Sua cansada e
sempre dedicada escritora,
Roberta
Silva
P.S.:
desculpe-me por não enviar tudo formatado, pois meu notebook ainda não tem
o Office (juro).
![]() 1 conto, 1 poema sabina m horizonte
distante
Edgar fechou
as janelas do apartamento ciente do horário precoce, preencheu as
passagens ali mesmo no escuro, já com malas feitas em cima da cama. O
único lugar que sentira acolhido era também seu
cárcere.
*
Ele mirava em
mim como um alvo fácil e nem lágrimas emergiam. Minha cabeça pendia leve.
Se ele firme não temia o revólver em sinais trêmulos, eu não cairia agora
em prantos. Não há medo nele nem na bala que me cega. Sentiria seus dedos
pressionando se não houvesse nada ali, além de mim e ele proibindo minha
partida.
E a arma
continuava apontada para minha cabeça, não o encaro. Já desconhecido, de
tão brutal me arrancaria vontade de vida. Pedro vê em mim olhos cansados,
mãos pesadas, desespero já conhecido. Mas eu não o vejo mais, as vistas
embaçadas me dão a coragem e a leveza para partir.
Atônito
caminho pelo corredor até as escadas, cada degrau me força a encarar a rua
iluminada. Partir é como se nossos corpos enfim se desmembrassem.
Uma música
alta declara um convite para voltar. Prossigo. Talvez Pedro olhasse no
espelho agora arrependido ainda com a arma apoiada em sua mão de veias
grossas. E começasse enfim a chorar arrependimentos por todos aqueles dias
de brigas. E cairia em loucura até quebrar todos os móveis, destruindo por
fim qualquer resquício daquele tempo. Pedro achava que assim quebrado
poderia perder tudo.
*
Dois corpos
lutando no corredor até um cair pela escada e no térreo agonizar. Edgar
vai fumar um cigarro antes de subir e quando subir encontrará Pedro,
também fumando, sentado no chão fitando a varanda agora coberta por folhas
secas. De joelhos ralados, uma gota de sangue contorna a sua perna até os
dedos dos pés. Edgar lava-se no banheiro enquanto Pedro liga o som. O
curativo são os beijos mais fortes que os golpes de antes, os vasos de
flores quebrados, os discos e livros queimados. O lençol manchado de
sangue não ampara os dois corpos em transe no chão. Paixão essa cravada
feito os dentes de Edgar nas costas de Pedro.
travessia
Eduardo
sempre vê navio onde é nuvem
Sonha com o
prédio desabando
e nossa cama
no ar
Disse que sou
sua âncora
enquanto vê
uma estrela cair devagar
em minhas
costas
As luzes
dessa cidade cega
era o que ele
pensava então
Fecha meus
olhos enquanto seguro o volante
e canto I Know it's
Over
Pede meu
cigarro e me deixa
sem lugar
para as mãos
Atravessa
minha voz e sussurra doce
tão vapor quanto palavra
![]() ©thereza
portes
genoveva
discreta casada esposa exemplar
mãe
amantíssima funcionária pública
em gozo de
férias-prêmio
dona de casa
prendada cozinheira de mão cheia
devota de
nossa senhora das dores
foi
encontrada ontem às quinze horas
e trinta e um
minutos num quartinho
da pensão
familiar o pecado mora
ao
lado da rua
guaicurus
ferida de
morte a golpes de objeto perfurante
seu corpo em
decúbito ventral
boiava numa
poça de sangue
nu conforme
veio ao mundo
olhos
vendados pulsos atados
nenhuma
testemunha nenhum rastro
genoveva genuflexa discreta
![]()
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