edição 47 | julho de 2014
temas:  gato escaldado tem medo de água fria | ilha | alçapão

 

 

ilha-me
lia beltrão


Não acenarei para as naus no horizonte.
Nem acenderei fogueiras aos aviões noturnos.
Não quero buscas nem salvamentos.
 
Quero ficar aqui, ilha.
E não desejo que me venhas náufrago.
Mas que me cerques e molhes como um mar.

 
 

 

10 poemas
líria porto 


pé atrás

 

 

gato escaldado tem medo de água fria

gato escaldado tem medo de água

gato escaldado tem medo

gato escaldado tem

pavor

 

 

 

 

eco

 

 

certezas são riscos n'água

não resistem ao pé de vento

não valem um tostão furado

 

todas tão repetitivas

batidas na mesma tecla tecla tecla

gravadas no mesmo oco oco oco oco

no arremedo medo medo medo

da vida ida ida ida

ida

 

 

 

 

era

 

 

as névoas senis as manchas na pele

são ilhas dispersas gravadas em papiro

em mapas antigos onde o tempo se perde

 

 

 

 

ilhados

 

 

cercados de poesia

por todos os lábios

 

 

 

 

a ilha

 

 

de pança pra cima

de papo pro ar

assim como está

deitada na areia

cercada de mundo

 

 

 

 

ingenuidade

 

 

inventas tantas tramoias

e sempre que acontece

eu caio nas armadilhas

e mais pareço uma ilha

cercada de incertezas

a imaginar saídas

que se derretem

igual gelo

 

 

 

 

alçapão

 

 

quem ousar o topo

quem pisar em falso

 

não tiver um álibi

e por ser um tolo

 

vai cair do galho

parecer um pato

 

aos olhos

de todos

 

 

 

cilada

 

 

o futuro é uma mortalha

só o presente existe

e presos ao passado

cairemos na própria

armadilha

 

 

 

 

anos de chumbo

 

 

dói-me dentro

dói-me fora

entre também dói

:

tem um medo que me rói

tem um peso que me mói

uma pata de cavalo

um quepe de general

 

 

 

vazamento

 

 

existe um furo percebo

por onde nos desfazemos

perdemos nossa energia

esse orifício é o medo

 

medo da morte da vida

das dores cismas tristezas

das incertezas velhice

dos sofrimentos

das perdas

 
 

 

insel
patty flag 


1.

 

Entendo o conceito de ilha, mas

O oceano é um ardil

Meu barco cruzou dez mil quilômetros

E nem uma rocha

Não que andasse evitando rimas feito eu ou o diabo

A cruz

Mas as ilhas apegam-se aos continentes

Filhotes debaixo das asas das mães

 

Um lugar comum nenhum

Homem é uma ilha

O que equivale a dizer que toda mulher é uma ilha

 

Não uma ilha deserta talvez uma ilha

Deserta

Uma ilha

 

 

2.

 

Meu barco cruzou dez mil quilômetros o mar apenas o mar pra onde eu olhasse pra onde quer olhar? Pra onde quer que eu olhasse se me permitisse a gente nasce ilha e vai se habitando de si e dos outros aos poucos deixando-se invadir saquear colonizar ou ficando cada dia mais ilha os turistas passando e a cada partida eu cada vez mais sozinha? Meu barco e seus dez mil quilômetros meu barco não navega mais, cadeiras de rodas boiam na Baía da Guanabara, onde estão os pedaços que faltam, digo, os pedaços que junto? Ex-votos que as ondas trazem à praia agradeço agradeço a graça alcançada e perdida agradeço a graça a graça ex-votos encalhados na areia

 

 

3.

 

Acordo com a Amélia:

— Até amanhã, Dona Patty.

— Já...? Já vai?

— Está na hora.

— Pode me trazer um álbum de fotografias?

— Tô atrasada, tô atrasada!

— Qualquer um...

 

Não, ela não trouxe. Melhor assim, preciso trabalhar. Abro o laptop. Pensei em começar um romance. Algo na Croácia. Fala-se muito na Croácia hoje em dia e nunca escrevi nada que se passasse na Croácia. Uma ilha na Croácia, uma mocinha frágil, um príncipe Dalmácio, rude e moreno. Uma preguiça enorme de escrever.  Queria mesmo era dançar. Saudades do Cassino da Urca. Saudades de minhas pernas. Saudade de homem. Saudade da casinha branca de subúrbio. Saudades do jardim de rosas da igreja... Nem na hora da saudade me encontro.

Rolo a cadeira até a janela, pra lá e pra cá, abrindo assim as cortinas. Cada vez movo-me melhor nesta geringonça. Agarro o parapeito da janela e fico de pé, debruçada.

O mar. O mar. Deixar o mar invadir, afogar, tomar-me.

Jogo-me de volta na cadeira. É só.

No centro da sala, uma ilha.

Não uma ilha deserta talvez uma ilha

Deserta

Uma ilha.

 

 

 

o impossível
priscila lira 


Para Maria Martins

 

 

Eu não sabia que, naquela noite, quando tu insististe em me levar pra tua casa, em vez de um quarto qualquer ali por perto, na verdade, tu estavas me convidando a entrar na tua cabeça. Também não percebi que cada livro teu em que eu passava meus dedos nus era uma vereda cada vez mais distante do teu rosto rígido como um sertão que há tempos não vê lágrimas. Do lado de cá, as palavras, as tuas metáforas, demoram a se formar e, nem sempre, as letras se organizam do jeito certo, por aqui tudo também é muito confuso.

Eu também não sabia que, no escuro, teus olhos ficam mais bonitos. É como se, no escuro, a cor deles iluminasse o quarto e me dissesse: o sertão é frágil, cheio de rachaduras, o sal da chuva machuca essas ranhuras de tantos anos a mais que esse teu rosto de pós-adolescente pós-moderna. Eu sempre soube que o meu rosto te desconcertava e que ele, assim como eu inteira, é, pra ti, como um ímã que tivesse os dois lados na mesma face e que, com a mesma facilidade incontrolável que tu te aproximas de mim e me enfia em uma vereda diferente da tua cabeça, tu corres e me rejeita.

Eu sei que tu olhas pra mim com ternura e desprezo, porque eu te faço mal, porque eu te faço bem, porque a minha cara de criança emburrada é ridícula, assim como as minhas lágrimas de quem não faz ideia do que é mundo, mas finge que sabe. Porque as minhas roupas são cool demais e, ainda que eu tente não financiar o trabalho escravo encomendando da costureira, aqueles tecidos provavelmente saíram das mãos de uma mulher alaranjada mãe de dez filhos famintos e que vendeu a mais nova a um homem rico, que não sabia ser cafetão.

Eu sei que a minha beleza te incomoda e que tu pensas que eu me aproveito dela pra me aproveitar de ti, enquanto, na verdade, ela é, pra mim, só mais uma distração, um jeito de esvaziar o vazio metafísico, assim como aquelas aquarelas horrorosas que eu fiz e te dei e que, assim como aquelas aquarelas horrorosas que eu fiz e te dei, a minha imagem é só mais uma tentativa de deixar o mundo mais bonito, porque eu sou uma pós-adolescente pós-moderna que acredita que a beleza, assim como a educação e a comida, deveria ser acessível a todos. Eu sei que, assim como as minhas lágrimas e a minha cara de criança emburrada, isso também é ridículo e terno.

Talvez tu não saibas, mas tu renegas o amor, porque talvez tu sejas uma romântica pós-moderna que acredita na legitimidade do amor perfeito pós-moderno, mas talvez o amor seja mesmo camoniano, essa repulsa magnética, essa ferida que arde e não dói e ele não tem receita pós-moderna de microondas. Eu sei que os meus abraços são, pra ti, espinhos molhados de ópio e que tu, tão humana, tão afeita ao vício, só pode me odiar, assim como os teus cigarros e que eu, tão humana, tão afeita à metafísica, só posso não saber.

 

 

 

eneida
roberta silva 


Eneida deixa seu apartamento às oito. Como de costume checa a caixa de correio.  Nada. O porteiro não entende por que ela contorna sua mesa, abre a gaveta, pega a chave, dá a volta na mesa, abre a sala da portaria onde ficam os nichos das correspondências do prédio e verifica o do número 204 todos os dias. Nunca tem.

 

Depois de devolver as chaves Eneida segue para o trabalho. O expediente começa às nove, sai mais cedo para passar na agência dos Correios, que abre às oito e meia. Espera quinze minutos na porta, quer ser a primeira para não se atrasar para o trabalho. Na agência não permitem que mais de um cliente esteja na sala das caixas postais e como a conhecem deixam que ela entre sem pegar a senha, desde que seja a primeira. Todos os dias a caixa está vazia.

 

No escritório, antes de começar suas tarefas diárias, confere as cinco contas do correio eletrônico. Nenhuma mensagem pessoal.

 

Ela espera uma carta, um bilhete secreto, um e-mail de alguém que queira saber como ela está. Ela não tem amigos e não se pergunta quem poderia atender seus anseios postais.

 

Eneida é uma ilha e não está no mapa.

 

 

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