edição 48 | outubro de 2014
temas:  uma andorinha só | amuleto | old times

 

punhetrix
adelaide do julinho 


triste: pica-pau não

beija-flor, beija-mão:

fá-lo em vão

 

priscila merizzio |  composição feita no banheiro de um restaurante de bombinhas/sc | 2012

 

 

every rose has its thorn
adriana brunstein 


Eu enfiei uma navalha na perna naquele verão. Até a dor me fazer gozar. Foi assim a minha primeira vez. Eu usava meias escolares até os joelhos, eram brancas, e tocava uma música do Poison. Era a navalha dele. Ele tinha uma barbearia e uma acusação de assassinato e me contou um dia que foi legítima defesa enquanto desfazia as tranças do meu cabelo. Eu usava uma saia plissada com estampa de joaninhas. Eu passei meu dedo indicador pelo sangue que escorria com cheiro de metal melódico e tingi meus lábios e então minha língua. Foi nessa hora que não era mais a música, vinha do andar de baixo. A zebra do Fantástico dizia "deu zebra" e ria. A ZEBRA do Fantástico DIZIA "deu zebra" e RIA. A ZEBRA DO FANTÁSTICO DIZIA "DEU ZEBRA" E RIA. Alguém comemorou os 13 pontos na loteria esportiva, ninguém ouviu meu grito. Ninguém sentiu os músculos da minha perna imaculada entrando em contratura. Ou meus pulsos se contorcerem em esconjuro ao resto do meu corpo. A tudo que latejava. A tudo que suava infecções, que misturava sintomas de tétano com diagnóstico de lascívia. E eu escrevi no meu diário: Estou doente. Estou irremediavelmente doente. Eu nunca mais fui feliz daquele jeito.

 

 

 

3 poemas
adriane garcia


fazendo inverno

 

 

Lá loooonge

Há uma andorinha

Voa tão loooonge

E me faz companhia

Nada sei dela

Nem ela de mim

E habitamos

Os mesmos confins

Ela é bicho de ser

Eu sou bicho de estar

Sozinhos sozinhos

No nosso habitat.

 

 

 

 

a espada desenho na tábua

 

 

Quando saio pelas ruas nem imaginam

Que sou Arthur

Não o da Távola

Mas o mordomo de Deus, o Arthur

Bispo do Rosário

E que ainda só não tive coragem

De juntar meus cacarecos

E fazer meu manto

Mas já os olho

Como quem sabe

Muito bem

Quem entrará no meu céu

 

Saio empunhando sérios brinquedos

Que se quebram

Crio o amontoado de suas sucatas

São os carros, as gentes, as buzinas

São os inocentes deitados na rua que

Passam por cima dos meus fragmentos

E de novo eu choro

Para dentro

 

As vozes várias querem me convencer

Que está tudo bem certo

Mas por que é que não encontro

Na minha caixa de segredos

Um velho amuleto?

 

Arranco um a um meus fios de cabelo

E os colo em sete cabeças de boneca

Só assim de poder vê-las

Posso não me sentir calva

Saio na rua, careca

Pronta para trespassar o riso:

A espada, eu desenho na tábua.

 

 

 

 

pretérito perfeito

 

 

Uma voz forte

Termina o trabalho de acordar-me

Em doce e velho italiano

 

Vou à cozinha

Com minhas pernas

Faço meu o próprio café

Ponho tanto açúcar

Quanto quero

 

Choro sobre o mamão

Picado no prato

Recolho as gotas como contas

Que ponho num colar        

 

São lágrimas de saudades

Que tenho de mim.

 

 

2 poemas
alice barreira 


bodas

 

 

beijo retorcido na torneira

calcinha cuspida na pia

 

a figueira seca do amor

a brotar goteiras

 

flores de lepra

choro de cebola insone

 

no prato de louça inglesa

o peixe de silicone

 

o que boia na sopa

intragável de esquecer

 

coleção de cacos de algodão

na memória da colher

 

 

 

 

naquelas tardes fagueiras

 

 

essa foto emparedada

na garganta da ausência

à procura da mesa obscura

 

turva a nódoa dos lamentos

purga o osso dos xingamentos   

ferrugem nas almas

e as prendas que ofereço:

a surpresa do soco

a sintaxe dos loucos

 

esse inseto de mil patas

já devora o decifrado     

grito frio de montanha russa

pesadelo e acordeon

 

priscila merizzio | flores de sarjeta | curitiba | 2013

 

trindade literária
ana flor 


sobre andorinhas

 

 

Debatia-se na arapuca,

a desesperada andorinha

que por aquelas bandas

voava perdida e sozinha,

agora presa pelos meninos

que chegaram em bando,

e levaram logo pra casa

a triste ave sem ninho,

e que nos próximos dias,

morreria sem a liberdade,

prisioneira do seu destino.

 

 

 

talismã

 

 

Minha mãe me dizia

que no amor teria sorte.

Já meu pai primazia

que jogo seria meu forte.

Mas o que eu não sabia,

É que na vida ou na morte,

ser feliz já me valia.

 

 

 

velhos tempos que não voltam mais...

 

 

— Então aquela que é a sua filha?

— Sim, mas é um menino. O meu filho.

— Desculpe. Nem sabia que você já era mãe.

— Tudo bem. Mas eu sou o pai.

 

 

la nave
bernadete reutman 


Ela pode se chamar Ricarda ou Marcela, algo como um nome masculino, só que feminilizado: no cartório de registros, androginaram-na involuntariamente, ela falava para o espelho, procurando esconder do suposto interlocutor o amarelo entre os dentes, fingindo-se entre tímida e divertida. Entretanto, o nome masculino na origem contrasta com sua aparência: leve, doce, fina, feminina, puro cristal. Quem a vir assim deitada, assim terna, assim imóvel asseverará sua morte, tão marmórea sua pele, tão estáticas as pequenas fissuras que ameaçam surgir entre o final dos olhos e as têmporas salpicadas de caminhos de caos em lilás. Quem a vir assim deitada, quem sabe tramando delícias de olhos fechados, amantes ternos e mornos de coxas e braços a se arrastarem por sua pele, fingindo-se adormecida, jamais poderá supor que, verdade, ela dorme, e não apenas dorme, como está, no momento mesmo em que estamos a observando, sonhando.

No sonho, há o grande salão. Mal ela desconfia sua utilidade, mas o enorme aposento enternece e assusta, tão saturadamente grandioso é. A decoração e o estilo são variados, entrevistos num transe de luzes piscando, pois as lâmpadas que o iluminam falham renitente e constantemente, algumas penduradas em fios empoeirados que deixam entrever buracos no forro do teto em formato de domo medieval, mas com luminuras desenhadas à mão por artesãos ciborgues do XXI. A impressão que ela tem, perdida nesse misto de luzes e sombras, é que há uma porção do salão para cada estilo: no canto à direita de quem entra, encravado entre um totem, que rescende a tribalismos quem sabe asiáticos, e uma estátua que parece retratar Adriano ou Tucídides (esses bustos sempre nos confundem), há um presépio barrocamente ornamentado, curvas que se dobram sobre curvas, superlativo do superlativo; mais além, a parede é como que perfurada de fora para dentro por uma espécie de onda virada para o teto, uma mistura de arquitetura do início do XX com o gótico da Notre Dame de Chelles; logo em seguida, centenas de micropênis em cerâmica perfazem um canteiro no chão da nave, cujo centro é fendido por uma pilha de oito ou nove metros de bidês de cores diversas, uns com a louça craquelada, outros apresentando escaras marrons conspurcando o brilho da matéria original, sempre sem uma ordem aparente, seja de cores ou de disposição das peças.

Maura, a sonhante, caminha deslumbrada por entre aqueles objetos como quem anda por onde outros já caminharam, como se aquele caminho, desconhecido para ela, sempre estivesse ali sendo descoberto por centenas e milhares de pares de pés, apesar de sempre ter sido considerado um caminho secundário. Mais à frente, Sandra, a passante, vislumbra aterrorizada uma mão saltando pendente de um monturo de parafusos azinhavrados; a mão parece de verdade, ela a toca, está morna, sente-lhe o pulso vivo, tenta puxá-la, desencavar o corpo que jaz abaixo da montanha de azinhavre, mas a mão permanece rija, como que pertencente àquele emaranhado de metal morto, no entanto viva, tanto que, num gesto de puro cohumanismo, acena-lhe um adeus diáfano. Joana, a vidente, acena de volta e continua a caminhada. Estaca assustada, pois dois metros à sua frente uma estante que quase vai até o teto desmorona, empurrada por um velho cego que sai detrás do fruto do seu desastre perguntando insistentemente onde ficava o banheiro. Ela ameaça responder, mas no momento seguinte o velho cego pega no braço de um senhor de barba com um charuto na boca, e os dois caminham resolutos entre a pilha de destroços conversando sobre charutos, aquela ultrapassada modernidade e mictórios.

Aquele depósito de coisas em degradação constante incomoda Jorgina, a leitora, que suga forte a brisa morna que sopra lá de fora da nave, forma que encontrou para não se sentir nauseada com tamanha concentração de informações. O ar renova-a por dentro, fazendo-a compreender a existência daqueles escombros acumulados como estrelas cujas luzes jamais brilharão para seus olhos, daquelas ruínas, daqueles restos de humanidade que ali jazem, pois ela passa a se sentir íntima de cada taça, irmã de cada livro, prima de cada obra de arte, enamorada de cada objeto bélico, próxima de cada peça utilitária, fogões, fogareiros, latas de lixo, restos de comida, bilhetes de metrô, placas de circuito, válvulas, uma metade de um telégrafo quebrado, um projetor holográfico de modelo ultrapassado, uma âncora, aquela cápsula de cádmio que já se usou para baterias de antigos aparelhos de comunicação entre os seres humanos, livros de papel, abajures, chapéus com plumas, capacetes e bombachas, comunicadores subdérmicos, taças de saquê e garrafas de barro, coisas construídas sobre restos de ex-coisas, isso lembra Hegel, ela pensa, confusa com a imagem de um homem lapidando um bloco de pedra. "Oh siglo desdichado y desvalido", Andréa, a aspirante, conseguiu ler numa tela de um antigo tablet perpetuamente carregando sua bateria numa tomada improvável, fornos industriais, ferraduras, certidões de nascimentos, formulários para alistamento militar, corpos mutilados entulhados lado a lado com araras plenas de vestidos tubinho e mangueiras de bombeiro, cadarços rotos, um robô sem pernas folheando um antigo manual de robótica sentado ao lado de outro lendo absorto um livro com uma pomba branca na capa, cacos de vidro, controles remotos, largos portões de ferro torneados, estatuetas de querubins em gesso, madeira, latão, pedras preciosas, lunetas e osciloscópios, termômetros e altímetros, esfigmomanômetros, esfíncteres artificiais, estojos cheios de unhas postiças, uma solitária tela de antigos aparelhos televisivos rachada, arados e ancinhos enferrujados, tudo com cheiro de para sempre, odor que nunca deixarão de exalar até o final dos tempos ou até que Alberta, a famélica, desperte de seu sonho ao mesmo tempo vidente e retrospectivo, abra os olhos e se veja no espelho do teto do velho motel onde estava desde o início: deitada, terna, imóvel, tão imóvel que, se ela se visse daquela forma, julgaria que ela mesma estaria morta, não dormindo e sonhando com uma estranha nave de alguma desconhecida abadia, como de fato estava até o instante passado, que não mais existe, mas apenas dormindo até o final dos tempos.

 

 

 

 

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