edição 4
| março de 2006
das tranças Conta-se que uma nobre
senhora encontrava seu amante nas horas em que seu marido - um intrépido
cavaleiro - saía a participar de torneios. Os encontros furtivos
aconteciam na casa da irmã do galante conquistador. Um dia, a dama exige uma
prova de amor incontestável: que seu amor venha visitar-lhe à noite em seu
leito conjugal enquanto o marido estiver dormindo. A empreitada finda mal
sucedida, posto que o dono da casa percebe a presença do estranho e,
julgando ser um ladrão, reage com violência arrastando-o até um cômodo
onde ficavam o cavalo e a mula, prendendo aí o audaz cavaleiro em um baú.
Como estava muito escuro,
o dono da casa, com a desculpa de ir buscar um candeeiro e sua espada,
pede para a esposa segurar a tampa do baú, advertindo-a para que não deixe
o prisioneiro escapar. A dama aproveita o
momento e liberta o amante, colocando em seu lugar a cabeça da mula.
Quando seu marido retorna, candeeiro e espada em punho, suspeita que o
prisioneiro é um sedutor e não o ladrão que pensava. Interpela a dama e
segue-se uma discussão acalorada onde ela é expulsa de casa, dirigindo-se
ao local onde costumava encontrar o valente cavaleiro. Aí estando, negocia
com a esposa de um escudeiro, convencendo a mesma a ocupar seu lugar no
leito conjugal. Acordo feito, a substituta põe-se em seu lugar na
cama. O marido, inconformado
com a traição, não sente-se disposto a perdoar. Coloca as esporas e fere
aquela que pensa ser sua mulher lentamente no corpo e em seguida corta-lhe
as tranças expulsando-a "novamente" de casa. Sabendo do ocorrido, a
mulher adúltera consola a pobre vítima e retorna à casa enquanto o marido
dorme. Acha as tranças cortadas e as substitui por crinas de
cavalo. Na manhã seguinte, o
marido acorda e fica surpreso ao encontrar a esposa na cama intacta, e
profere novas ofensas. Esta diz nada saber, deixando-o mais confuso ainda.
Olhando, o homem constata que os cabelos da mulher permaneceram longos e
com as tranças intactas. Fica mais confuso quando ao procurar a trança
cortada encontra a crina do cavalo. Perplexo, não sabe
explicar o que aconteceu no dia anterior, até que a esposa convence-o de
que tudo não passou de um sonho, de aparições mal-assombradas e fantasmas,
exigindo desculpas pelas palavras ofensivas com as quais fora há pouco
tratada. Por fim, convence o
marido a realizar uma peregrinação até a Santa Lágrima de Vendôme para
espantar os maus espíritos.
Fim *Os contos denominados Fabliaux foram um gênero literário
que, surgido na França Medieval, caracterizava-se por narrativas curtas,
cômicas, satíricas e rimadas. Eram criações literárias de caráter
simbólico e alegórico, compostas em versos octossilábicos para leitura em
público ou em ambientes privados. Faziam parte da tradição oral e de
caráter folclórico, indo de encontro às regras da literatura romanesca,
muito decantadas através dos modelos do imaginário aristocrático, que
associavam os efeitos "cavalerescos" e que passavam-se em florestas
mágicas, castelos e cortes, e que no caso dos Fabliaux, levavam o ouvinte ao
espaço doméstico comum, para a intimidade do leito conjugal.
O fabliaux "Des treces" (Das
tranças), datado de fins do século XIII é composto de 435 versos de
autoria anônima. Existe uma outra variação idêntica, com 272 versos, que
intitula-se De la dame qui fist
entendant son mari qu'il sonjoit (Da mulher que fez seu marido pensar
que sonhou). Os dois textos completam-se e recorrem ao imaginário concebido pelo mundo masculino nos séculos XIII e XIV, a respeito da realidade conjugal e erótica do universo feminino.
vergonha Protegidos por fantasias não precisavam varrer a calçada da rua nem limpar privadas em casa. A estratégia dele era simples e clássica: queria, queria, queria, tudo e já. Como o menino que batia o pé reclamando doce pra mãe. Ela, pra manter o equilíbrio, contradizia: não quero, não quero, não quero nada e depois. Também batia o pé, alegando estar crescida, e olhava pro alto, encontrando a figura daquele que devia representar um pai. Jogavam o jogo conhecido, ele habituado a seduzir e abandonar. Ela, a princípio resistente, inventava artifícios inteligentes, como ir embora logo que ele começasse a falar. Voltaria depois, se tivesse um sinal de que teria um terreno seguro. Se alguém fizesse uma avaliação prévia ou se, para experimentar o novo, se escondesse na vergonha habitual, mergulhando no esvaziamento dos sentidos, no rebaixamento de si. O coro assistia à cena.
Bocejando, o espetáculo encenado tantas vezes e em tantos lugares por
tantos atores diferentes. Entretanto sempre igual. Sem mudar falas nem reações. Para
que o espetáculo tivesse mais vivacidade, o coro ria e chorava. Os
protagonistas, não querendo viver o que podia ser vivido usavam os outros
como escudo. O que dizem. O
que fazem. Como vivem. Eles procuravam, procuravam. Encenando, a princípio, a gentileza: sim e não, sim e não, sim e não. O jogo de avançar e recuar tantas vezes e o que mais importava não eram eles e sim o coro chorando, rindo e voando ao redor deles. Testemunhas de quê? Do engodo mútuo. De que ninguém tinha culpa. Que tudo acontecia por razões extraordinárias, desgovernos, injunções astrológicas, vontade divina, porque eram os últimos a saber, porque o dólar subiu e muitos especuladores ganharam. Poderiam ficar sós. Mas era o absoluto terror. O momento de intimidade nunca chegaria por que seus olhares não haviam atravessado o muro. O muro da vergonha de estar só no mundo, sem a cobertura da inocência primordial. Contavam com o outro para encobrir o desespero. Depois que se servissem, não viesse o coro perguntar se voltariam pra casa: Por acaso sou a guarda de meu irmão? Rejeitariam a marca original, vaidosos do desespero: pelo menos era deles. Sem a vigília do Poder que exigia a virtude para conceder a felicidade. Se tenho algum horror, pelo menos ele é meu, diziam, orgulhosos, ao coro que os perseguia, cantando em jogral: Quem não mostra seus sentimentos ao outro trai a sua confiança. Eles fugiam das espadas de fogo, correndo pra vomitar dos pais mais nojentos do mundo. Depois que se serviam também
era impossível olharem-se. Com a fuga não havia mais a Palavra redentora.
Apenas o embaraço de dizer, desdizer e nunca explicar, porque não sabiam
calar. Teriam que se envergonhar, inventando que o sem sentido das
palavras significava algo. Como as vergonhas vinham umas atrás da outra,
não poderiam restaurar a inocência. Então a correria sem fim atrás de
outros, outros e outros. Que serviam para o coro de anjos jamais os
encontrarem e perguntar se já não era hora de voltar pra
casa.
superstição
- Nesta casa não se tranca
a porta? Com tanto ladrão por aí! Silêncio, cisma e cheiro de
flor. Que nem existia. Só na parede, numa reprodução que ela havia comprado
em Paris. O medo eriçou-lhe os pêlos.
Sua mãe sempre lhe dizia que sentir cheiro de flor ausente é prenúncio
da própria morte. O cheiro vinha do quarto e
as rosas estavam todas lá, espalhadas pelo chão. E sobre os corpos que
fornicavam feito animais. Voltou à sala e desabou -
aliviado - sobre o couro macio da poltrona. Arrancou a gravata e serviu-se
de generosa dose de scotch. Legítimo!
alta traição Poderia
ter dado de ombros. Ao invés, tremeu os joelhos. Dado uma seqüência
rápida de socos em seu queixo. Dizer que é louco de amor e olhar no
espelho para conferir a expressão? Mas não, só conseguiu um "tu-tu-tu-tu-tu-tu"
para um simples "Tudo bem?". Patético foi que isso o fez conferir novamente
a imagem. Desta vez, a de compreensivo-e-modesto. É pelo que consegue
de você que o admiro. Perder o controle por alguém que fala de si como
quem conta história de um santo e, pior, do qual alcançou um milagre?
Pense!
Você assistiu Je Vous Salue Marie! e entendeu. Leu autores latinos,
africanos, árabes. Concorda com Nietszche. Assina Caros Amigos
e Carta Capital. É fã de Fidel Castro. Toca violoncelo
e tem dois Frida Kallo. Falsos. Tudo bem, mas tem. Ter pena quando diz que é assim
porque teve uma infância difícil? Infância difícil? Fora ele, milhões
de brasileiros, bilhões mundo afora tiveram! Ele some por meses, liga
de madrugada, bêbado, o deixa entrar, para que não enfie o carro num
poste e dá para ele? Sem camisinha? Em
tempos de guerra cortariam sua língua, lhe ateariam fogo em praça pública.
Alta traição. Todas as provas apontam-na, incontestavelmente. No júri,
escolhidas pela promotoria, uma mulher que teve que sair de casa para
trabalhar, uma senhora que queimou o sutiã em 70, outra seduzida, abandonada
e renascida, uma socialista de carteirinha, uma lésbica, outra que bem
podia ser a reencarnação de Lucrécia Borja. Mulheres que nos ajudaram
a formar a consciência e conquistar tudo o que temos. O
que somos. Sua
defesa, tímida, tenta, com argumentos esdrúxulos, impugná-las. Advogada-de-porta-de-cadeia
(Não gastaria latim consigo mesma, não é?). Busca apoio no sangue das
matronas beatas que corre em suas veias. Acostumadas ao comando de seus
homens, a considerar o sofrimento virtude, a dar o melhor para ele e
seus filhos e contentar-se com o mínimo e dizer-se feliz assim. Conseguirá,
no máximo, um olhar impaciente da juíza. Famosa pela severidade de suas
penas, pela imparcialidade, pelo rigor. No peito uma pedra. Na parede,
a chave da cidade e num baú bem trancado, rubras lingeries. Para todos,
a juíza. Secretamente, a puta. O que espera de alguém assim? Compaixão? Será
um massacre. Em poucas horas o veredicto: - Culpada! Pena máxima! Talvez
se você tentasse uma fala última. Se dispensasse essa defesa medíocre,
quem sabe? Levante-se e diga, em tom cambaleante que seja. Que por instantes,
meses, quem sabe séculos, aceitou que era alguém sem estirpe, sem valor
considerável. Que, por ter fornicado por séculos em troca de pão, sabedoria,
reconhecimento, proteção, o diabo a quatro, sua natureza ficou irremediavelmente
mestiça e vira-latas e que usaram esses argumentos, por tanto tempo
e com tanta força contra você, que chegou mesmo a crer que eram válidos
e que lhe faziam favor em beijá-la vez em quando. Quem sabe reconhecendo,
diante do tribunal, que tem falhado consigo e com sua classe, pudesse,
pelo menos, adiar a execução da sentença? Proponha
enclausurar-se em si. Comprometa-se a não se deixar usar mais por carência
ou baixa auto-estima: "Só por hoje, não me deixarei usar. Não buscarei
companhia só para disfarçar o medo de estar só comigo mesma. Lutarei
até descobrir-me capaz de tomar as rédeas de minha vida. Passarei com
bravura pela crise de abstinência até desintoxicar-me completamente
e reconhecer-me inteira, acompanhada ou não". Talvez assim, para seu governo, eu diminua minha pena.
sopa de
letrinhas A
cada vez que limpava a carne pro almoço, lembrava
dele. Aquele
pedaço de carne inerte, à
mercê de sua vontade de fazer dele picadinho, bifes
massacrados com o soquete, ou até, quem
sabe, um
belo assado onde enfiaria, impiedosa, uma
grossa lingüiçona. As
pelancas, que desprezava, seriam
guardadas para que as comessem as
cadelas vira-latas da vizinhança. Os
nervos, expostos, serviriam
pra uma sopa de letrinhas que
ela tomaria, engolindo
o alfabeto inteiro. E
todas as palavras. Como fora desde sempre.
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