edição 4
| março de 2006
eu queria tudo Eu sempre pensava em outro
quando ele transava comigo. Aliás, sempre estava em outro lugar também.
Tenho paixões secretas por pedaços
de outros homens. Transo com as coxas do Abelardo. Com a pica do Alfonso.
Com o abdômen do Marcelo. Com os pés do Julio. Com a voz do Reginaldo.
Com o charme do Antonio. Com o dengo do Pereira. Com a poesia do Osvaldo.
Com a riqueza do Petrônio. Com a chupada do Ernani. Com os olhos do
Chico. Com a pegada do Neves. Com a picardia do Vinicius. Com o tornozelo
do Zeca. E assim vai. Tudo ao mesmo tempo. Sempre com todos estes homens
na cabeça. Vou comendo um a um dos meus tesões. O que gostava nele era
o seu cérebro. Pra conseguir transar com ele tinha que fazer uma ficção
e uma história e um romance e uma coisa muito comum às mulheres: broxar.
Deixar que ele fizesse o que quisesse comigo, inclusive o que eu não
gostava de fazer. Isto já estava
ficando chato. Eu queria um homem inteiro. Ao
qual não precisasse trair toda
vez que fazia sexo. Gostava dele porque ele me divertia
e era um bom homem e me fazia rir. Mas um elefante faz rir e como incomoda.
Estou me sentindo presa faz muito tempo. Na verdade o que eu queria
era transar com dois homens ao mesmo tempo. Um dos homens seria ele,
é claro, meu marido. O outro, sei lá. Talvez algum cara
completo como o Brad Pit. Um cara que me fizesse subir pelas paredes.
Ele era muito imaturo sexualmente. Nem sei como fui me entregar a este
homem. Com tanto homem bom por aí. Não pelo fato de ele ser feio. Ele
não era feio. Era horrendo. Mas como
eu gostava de seu cérebro e como
me fazia rir. Preciso de um comediante e de um intelectual e de um ator
lindo. Preciso de mais homens em minha vida. Estou sempre zapeando a
TV para ver nas novelas o tipo ideal para mim. Ainda não cheguei a
uma conclusão. Não gosto de alto e nem baixo. De gordo
e nem magro. De feio e nem bonito. Um homem mediano com o QI alto
era o que eu queria. Mas nada. Sempre o mesmo papai-mamãe: aquela coisa
ridícula e pequena entre as pernas. Sim, que para piorar ele tinha o
pau pequeno. Quando falo pequeno é pequeno mesmo. Ou seja, resumo da
ópera. Ele não me dava prazer. Mas como era inteligente e me fazia rir.
Com ele eu até me esquecia das horas de aperto financeiro pela qual
passamos. A vida parecia ter um sentido. Veja, ele não era um homem
de todo mau.
Tinha seus pontos positivos. Mas na cama era um desastre. Minha solução
sem solução estava nas cartas de dona Essência. Ela me disse que ia
encontrar um homem que fosse dentro dos meus padrões um bom fodedor.
Quando? Eu espero por isso. Eu anseio por isso. Com quantos paus se
faz um homem desse? Mas, como ele era inteligente e me fazia rir! Pelo
menos era um bom piadista. Podia trabalhar no circo como palhaço. Tinha
uma cabeça impressionante, uma mente brilhante, suntuosa. Dominava a
língua e suas subdivisões. Cada frase dele era uma coisa muito bem coordenada.
Colocava todos os s nos lugares certos. Mas beijava mal. Amava mal.
Resolvi que não ia traí-lo. Ia dar um fim nesta história. Eu enfiei
uma faca de corte nele. Piquei seu corpo em pedaços e fui comendo cada
parte do meu homem uma a uma. Claro que tive uma indigestão, mas nada
tão ruim quanto como me sinto agora sem a cabeça dele para me falar
coisas interessantes e sem a sua capacidade de me fazer sorrir. Eu queria
tudo.
as marias Três irmãs. Maria do Jesus Crucificado, Maria do Sagrado
Coração e Maria Imaculada.
Viviam confinadas numa casa isolada na beira
de uma rodovia, na saída da cidade. Devotas, iam à missa, religiosamente,
todos os domingos. Viviam a desfiar o rosário.
A mais velha, Maria do Jesus Crucificado, tinha
cabelo curto, usava calças compridas e fazia penitência. Era de trabalho
mais pesado e de reza braba. Desde a morte dos pais, terminou de criar
as irmãs. Adquirira também o hábito de vasculhar as lixeiras para descobrir
segredos das irmãs. Gostava de estar informada de tudo.
A do meio, Maria do Sagrado Coração, era a
mais robusta. Roupa lhe servia por pouco tempo. Cabelos até a cintura.
E trazia dotes de prendada. Tricotava, bordava, cozinhava, lavava, passava
e ainda ajudava nas obras caridosas ecumênicas. Sonhadora, deixou de
se casar em prol da família, após o falecimento dos pais. No entanto,
nunca se desfez do seu enxoval, guardado feito tesouro numa arca empoeirada.
A mais jovem, Maria Imaculada, era ninfeta.
Canelas finas. Boca sempre vermelha. Cabelos enrolados. Seios e bundas
nascidos. Sabia ainda muito pouco da vida e de si mesma. Só sabia que
a única coisa que possuía na vida eram as outras Marias, e que a defendiam
do mundo. Logo percebeu que era diferente das suas irmãs. Toda a vez
que voltavam da missa, trilhando pela rodovia em que a fileira de caminhões
parava para descansar, notava os olhares dos caminhoneiros. No começo
embaraçava-se, meio com medo das irmãs e meio sem entender o motivo.
Mas assim que chegou o fogo das entranhas rapidamente ganhou prazer
de ser percebida, e quando os motoristas largavam seus volantes para
encararem sua juventude física, estufava mais as suas arredondadas extremidades
carnudas.
- Morreremos juntas feito as três estrelas
do firmamento - profetizava Maria do Jesus Crucificado.
- Viveremos unidas como as três pirâmides
do Egito - rogava Maria do Sagrado Coração.
E Maria Imaculada - que inclusive nutria
vergonha do nome - não se importava muito com tudo aquilo. Achava
até bom, no meio daquele nada em que viviam, cercadas por estradas e
caminhões que iam e vinham, ter duas irmãs zelosas e tão unidas.
Certa feita, aconteceu das duas irmãs mais
velhas não se sentirem bem na mesma manhã domingueira, de modo que restou
à Maria Imaculada não quebrar os vínculos sacros da família, e a designaram
ir desacompanhada à igreja, atravessando sozinha a rodovia. E foi. Voltou muito, muito depois. Tarde da noite,
para espanto geral. Dois faróis iluminaram a casa e o ronco de
um motor chamou a atenção das duas irmãs que rezavam, aflitas. E saíram
em polvorosa. No momento em que a caçula desceu da boléia, quatro olhares
lancinantes e duas mandíbulas espumantes estancaram diante do caminhão. - O que significa isso? - Arregalaram
as bocas ovaladas das Marias. - Vou embora dessa casa! - O quê?! - Urraram em coro. - Vocês ouviram. Vou embora daqui! As irmãs se entreolharam, transtornadas, abismadas,
fulminantes. - Amaldiçoada! Você está desonrando o
nome da nossa mãe! - Excomungada! Você está desacatando o
nome do nosso pai! Mas Maria Imaculada era outra. Incorruptível. - Descobri o meu destino, quero ser livre.
Quero ser puta! Quero ser do mundo! O caminhão roncou, impaciente. Maria Imaculada,
entretanto, não conseguia entrar em casa para apanhar seus pertences,
tal era a barreira formada pelas Marias injustiçadas. Então, com as
pernas trêmulas, os pés procurando firmeza no chão, a coisa melada escorrendo
entre a coxas e abotoando calmamente a blusa, bradou, apontando para
a rodovia: - A estrada pode num ter fim, irmãs. Mas
a gente pode pôr fim nela. - Vai arreganhar as pernas pra sujeira
do mundo, meretriz? - Vai deixar que o diabo carregue você,
rameira?! - Quero conhecer o mundo inteirinho, irmãs.
Vocês conhecem o mundo todo? Só sabem rezar e cuidar da vida dos outros!
Quero conhecer até o último canto que fale a nossa língua e todas as
outras línguas existentes! Dizem que tem lugar que o povo nem fala.
Só de se olhar eles já se entendem, sabiam? O caminhão buzinou, chamando, na frente da
casa. As irmãs petrificadas, os corpos estarrecidos, os olhos vulcanizados. - Fiquem vocês com a castidade! Eu não
quero secar aqui feito esse jardim, feito vocês! Virou-se e rumou para o caminhão, entrando
na boléia, batendo a porta. As duas Marias, agarradas uma à outra, prostraram-se
na frente do monstro de metal, as mãos levantadas como se segurassem
tochas nos punhos cerrados. - Só se for por cima da nossa honra! - Terá que passar sobre nossa dignidade! Maria Imaculada, de coração alvoroçado, olhou
com pedido para o caminhoneiro ao seu lado. - Vamos embora. Vamos que tenho pressa
da vida. Elas vão entender, um dia. O homem hesitou, surpreso, indeciso. - Pisa nesse acelerador! Ordenou ela,
entre os dentes. O motorista continuou imóvel, sem arrancar.
O motor ligado. E Maria, a Imaculada, esticou a perna e pisou
ela mesma no acelerador. Com força. O caminhão avançou. Dois estrondos secos contra lataria. Dois gritos.
Dois solavancos. O caminhão desapareceu na estrada, em meio
ao negrume da noite inquieta. Uma lua sorria.
abra a boca e feche os olhos
Axiome I: Tout ce qui est, est en soi ou en autre chose.
Fala a verdade. Tirei a sorte grande. Podia ter ficado na roça e morrer sem futuro, casada com um homem pobre-porém-honesto uma penca de filhos uma casinha caiada com flores no jardim samambaias na varanda horta no quintal a vida sem inesperados. Mas não. Estou vencendo na cidade grande. Tirei a sorte grande, vim parar aqui, no doce lar da minha patroa. Não existe no mundo alguém melhor do que ela. Minha mãe. Como se fosse. Mandou tratar dos meus dentes, dos meus cabelos, me deu roupas e sapatos novos, xampu, desodorante e me ensinou a usar absorventes higiênicos. Depois que eu estraguei três guardanapos da sua toalha de mesa mais bonita. Ela me emprestou alguns livros, me botou na escola, me mostrou como olhar as palavras no dicionário, me ensinou a conversar. Já sei falar problema. Já sei conjugar muitos verbos. Nós fomos. Nós vamos. Fui promovida de babá a cozinheira. Já sei dizer o almoço está servido. Já sei fazer pratos da nouvelle cuisine. Fiz curso. Já sei lidar com aparelhos eletrodomésticos e à noite posso ver as novelas da TV Globo. Depois do Jornal Nacional. Já sei o que é Collor, Sarney, ACM e Maluf. É muita sorte. Tenho quinze anos. Dois de felicidade no doce lar. Tanta generosidade não tem paga.
Minha patroa é linda.
Axiome II: Une chose qui ne peut se concevoir par une autre doit être conçue par soi.
A casa está sem graça. Minha patroa está viajando sozinha. Coisa de trabalho. Meu patrão sente a falta dela. Fica irritado nervoso reclama de tudo. Ele é um sujeito pau. Cacete. As crianças os cachorros as gatas sentem a falta dela. Falar nas gatas, tenho que cumprir a ordem dele. Sumir com elas. São lindas e peludas, cheias de dengo. Minha patroa vai sofrer quando voltar e não encontrar as duas. Elas se enroscam, as três, no sofá da sala de televisão, meu patrão não consegue chegar perto. Ele odeia as gatas. Todos serão mais felizes depois. Tenho tentado fazer meu patrão feliz. Sigo todas as recomendações da minha patroa, pra que tudo saia ao gosto dele. Capricho na cozinha na mesa (na cama). Ele está irritado nervoso reclama de tudo. Faz plantão no telefone esperando ela ligar. Se ela não liga é um deus-nos-acuda. Aproveito a ausência dela pra remexer em seus armários vestidos sapatos joias perfumes batons. Nas caixas. Poemas, cartas de amor, retratos. No fundo da gaveta um caderno de capa marrom. Desço. Ele chega cedo. Irritado nervoso reclama de tudo.
Meu patrão é um chato.
Axiome III: Étant donnée une cause déterminée, l'effet suit nécessairement; et au contraire, si aucune cause déterminée n'est donnée, il est impossible que l'effet suive.
A minha angústia é um ovo. Equilibrado numa colher. Nasci entre as montanhas, o que explica a minha falta de ar crônica. Em parte. O crocodilo não consegue pôr sua língua pra fora da boca. As cobras são surdas. Elas sabem que alguém está se aproximando pela vibração do solo. Os abutres de Rüpell são as aves que voam à maior altura. Já foi detectado seu voo a onze mil metros, que é a altura normal de voo de um jato de passageiros. O material mais resistente criado pela natureza é a teia de aranha. Ovelhas não bebem água corrente. O elefante é o único animal com quatro joelhos. Ratos não vomitam. O galo cantou três vezes e o menino nasceu morto. Dezembro é um mês faminto. O amor, que além de pó, foi poesia. Quando você me olha com as mãos e me pede com os olhos. Imediatos e absolutos. Depois, esquecer o sentido secreto de todas as coisas que são, que não têm dó da gente e permanecem. Nem tudo o que eu escrevo, existe. Mas isso eu não posso provar.
Copiei de páginas salteadas do caderno de capa marrom da minha patroa. Procurar no dicionário: angústia crônica vibração detectado resistente permanecem. Quem será Rüpell? E esse menino nascido morto? De quem os olhos imediatos e absolutos?
Minha patroa cria cobra.
Axiome IV: La connaissance de l'effet dépend de la connaissance de la cause, et elle l'enveloppe.
Tem mais de uma semana que o patrão não me procura. Tirando as vezes em que ele viaja, nunca ficamos tanto tempo assim. Desde a primeira. A primeira foi alguns meses depois que cheguei ao doce lar. Estava no começo da minha fase de transformação. Quando a patroa mandou botar meus dentes da frente, hidratar e cortar meus cabelos. Quarta-feira. Pouco depois das quatro da tarde. A casa estava vazia e eu estava no meu quarto. Ele entrou mudo. Subiu em cima de mim e veio com tudo. Saiu calado. Assim começou o nosso relacionamento. Li nas revistas femininas que estou vivendo um relacionamento. Algumas vezes tentei discutir o nosso relacionamento. Ensaiei algumas frases. Quando disse a primeira, ele riu debochado e saiu do meu quarto. Não tive coragem de insistir. Tenho dezoito anos. Há quase cinco anos o nosso relacionamento é assim. Silencioso. Sem risos e beijos e gemidos. Procurei nas revistas femininas bons conselhos pra atrair um marido desinteressado de volta. Segui todos. Não valeu de nada. Meu patrão mal me vê. Ontem, depois que foram se deitar, subi as escadas de mansinho, no escuro. Fiquei ouvindo atrás da porta do quarto deles. Riam os dois. Escutei o barulho dos beijos. Quando começaram os gemidos, desci correndo. Hoje, no café da manhã, minha patroa estava distante, o olhar comprido, cheia de cerimônia. Ela disse o que eu gosto mais numa casa são as janelas. Onde já se viu? Meu patrão pegou a sua mão, passou no rosto dele e a beijou. Ela disse parece que vai chover. E sorriu. Sorriram.
Minha patroa é a outra.
Axiome V: Les choses qui n'ont entre elles rien de commun ne peuvent se concevoir l'une par l'autre, ou en d'autres termes, le concept de l'une n'enveloppe pas le concept de l'autre.
Nosso relacionamento está cada vez melhor. Raro o dia em que o meu patrão não aparece no meu quarto. Ele vem, sobe em mim e pronto. Não diz essa boca é minha. Não geme. Não beija. Não ri. Uma vez acho que disse baixinho você é muito larga pra sua idade. Ou você não larga mais a cidade. Bem no meio da hora. Eu perguntei o senhor disse alguma coisa. Ele não respondeu. Outras vezes me chamou pelo nome da patroa. Não perguntei nada. Sou feliz. Faço parte da alegre minoria de mulheres que sentem prazer na maioria das vezes, conforme li nas revistas femininas. O resto finge. Ele é muito gostoso. Nem se compara ao meu pai, que montava em mim lá na roça, fedendo a pinga, sem banho há dias, um nojo. Era um custo pra acabar. Foram três anos suportando o peso do meu pai. São seis anos de relacionamento com o meu patrão. Sinal da minha sorte. Que eu devo à minha patroa. Um dia, recolhendo a roupa no armário de roupa suja do banheiro dela, achei uma calcinha que ela esqueceu lá. Usada. Cheirei. Minha patroa tem cheiro de égua. Seu cheiro é doce e sal. Guardei a calcinha sem lavar debaixo do meu travesseiro. Foi quando o meu patrão voltou.
Meu patrão é infeliz.
Axiome VI: Une chose vraie doit s'accorder avec son objet.
Festa no doce lar. Aniversário da minha patroa. A casa está cheia de balões, flores e gente. Todas as luzes estão acesas. Música. Os garçons vão e vem servindo bebida canapês salgadinhos finos enfeitados. Tudo de primeira. Alguns casais dançam à beira da piscina, há pessoas felizes e risonhas por toda a parte. Minha patroa circula entre os convidados. É uma nuvem com uma taça de vinho na mão. Vou e volto da sala à cozinha dentro do meu uniforme de gala. Deslumbrada. Quem diria que um dia eu estaria numa festa assim? Uma caipira. Que não tem no cu o que o periquito roa. Mais respeito: que não tinha. Estou vencendo. Pela bondade da minha patroa, que me ensinou até a comer flor. Ela vem com o canapê na mão, você tem de provar, uma delícia, menina, é de violeta roxa. O gosto é bom. Minha patroa ri, balançando a cabeça. Seus brincos de diamantes cintilam. Presente do meu patrão apaixonado. Ele não tira os olhos dela. Daqui a pouco o jantar será servido. Dessa vez contrataram um bufê famoso. A ocasião exige o requinte. Vou e volto da sala à cozinha dentro do meu uniforme de gala. Orgulhosa. Aos vinte anos de idade, vencendo a vida. Fiscalizo tudo. A festa da minha patroa tem de ser perfeita. Ela merece. Na ida o garçom esbarra em mim. Na volta ele passa a mão em mim. Quando essa festa acabar, vai começar outra no quarto do casal. Como sempre. Quando essa festa acabar, vão começar duas festas. Já combinamos o garçom e eu. Hoje ele dorme no meu quarto.
Meu patrão é corno.
Axiome VII: Quand une chose peut être conçue comme n'existant pas, son essence n'enveloppe pas l'existence.
Acabei de fazer as malas. Tive muito trabalho pra ajuntar tudo o que ganhei no doce lar. São quatro malas de roupas, duas de sapatos etc., três caixas com o enxoval lindo que a minha patroa fez pra mim, duas sacolas de bugigangas sortidas. Na bolsa, levo meus documentos, joias, dólares, caderneta de poupança, o caderno de capa marrom da minha patroa e um envelope gordo, que ganhei dela como recompensa pelos bons serviços prestados nos dez anos que vivi aqui. Eu venci. Oito cursos de culinária depois, lá vou eu. Vou embora porque quero, pedi demissão do meu cargo. Minha patroa entendeu que chegou a hora de me virar sozinha. Ela me abraçou e disse as portas desta casa estão sempre abertas, se você quiser voltar. Não vou voltar. Quero a minha casa. Com muitas janelas. O que eu gosto mais numa casa são as janelas. Há três anos o patrão parou de me procurar. Não valem de nada os bons conselhos das revistas femininas. Mudo como começou. Corno, gostoso, chato. Infeliz. Arrumei namorado, um dois três vários. Estou grávida. Minha patroa não sabe. Grávida de um, vou me casar com outro. Se for menina, vai ter o nome da minha patroa. Como se fosse minha mãe. Meu marido não sabe que a filha não é dele. Eu não sei que o meu marido é alcoólatra. É muita sorte.
Eu amo a minha patroa.
(Axiomes de Spinoza, L'éthique)
blinis com caviar, lagosta à thermidor e eu Bruno
e eu estávamos casados havia muitos anos. Vivíamos
a mesma vidinha, dia após dia, noite após noite. Cansada, resolvi tirar
umas férias. Uns quinze dias seriam suficientes para colocar os meus
pensamentos e minha vida em ordem, eu acreditava, queria acreditar nisso. O
ônibus abafado, as janelas emperradas e o solavanco me deixavam zonza.
Resolvi passar pra frente, havia um lugar vago. Quando tentava atravessar
a catraca, notei um par de olhos azuis me secando. Senti-me completamente
nua.Fiquei incomodada com aquele par de olhos. Mas ao mesmo tempo não
conseguia deixar de olhá-lo também. A pessoa que estava do meu lado
se levantou. O dono daqueles olhos ficou ansioso. Imediatemente ele
se aproximou e ocupou o lugar vago. Apresentou-se com certa desinibição.
Ele era tão alto que eu me senti pequena, quando dei por mim já estava
confortavelmente em seus braços e, sem perceber, já estava em seu apartamento.
Tudo muito rápido. No instante que ele começou a chupar e a lamber os
meus peitos entrei em pânico. O que estaria fazendo ali? Como deixei
tudo isso acontecer? Sou uma mulher casada e ele, um completo estranho.
Mas esses pensamentos duraram muito pouco e logo me entreguei às suas carícias.
Sentia calafrios por todo o corpo, parecia que estava sendo a minha
primeira vez, e em certa medida era. Minha primeira traição. Será
que finalmente eu iria conseguir atingir um orgasmo pleno. Daqueles
que o corpo extremece, o coração salta, a espinha sente um calafrio
e o sexo da mulher arde de prazer? Eu estava no limite da excitação,
quando ele gozou, solitário. Senti seu corpo ainda quente e suado se
afastando de mim. Caralho! Com um tesão destes e eu ainda não consegui
o orgasmo que me levaria às alturas. Apenas senti muito prazer com as
carícias e uma sensação meio mórbida por estar traindo o meu casamento
falido. Já
era muito tarde. Corri feito uma louca ao ponto de ônibus e acabei notando
que Leonel era quase nosso vizinho. Que loucura! Também, nesta cidade
tão grande, quem percebe os estranhos? Quase nunca cumprimentamos as
pessoas que moram em nosso próprio prédio. Ficamos mudos e sem graça
dentro do elevador. O nosso elevador tinha as paredes revestidas com
espelhos. Sempre que voltava do trabalho e estava deprimida, me sentia
muito mal dentro dessa caixa espelhada. Parecia que minha imagem se
mulplicava mais do que a refletida no espelho, e toda aquela multidão
de eus me observava, num silêncio fúnebre. Os cinco andares ficavam
insuportáveis e, quando chegava ao meu andar, não via a hora de a porta
se abrir. Saía correndo, deixando todos os meus eus pra trás. Chegando
ao apartamento, tomei um banho refrescante, me sentia outra. Bruno chegou
cansado e mal- humorado. Criticando os seus empregados e sua profissão.
No meio de tantas reclamações, comecei a imaginar o dia seguinte. Será
que Leonel me procuraria novamente? Será que gostou de transar com uma
mulher mais velha? Com tantas indagações, peguei no sono. No
dia seguinte ele me ligou pedindo pra encontrá-lo em um motel. Chegando
lá, bati devagar na porta e Leonel apareceu nu, com os cabelos molhados.
Nos abraçamos. Novamente não consegui ter um orgasmo. Tinha muito tesão,
porém não conseguia. O único prazer que sentia era vê-lo gozando em
mim, era saber que eu ainda podeira dar muito tesão a um homem jovem.
Enfim,
minhas férias acabaram, pensei que meu romance com Leonel também fosse
passageiro, no entanto, apenas trocamos os horários. Inventava mil desculpas.
Bruno não desconfiava de nada, ou, sei lá, talvez não quisesse desconfiar.
Às vezes, irritava-me a sua despreocupação. Mas o que importava? Nosso
relacionamento, que relacionamento? Será que não havia solução? Será
que ele também tinha uma amante? Dúvidas e mais dúvidas. Enfim, estávamos
tão acomodados em nossas vidas, que era preferível continuar assim. Com
Leonel eu me divertia. Ele sempre procurava novidades e me fazia surpresas.
Comigo nada acontecia, apenas o prazer de estar com um homem jovem e
cheio de vida. Agora eu andava nua pela casa, estava me sentindo muito
bem comigo mesma. Me sentia bela. E, diante do espelho, penteava os
meus cabelos longos. Bruno
chegou. Elogiou-me, dizendo que eu estava diferente: mais sensual. Jantamos
e ele foi ao escritório arrumar seus papéis para a manhã seguinte. Como
de costume, fui levar o seu licor. Fiquei sentada observando-o. Ele
também parecia preocupado, diferente, irriquieto. Estabanadamente, Bruno
derrubou o licor no roupão. Ficou nervoso, e eu, pra acalmá-lo, comecei
a beijar seu rosto. Sem perceber, estávamos nos acariciando. Tirei o
seu roupão. Ele beijava todo o meu corpo. Nunca me senti tão excitada
assim com Bruno, e ele, da mesma maneira, parecia louco de tesão. O
que estaria acontecendo? Será que ele havia descoberto? Não, não podia
ser. No entanto, entreguei-me por inteiro às suas carícias. Bruno
me pegou no colo e me sentou na mesa. Abriu as minhas pernas com vigor,
sua língua não parava. Estava excitada, úmida e querendo ser penetrada,
mas ele continuava, e acabei gozando. Gemi de prazer, Bruno não parava,
acariciava-me mais e mais, até que me penetrou. Numa dança ritmada,
deslizamos pela mesa do escritório. Sentia sua respiração ofegante.
Um calafrio percorreu a minha espinha, uma sensação de estar caindo
entre nuvens, a cabeça zonza, o escritório parecia girar, tudo parecia
estar fora do lugar. Ele, meio rouco, gritou que ia gozar, e, no mesmo
instante, pela primeira vez tive um orgasmo pleno, único. Antes de nos
separarmos, mordi seu pau com meus pequenos lábios, novamente sentimos
prazer. Sussurramos
alguma coisa e ficamos estendidos na mesa, olhando o teto. Não dissemos
uma só palavra. Éramos cúmplices daquela noite especial. Fomos pra cama
e dormimos abraçados até a manhã seguinte. Naquele
momento me senti culpada por traí-lo. Mas já estava consumado. Percebi
que essa noite especial não teria acontecido se não tivesse encontrado
a jovialidade do meu amante. Na hora do almoço, fui encontrar-me com Leonel e novamente transamos. Leonel passou a ser meu aperitivo predileto: blinis com caviar. Bruno, o meu prato principal: lagosta à thermidor.
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