edição 51 | julho de 2016 vertigem | outono | no osso
aparício fala de menas a nível de usucampeão
mas-tem-um-ca-ra-le-o!
aparício seu estrupício juro: inda morro disso
Perguntou meu preço e mandou que eu o envolvesse em filme plástico de embrulhar resto de comida. Ficou nu sem pudor algum do cheiro azedo de seu corpo e foi se encolhendo até ficar igual a um feto. Me pediu para começar pelos pés que já se aninhavam em suas nádegas grandes demais para pés tamanho 39. "O dinheiro fica no bolso de trás da calça, pegue na saída". E falou, falou sem parar porque quando parava vinha um zumbido no ouvido que chutaram enquanto ele soprava velas de aniversário. Era pequenino e precisava de banco pra enxergar a mesa. E caiu com o chute e se viu deitado num travesseiro de sangue e lambeu como chantilly. "Mamãe me beijou a testa e subiu com ele". Ele o colocava para dormir enfiando algodões em sua boca, e ria pra valer quando enfiava bolas de algodão em sua boca de dentes de leite garantindo que era assim que se contavam carneirinhos. "Cuidado com meus joelhos, são ásperos demais, não quero que o plástico se rompa". Sua mãe era bonita demais para que ele arregaçasse com tudo saindo por entre suas pernas, depois disso poucos a quiseram, ela dizia enquanto espalhava grãos de milho pelo chão e o fazia ajoelhar enquanto acariciava seus cabelos ou os cortava com faca porque dizia uma lenda que assim cresceriam melhor. Então aquele veio e ficou e ela parecia sorrir de um jeito que ele não tinha visto ainda a não ser sob a água do chuveiro quando ele a espiava através da cortina de peixes coloridos. "Eles nadavam pelo seu corpo e parecia que se afogavam na própria água quando o sentiam arrepiar de frio". Ele ajeitou as mãos em prece sobre o peito e me pediu que continuasse. O homem um dia acabou com seu pequeno oceano, arrancou tudo, levou para o quintal e tacou fogo. Gritou que nunca foi de se contentar com sardinhas. Ele conseguiu salvar um só, que usava como pingente já que os pelos de seu peito lembravam algas que sobreviviam em lodo. Ela, na última vez que foi doce, pegou cachos dos cabelos cortados e colou em seu peito e disse que isso era ser homem. Antes que eu envolvesse seu rosto, ele disse que finalmente havia entendido. Deixei-o ali e fucei seus bolsos. Havia mais do que o combinado.
©cintia ribas | "variações na paisagem" | museu da gravura de curitiba | 2015
I
Do alto do precipício Asas se pensando longas é certo que ela vai cair E se esborrachar
Mas se comporta Na lâmpada do pôr do sol Como mariposa Suicida.
II
Agora os dias são preenchidos de luz e linhas Desenhos que trazem som, textura, cor, forma e o teu nome Trafego pelas ruas em que não estás Com o meu corpo marcado, os meus pés feitos de caminhos que andamos Nas ruas em que não estás, a tua presença me acorda Em cada esquina, a tua presença que não dorme
Noutros tempos pensaria eu em tatuagem Como se o amor viesse de fora Mas é de minha carne povoada da tua Que a memória me desenha e me insere, finalmente Numa geografia
Faz calor, faz vento, faz aquele que gosta, o teu frio As folhas caem, mas não estou mais sozinha (E eu já não saberia de outro modo Estar viva).
III
Arrumei um jeito de querer ser outra Arrumei uma perfeição fora de mim Dentro de mim é só um começo Do que falha
Arrumei uma maneira de escutar seu osso Como as loucas ouvem capelas calcinadas Seu osso quer outra Carne
Eu tenho essa pele encardida Denúncia de bastardices, distrações Mas arrumei um jeito de querer ser Louça
Quebro a cabeça, boneca trincada Me leva pra brincar Me leva pra passear Menino.
Eu não vi o homem pisar na lua, um grande passo para a humanidade e uma pequena soneca para uma menina, numa madrugada de segunda-feira. Eu só vi outra esfera desafiar órbitas nos pés de Garrincha, que driblavam a lei da gravidade. Vi a rouquidão das noites se acabarem de manhã na garganta cheia de sambas de Adoniran. Vi Niemayer fazendo o cimento voar. Eu vi se amansarem os tigres diante da tristeza de Lupicínio Rodrigues. Vi Castilho se acabar num último voo sem bola e vi os dedos sujos de tinta dos loucos de Nise. Vi a ternura de Che despencando numa fotografia e endurecendo de vez nas mãos dos vivos-mortos-vivos bolivianos. Eu vi Candeia sambar com Frida Kahlo numa cadeira de rodas e fazer a favela ficar de pé. Vi Muhammad Ali ensinando a borboleta a voar, a abelha a picar e transformando seu sorriso em slow motion. Vi o leve aceno — seria de adeus, de olá? — da composição que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade. Vi o cego perguntar como era o transatlântico que navegava pelos sonhos de Fellini. Vi quem acha viver se perdendo e batuque ser um privilégio. Vi o exílio dos bondes e das mulheres. Eu vi Celso Blues Boy aumentando que isso aí é rock and roll e vi Zico, Falcão e Sócrates bailarem como toureiros e sangrarem como touros na luz de Espanha. Vi os expoentes da minha geração morrendo de rir, destruídos pela lucidez, vi poetas de letras de câmbio e vi a África escalando as cordas vocais de Clementina. Vi o Abaporu me tomar pela mão, me levar pro susto do fundo do mato virgem. E lá eu vi Macunaíma, que não para de nascer, vi as bocas de Chico e Caetano e Gil nos cantarem e se beijarem e vi as bicicletas e os carretéis de Iberê visitarem a minha infância, onde vive a família de papel de Monteiro Lobato. Vi Pasárgada e outras terras enfeitadas com as bandeiras que Manuel inventou e vi Maiakovski e Ary Barroso se encontrarem por lá pra botar fogo nas camisas amarelas. Vi Carlitos indo ao cinema, as pessoas do Fernando ouvindo versos, Joe Cocker perdendo a voz, Chacal pedalando rimas e Di Cavalcanti pintando seu adeus através dos olhos-lentes proibidos de Glauber. Vi o MAM em chamas chorar tintas e seus rolos de fumaça cobrirem La Moneda. Vi a morte cantar parabéns pra Chico Mendes na Candelária e em Vigário Geral, vi Nelson Rodrigues na coxia com os bolsos cheios de pedras, vi as marilyns de Andy Warhol pintando dólares e vi Truffaut dormir bêbado na Praça Tiradentes, sorrindo para os acordes de Nelson Cavaquinho. Vi a barriga de Leila Diniz, a barriga de Chacrinha e a fome sem nome roendo o umbigo do mundo. Eu vi hippies, cocotas, punks, darks, rappers, grunges, clubbers e outras grifes penduradas nas vitrines das liquidações da primavera de Praga, enquanto os pedaços da estátua de Lênin desciam lentamente o rio Moldava. Eu vi o tempo aboletado nos telhados de Paraty. E de lá eu vi a lua continuar sua órbita, comandando marés e esquecida dos homens.
a voz depois move os lábios olhos sobre vivos e uma planta debaixo do queixo é um diabo se perder ruído de pés invertidos a pupila talvez cresça vidros vibram inaudíveis nervo óptico excede a latência dos dias um pavor crônico de ver a própria morte.
Inaugurei sentimentos e entreguei-me ao mergulho Pássaro que sou.
Recolhi as estrelas dos teus olhos Universo que és.
sendas
tocar as formas do fogo
raptar o relâmpago
tecer no verso, a vertigem
amar a palavra em tua boca
deserto
cântaro de vertigens cordilheira de lábios covil de espáduas
o corpo, afiado papiro caligrafia volátil de silêncio e neurotoxinas
eu caço escorpiões na epiderme
lince
amor sulcado de cólera energia escura das pedras
anjo e víscera avança, destroça
a língua aguça o corpo epilético da selva
caninos celebram áurea miséria da carne
buquê de carcaças
mórula
setembro sangra em seus lábios
a bleeding bird a bleeding bird
dark and divine
meu nome, um precipício tatuado em seu pulso direito uma serpente palíndroma esmagando seus ossos
como uma imagem de Jodorowsky rapina vísceras ácido nas pupilas
©cintia ribas
nomorro
a paz é triste atônita surdez depois do seco estampido
passos curtos e cambaios a mãe recolhe do varal a roupa que o menino não vai mais vestir
não estivesse ela aquela hora limpando a festa suja na casa que não é sua longe de sua vida real e do seu menino adorado teria gritado: — vem pra casa, filho! tem polícia no morro!
céu azul de abril guarda desde sempre este fatídico e recorrente encontro entre a cabeça do menino e o projétil fatal do assassino fardado
sutra
chove torrencialmente nem por isso os homens se odeiam menos corações batem como mísseis a chuva não lava a alma nem a parte de carne que a reveste
mais um navio afundou o que dizem as notícias? o mar quis engolir os desgraçados do mundo levá-los para o fundo abismo onde enfim dormirão em túmulos-casulos embalados pelo mover choroso de ondas
não sei ao certo de quem me apiedar as palavras se formam no estômago e são vomitadas em bueiros-olhos ao se infiltrar no corpo disparam bombas de reação irrompem-se violentos discursos de paz
é natural que todos morram é essencial que todos se matem
de que é feita a corrente que aperta o pescoço? controle, opressão, vigilância. alimentados diariamente com parafernálias do consumo babamos, gritamos, sedentos de desejos a menos que a chuva nos invada de silêncio será impossível somente morrer
romantismo: esse mal
aquele lugar do deserto onde o Pequeno Príncipe foi picado por uma serpente é hoje um oásis onde brotou uma única rosa idêntica à que enfeitiçou os olhos do rapaz
guiadas pelo sibilar gentil das mães que embalam filhos insones com a história de um moço em fuga estelar numa revoada de pássaros, adoecido de paixão por não suportar viver perto da rosa que o desprezava às vezes, noite cerrada, víboras passeiam os ventres na areia e com suas línguas túrgidas de veneno regam raiz e caule da rosa
certo é que só o elefante dentro da jiboia sabe o tanto de dor e desespero essas páginas encerram: planetas habitados por homens vis, aviões em pane, raposas lacanianas, seduções da forma: a rosa, a rosa, a rosa
e um coração
delirante, carregado de vertigem pela vermelhidão, exuberância
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