sete vidas
alice barreira
1. bamba
Ela nascera no circo, filha de um casal de acrobatas. Desde pequena, os pais a incentivavam a seguir seus passos. Mas a menina não gostava daqueles passos e chorava cada vez que o pai ou a mãe, brincando com ela, tentava aproximá-la da linha acima do chão.
Os pais achavam que era apenas uma questão de tempo para a filha parar com aquela cisma, mas só mesmo sob ameaças de castigo e pancada a menina cedeu e se iniciou na corda bamba.
E então chegou o dia de sua estreia. Seu nome no cartaz, a roupa brilhante, as sapatilhas, tudo era novo. Menos o sentimento que continuava carregando.
Subiu a longa escada, parou em frente ao arame, respirou fundo e foi caminhando, passo a passo, até a metade dele. Ali tornou a parar, respirou fundo três vezes, enquanto a plateia inteira prendia a respiração, e deu a pirueta. Um oh de admiração percorreu toda a lona. Mas em vez de pousar de volta na corda, a menina deu outra pirueta no ar, causando mais admiração ainda. E em seguida mais uma e mais uma e mais uma. E seguiu dando piruetas no ar enquanto a plateia, seus pais e todos no circo olhavam imaginando até quando.
2. sim
Todos os dias, um pouco depois das seis da tarde, ela vai até o quarto, abre o guarda-roupa e tira de lá o traje, que veste com cuidado. As meias finas, o longo vestido armado, as mangas de renda, os sapatos também brancos, o véu e a grinalda.
Então senta-se em frente à janela e aguarda. Quando os sinos no campanário da igreja em frente tocam as sete horas, ela se levanta e, feliz, joga o buquê pela janela do oitavo andar.
3. ouro
Passou a manhã com a manicure da equipe, fazendo a preparação, desde a massagem nos dedos e nas cutículas até o esmalte nas cores da bandeira. Está mais nervosa do que de costume, e não é para menos, pela primeira vez representa o país numa olimpíada. Terá sete concorrentes. Serão, daqui a 35 minutos, cinco homens e três mulheres. É o primeiro e único caso de prova mista na história olímpica. A prova de roer unhas sem parti-las. Ela agora olha suas longas unhas e sonha que está no pódio, mostrando ao mundo sua medalha de ouro, segurando-a bem firme com os dez dedos e suas unhas já roídas com perfeição e em tempo recorde.
4. trajeto
Da praça General Osório ela pega a praia, vai andando pela Vieira Souto até a altura do Jardim de Alá, sobe dois quarteirões de volta, segue pela Ataulfo de Paiva, chega na praça Antero de Quental, dobra na Bartolomeu Mitre, passa pela praça do Jóquei, continua toda vida pela Jardim Botânico até rua Humaitá, em seguida desce a Voluntários da Pátria, dobra à direita lá embaixo pra pegar a rua da Passagem, atravessa o túnel Novo, a Barata Ribeiro toda, cruza o outro túnel, entra logo na Sá Ferreira, sobe a Bulhões de Carvalho, dobra na Antônio Parreiras, depois na Jangadeiros e pronto: está de volta. Mas não encontrou ninguém.
5. o destino das espécies
Acordou no meio da noite com aquele estranho ruído. Levantou-se, olhou tudo em volta no quarto, na sala, na cozinha e voltou para a cama. O ruído permanecia. Aquietou-se e ficou ouvindo por muito tempo, até decifrar aquele som. Eram os cupins roendo o forro do telhado. Demorou um pouco até pegar no sono novamente.
A partir dessa noite era difícil dormir. Ouvia os percevejos indo e vindo pela casa, as baratas comendo migalhas, as asas dos insetos que batiam e batiam por toda a vila.
Foi a um psiquiatra, que lhe receitou comprimidos para dormir. Mas nem aumentando a dose o sono vinha. No máximo cochilava e logo era acordada pelas formigas sempre carregando alguma coisa, pelo zumbido dos mosquitos, o tecer de pequenas aranhas, a desorientação das moscas, os círculos das mariposas, o voo vaidoso dos besouros e seu baque nas paredes.
Até que resolveu tentar se comunicar com os insetos. Foi reproduzindo os sons que ouvia e teve a impressão que, aos poucos, eles se aproximavam. Ansiosa com a situação, contou tudo ao psiquiatra e ao chefe. Ambos foram da mesma opinião: estava ficando louca. Ela devia, em primeiro lugar, dedetizar a casa. E depois encarar um tratamento demorado.
Mais tarde, em casa, ela perguntou a vários insetos se estava louca. Eles disseram que não. Passou a noite em claro e, ao amanhecer, tomou a decisão. Largou o trabalho e passou a aprender com as aranhas como produzir os fios para o seu casulo.
6. a day in the life
Eleanor dorme no sofá da sala e, na mesinha ao lado, seu celular toca. Bom dia! Mas bom dia mesmo é no banho com o novo Refreshing Up, o sabonete que traz felicidade.
Eleanor toma seu banho, se veste e sai para o seu trabalho. No escritório, liga seu computador e se põe a ler os relatórios, até que seu celular toca. Hum, que fominha! E tem coisa melhor no almoço do que a pizza com Muzza-Muzza? Duvido. Muzza-Muzza: a muzzarela da alegria.
Eleanor desce as escadas e hesita entre todas as pizzarias da praça em frente ao seu trabalho. Finalmente se decide pela da esquina, almoça e ainda leva uma fatia para quando sentir uma fominha.
No final da tarde Eleanor se surpreende parada, olhando pela janela a chuva que despencou lá fora. Celular. Nossa, parece que o mundo desabou lá fora! Mas aqui dentro você fica seca e segura graças à superproteção de Penta-Fix. Dá até vontade de sorrir, não dá? Eleanor acha que vai dar sim, assim que ela acabar de colocar seu absorvente, no banheiro do escritório.
Com a chuva, o trânsito fica ainda pior e Eleanor respira aliviada quando entra no elevador do prédio e aperta o seu andar. Assim que salta, ouve o seu celular, pega o aparelho na bolsa, junto com as chaves de casa, e, enquanto abre a porta, fica sabendo que a noite que tem "Eu Ganho" é um show pra quem participa e pra quem assiste.
Dessa vez Eleanor tem que concordar. É um show mesmo, ela pensa e se atira no sofá com um dos seus controles remotos na mão, até que o sono que já começa a rondar se assusta com o celular. Boa-noite-Muzza-Muzza!
Eleanor acaba de comer o pedaço de pizza que sobrou do seu almoço. Já nem ouve a TV mas ainda mastiga. É o seu celular quem torna a lhe chamar de volta. Ah, minha caminha macia e meus sonhos com Lexvotril! Eleanor desiste de botar sua camisola e já chega na cama dormindo. Ah, seus sonhos.
7. o veredito
Há três anos saíra o veredito: condenada à morte na forca. A sentença se cumpriria em três semanas. No dia da execução, foi acordada na hora marcada, um pouco mais cedo do que de costume. O café já estava na mesa e tudo funcionava com perfeição, como sempre. Foi levada para o local da execução e, no caminho, começou a receber todas as informações referentes ao enforcamento. Quantas pessoas já haviam sido enforcadas ali, que tipo de crime a maior parte delas cometeu, quanto tempo o cérebro ainda vive após o corpo despencar, que reações físicas e químicas o organismo detona antes, durante e até mesmo após a queda. Finalmente chegou ao cadafalso e foi preparada para o último gesto, ainda com mais informações: de que material é feita a corda, qual o tipo de madeira usada no patíbulo, quantos carrascos já passaram por ali. Foi até mesmo apresentada ao seu próprio carrasco, embora já estivesse vendada e com a corda no pescoço. O homem puxou conversa, trocaram algumas frases. Por fim seguiu-se um profundo silêncio e ouviu-se o ruído metálico de uma alavanca sendo acionada. E tudo se apagou.
Acordou na enfermaria, onde lhe informaram que houvera um problema técnico com a alavanca e sua execução falhara. Ela desmaiara com certeza por toda a tensão envolvida. Com um pedido de desculpas do diretor do presídio em pessoa, foi reconduzida à sua cela e informada que o procedimento seria refeito na manhã seguinte.
E realmente na manhã seguinte, ela foi novamente acordada um pouco mais cedo do que de costume e mais uma vez passou por todo o ritual, com novas informações e novos dados sobre todo o processo. Até a alavanca ser novamente acionada.
Mais uma vez acordou na enfermaria e foi-lhe explicado o novo defeito, desta vez na polia que movimenta a corda. Mais uma vez o diretor se desculpou pessoalmente e ela retornou à cela.
Passaram-se cinco meses de execuções diárias e malsucedidas. Ela já conhecia de cor todo o funcionamento da forca, já cumprimentava o carrasco pelo primeiro nome e perguntava pela mulher e pelos filhos dele. A única surpresa eram os infindáveis defeitos, sempre um diferente do outro, chacoalhando dentro de sua cabeça.
Até que ontem, pela primeira vez, os guardas se distraíram e a levaram de volta à cela sem retirar o cinto que lhe segurava a roupa de execução. E assim que trancaram a porta, ela se enforcou nas grades.
denúncia
ana criolina
você vai morrer mesmo
ele disse
esse verme que carrega no útero
ele disse
seremos todos infelizes
ele disse e eu fugi
da cidade cinza
mochila maior que o corpo
bagagem no bucho
sem olhar pela janela do ônibus
sou uma mulher de sorte
ele disse
por: eu o tive
não, ele me teve
ele disse
e estamos todos infelizes.
festa
ariana zahdi
Nem antialérgico hipnótico benzodiazepínico álcool opioide anestésico Paulada nos miolos queda do sexto andar atropelamento Nada tira a vigília destes olhos escancarados sobre o mundo Sobre a cama grande e repleta de tua ausência barulhenta Que não me deixa dormir
Nada fecha meus olhos pesados
Cansados
Presos no tempo e distância que já calculo há não sei quanto
Cante. Alguém cante uma canção bonita para eu dormir. Uma melodia que me transporte. Daqui para mais adiante. De agora para mais um pouco à frente.
Aqui dentro tudo tamborila e não me deixa fechar os olhos, longe que estão meu pensamento e minha alma.
Sorte a minha: aqui dentro toda memória é uma festa. Teu corpo, minha casa e descanso.
3 poemas
anna apolinário
quaerens quem devoret*
o coração dela é ninho
de vespas
das mais venéficas
até a imponente
tarântula
sucumbirá
o amor, ela devora
ou serve em banquete
os convidados enfastiam-se,
fálicos
não demora e são eunucos
da viúva negra
*buscando a quem devorar
desejo
tornei-me casulo
o amor teceu uma face
silenciosamente
o ventre intumesceu de vida
papoulas não mais perturbam
uma febre trouxe-me a dádiva
nua ao espelho, comovo-me
placentária, guardiã, ancestral
sou casa de dois espíritos
destruição
os olhos do ódio são dourados
a língua víbora lasciva
é doce a cicuta oferecida pelo amante
sou um corpo que tomba entorpecido
o ventre arde como se amasse o veneno
o anjo descostura-se do céu quente
não mais seda, agora apenas víscera
doença que despenca
olhos estéreis contemplam
o início da aflição
pequena flama nascente
entre as pernas
sob a luz áspera da manhã
fabrico esta morte
um lépido toque de mãos
e os pelos pubianos cintilam
dentro, um grito rubro se agita
violência rasgando o veludo
agora se esvai de mim
terrível lótus sanguínea
pequenino corpo que se tornou rio |