edição 52 | outubro de 2016

uma mulher de sorte | fome | placenta

 

 

 

10 poemas

norma de souza lopes

 

 

ser amada

 

 

ser amada

ter esquecido

a torneira aberta

por duas horas

ter inundado a pia

o banheiro

a casa

e ainda ser amada

 

ter usado aquele

ridículo meião

vermelho

e ainda ser amada

 

ter enlouquecido

por sete vezes

seguidas

e ainda ser amada

 

peneirando, é só isso que a gente quer

 

 

 

presente

 

 

hoje não precisa, amor

não levanta bandeira hoje

esquece o movimento das ruas

perdoemo-nos por querer

um dia inteiro só para nós

 

hoje não precisa, amor

fechar os olhos enquanto me beija

dizer coisas que façam sentido

ignora os trovões cortando a pele

deste céu sem paixão de junho

 

hoje não precisa, amor

dispensar sua sombra

pode trazê-la contigo hoje

nosso amor está guardado

entre páginas bem fechadas

dum livro do drummond

 

vamos de mãos dadas hoje, amor

 

 

 

risco

 

 

és uma mulher de sorte, pode amar qualquer coisa

um gato, um modo de cozinhar o arroz, de ocupar a cama, uma voz, um homem

há que se viver o risco de amar e pôr de lado a solidão. o amor não permite solidão

à exceção do amor a si mesmo. mas isso já sabemos que não se aprende sem um espelho amável

amar tem um ponto de saída e de chegada, outro risco

pode ver-se depois de uma caminhada, corrida, escalada diante de um prêmio incompleto

um gato egoísta, uma cozinha aprisionante, uma cama dura, uma voz falsa ou um homem fosco

nada de montanhas e cachoeira, nada de bilhetes na gaveta de roupa íntima ou carícia nos pés

você poderá então passar anos, décadas, à espera de paixões arrebatadoras

que te façam flutuar num voo com rota por semanas, até voltar ao seu reino incompleto

ou rasgar definitivamente o mapa a fim de armar pouso em outra pista, ela também incompleta

 

 

 

norma jeane mortenson

 

 

uma ânfora negra

onde depositam flores

uma placa marrom

e letras douradas

marilyn monroe

1926 - 1962

 

um pensamento pueril me atravessa

26 é o inverso de 62

e há o traço

ah, que sorte seria

ter dançado

com norma jeane mortenson

sobre esse traço

 

 

 

de mim ninguém sai com fome

 

 

enquanto os algozes da república

seguem perpetuando campanhas eleitorais

e golpes de estado no jornal que uso

para limpar os vidros da janela da sala

abraço pássaros, borboletas

lobos e carpas

de mim ninguém sai com fome

 

o ódio borrifou

gotas de ralph lauren

em pulsos armados de taças

e eles as desperdiçam

sendo fotografados

com mendigos nas calçadas

 

não é preciso dizer

a palavra lâmina

para saber o corte

preparo coquetéis molotov inócuos

por receio de incendiar os jardins

sem culpa dos edifícios de luxo

 

eles acertaram em cheio

nesse buraco vazio

das torcidas organizadas

mas ainda tenho esperanças:

nem toda palavra encarna

 

 

 

notas de ressentimento

 

 

— minha cara

quero pedir-te uma coisa

não se mate de novo

[como é o seu costume]

 

— e o que faço com a cobra

que morde minha nuca

e sussurra "és a pior de todas"?

 

— o silêncio: é preciso ser forte

e cultivar o silêncio

esculpir sentimentos sem palavras

 

— desde a visão daqueles homens

sem casa na calçada

um talho aberto no corpo da cidade

trago os olhos cristalizados pela dor

 

— pois tente admirar

os pés de pássaros no quintal

o jardim secreto escondido na alma

 

— lágrimas correm no meu rosto

tal qual sementes secas caindo

não me reconheço no espelho

 

— caríssima, esqueceste de cuidar

que és tua melhor amiga

e chora diante do prato cheio

alimentando esta fome recorrente

 

— amigo, posso me apoiar só por hoje

em vossa fé no mundo?

amanhã me levanto, eu juro

e faço sozinha a colheita

 

 

 

pagã

 

 

herdei pouca

ou nenhuma mitologia

de minha mãe

 

umbigos

unhas

cabelos

dentes

eram arrancados

e jogados fora

(sem rituais)

 

sagrado para mamãe era a fome

 

 

 

variações para a mesma solidão

 

 

sete variações da mesma resposta

para a pergunta

seu marido não vem?

 

está trabalhando

foi visitar a mãe

está cozinhando

não gosta de sair

não vai à casa de ninguém

chora por descascar cebolas

morreu na contramão atrapalhando o tráfego

 

uma ambição era ser

como essas mulheres

de face circunspecta

refletindo segredos

 

ou ser como essas belas

que por qualquer desamor

tornam-se anoréxicas

pálidas e magras

 

eu não

sou um livro aberto

boca escancarada

a mim a rejeição causa fome

e por qualquer prato de carne

abro exceção à dor

 

demorou um século para eu ser sozinha sem-vergonha

 

 

 

ouço

 

 

ouço o som da água

na palavra placenta

e ele me ensina

a não derramar

nem mais uma lágrima

pelo que não pode

chorar por mim

 

 

 

inexorável

 

 

chega um dia que resta a uma mulher

amputar a vontade gangrenosa

de ser tudo e todos no mundo

 

chega um dia que resta a uma mulher

ir parindo a si mesma vagarosamente

até pôr-se completamente ao avesso

 

chega um dia que resta a uma mulher

mastigar suas memórias

como uma cadela à sua placenta

 

chega um dia que resta a uma mulher

renunciar aos companheiros de viagem

raposas que devoram seu o ventre

 

chega um dia que resta a uma mulher

aceitar a triste tarefa

de ser assopradora de ossos

 

 

 

 

©guy bourdin

 

 

 

na boca da memória

priscila merizzio

 

 

Maria me criou saboreando polenta no tacho mexida com colher de pau no fogão a lenha; pinhão estalado na chapa e depois aberto a pedradas na calçada; quirera com carne de porco e salada de folhas com vinagre de vinho; doses de cachaça quando a melancia dava dor de barriga; mate com leite fervido no açúcar com canela; para dormir, chá de capim-limão colhido na hora, melissa e folha de maracujá as bolachas de polvilho e os sequilhos eram guardados em latas redondas nos armários sobre a pia da cozinha ; catando butiás das duas árvores do quintal, colocando seus coquinhos para secar ao sol, depois quebrando-os como minúsculos caracóis. Com ela, aprendi a matar galinhas, naquela época, sem sentimento de culpa: nós a deixávamos de ponta cabeça, pendurada pelos pés, degoladas, com o sangue escorrendo na bacia, então fervíamos o corpo para soltar as penas; cozinhávamos canjas com os miúdos. A predileção de Maria era lambiscar os pés cozidos da ave, sugando suas unhas, mordiscando a carninha dura.

Quando algum parente vinha pousar em sua casa, ela forrava a geladeira com as comidas prediletas da visita. Nata fresca, coalhada, creme de leite caseiro, sagu de vinho branco, canjicas e marmeladas com leite de vaca. A louça da mesa era descombinada quando havia mais convivas que o normal e sob a toalha de renda e os jogos americanos bordados por Julia, sua filha mais velha, havia sempre uma modesta toalha de plástico. Na infância, para decorar o centro da mesa, cabia-me sempre a função de colher folhagens do jardim, rosas amarelas, beijinhos, flores das varas de marmelo — tantas vezes fui lanhada nas canelas e nas costas por ser uma menina enxerida e respondona. No verão, Maria, suas comadres, as parentas e eu íamos nos refrescar com os pés no chão no piso gelado e cor de ocre da área de sua casa. Entre mil folhas de samambaias, puxávamos as cadeiras e banquinhos feitos de palha para chupar picolés coloridos ou sorvetes que eu comprava a quilo na sorveteria do bairro. Em tardes normais, comíamos pipocas doces ou bolinhos de chuvas com chimarrão pelando a língua; havia sopa de biju com ovos e muito cheiro verde ou o biju preparado como cereal ela sabia exatamente como fazê-lo do jeito que eu gostava: uma papa enjoativa de tão doce. Geralmente, tinha leite condensado e caixa de bombons para comer enquanto assistíamos juntas à novela antes de dormir. Quando sentíamos fome fora de hora ela sugeria que fritássemos ovos caipiras. Perguntava sempre se eu os queria com a gema mole ou a gema dura. O vinho tinto era muito doce e encomendado com o padre Viturino; o macarrão caseiro era feito pela vizinha, dona Ana, e Maria gostava de servi-lo ao molho de sardinhas e cebolas. À noite, o queijo endurecido na pequena geladeira era ralado sobre a sopa de agnolini caseiro.

Lembro-me de haver dezenas de cabeças de alho e de cebolas nas comidas, cortados com a faquinha favorita de Maria, que ela amolava semanalmente junto com todas os outros talheres da cozinha. Também, assistindo à televisão, descascávamos laranjas doces colhidas do pomar em vasilhas de alumínio: ela estirada no sofá de couro com o rosário nas mãos e eu sentada na poltrona mais próxima. Normalmente, havia sobre a mesa uma fruteira carregada de frutas e cachos com bananas bem maduras, pois ela gostava de comê-las mornas e moles; uma despensa cheia de compotas de chimias feitas com melado (abóbora com cravo, abacaxi, morango, figo, maçã, goiaba). Ainda na despensa, salames secando, pilhas de queijos, farináceos diversos, conservas de cebolas roxas e pequenas iscas nas ratoeiras, para pegar os ratinhos ladrões — ela não punha veneno ou cerdas mortais na ratoeira, pois não queria matá-los, apenas tirá-los e jogá-los longe, de modo que a caça aos ratos seguia perpetuamente em virtude do bom coração de Maria. Acredito que, no fundo, ela ansiava que os ratinhos corressem para a casa de vizinhos menos cândidos. Acontece que os animais se comunicam entre si.

Para as jogatinas de tranca, crôstolis com açúcar e canela e ela reclamando "cruzes do céu" a cada vez que eu ou minha mãe batíamos e gritávamos que era nossa vez de pegar o morto — nós duas o pegávamos com grande alarido e dávamos a deixa para Maria clamar as cruzes celestes e nós três ríamos como bobas dessa cena teatral bem decorada — ela fazia a cena da católica estupefata, e nós, das fanfarronas. O fogão a lenha era aceso no inverno com as toras de madeira que ela cortava com o machado e armazenava no caixote de madeiras próximo à ventarola da cozinha, onde, aos três anos, me colocou dependurada para ver um eclipse lunar. As janelas do casebre eram protegidas com telas verdes para amenizar o calor das noites quentes, driblar os pernilongos e permitir a célebre entrada da claridade das estrelas e da lua. Quando eu era atacada pelos insetos, ela vinha atrás de mim com o preparado natural de folha de bananeira, álcool e outras ervas, que acabavam com a coceira e não deixavam criar tanto caroço, por eu ser alérgica. Certa vez, tive queimaduras tomando sol no clube e ela besuntou a pele do meu corpo com creme de coco, leite, babosa e outras especiarias e me embrulhou em folhas de bananeira. Ordenou que eu dormisse daquela forma, para apressar a cicatrização. Maria conhecia pequenas simpatias e receitas caseiras para curar as moléstias do dia a dia. Era uma rezadeira fervorosa e quase imbatível. Fui criada também com as roupas lavadas por sabão artesanal, feito por ela. Rezando terços e novenas diante de velas também feitas por ela — as velas eram moldadas em tubos de encanamento, que Guilherme, o primogênito, providenciava, e o sabão era batido em velhos baldes de misturar cimento de construção. Cresci na presença de muitos santos e no espírito de respeito e afeto pela natureza. Transitavam pela casa de Maria muitos mendigos, que almoçavam em sua louça. Os gatos de rua sorviam leite embebido em pão nos pires do enxoval de seu casamento com Jango, embora tenha me contado que a grande paixão de sua vida se chamava Bernardo. Por acaso, o nome do primeiro rapaz por quem fui apaixonada. Descobri sua história de amor pelos seus olhos espantados, ao saber que a caçula de sua temporã andava sonhadora e desabrochando por um moço com o mesmo de seu bem-querer. 

Sua casa era antiga, de madeira, simples, e ela recomendava que não tomássemos banho enquanto estivesse relampeando e, também, que não dormíssemos em roupas de cama "xujas".Ordenava que eu não a judiasse voltando tarde das festas, pois tinha cuidado e ciúme de mim. Dizia com um sorriso tímido: "tenho ciúme que alguma coisa de ruim aconteça com você". Todas as manhãs, antes de eu ir para a escola, o café estava servido na mesa, o pão caseiro quentinho com manteiga macia, que ela deixava amolecendo durante a noite. E as chimias transcendentais. Nos dias de chuva, pedia para que nosso vizinho taxista me levasse à aula e colocava em minha pasta uma maçã enrolada em um guardanapo de papel. No inverno, forrava meu velho par de All Star com o jornal da igreja. Acordava-me de madrugada quando eu precisava ir às consultas no postinho do bairro. Eu sentia todo o seu amor, e ele me servia de escudo contra bullying que eu sofria. Por amor, havia me autorizado a comprar guloseimas na mercearia e pendurar na conta — e eu comprava cigarros pensando ser escondido. Ela, em seu imenso carinho, sabia que eu, tão menina, já fumava e me aventurava na companhia de outros adolescentes réprobos. E se contorcia de desgosto por isso. Meu nome foi murmurado com pesar e preocupação durante muitos anos, nos confessionários, santuários e genuflexórios.

Ela levantava bem cedo, antes de o sol nascer. Ligava o rádio, acendia o fogo, preparava o mate, passava o café, esquentava o leite. Gostava da solidão, de falar ao telefone e de escrever cartas aos santos, filhos e parentes distantes. Ia à missa todas as tardes com suas amigas, outras senhoras como ela. Jamais usou calça comprida. Fazia limpeza de pele e as unhas toda semana. Recebia as mulheres do salão em sua casa, aos sábados. Não saía de casa sem sua bolsa e, dentro dela, havia sempre a chave de casa, uma garrafinha de água mineral, sua máquina fotográfica com filme de 36 poses, uma cadernetinha de telefones, água benta, o remédio de pressão, caneta, bloco de notas, os óculos de grau e folhetos de orações. Um de seus programas favoritos era colocar o chapéu de palha para varrer com a vassoura feita de galhos, pelo próprio punho. Varria o pátio da casa e a calçada, pois assim ela podia se encostar no baixo portão pintado de azul para prosear com a vizinhança e se inteirar das novidades. Quem fosse visitá-la não podia ir embora antes do almoço de domingo. Isso seria um imenso desaforo, afinal, domingo era dia de abrir as duas grandes portas da cozinha e levar a mesa para a área, onde a família se apinhava para comer frango assado do mercadinho, costela assada no fogão a lenha, beber Coca-Cola, Fanta, limonada feita de limão-rosa do quintal, e fartar-se com pudim de leite com ameixas, de sobremesa: ai de algum vizinho passar por ali e não entrar para provar alguma coisinha. Ai de algum vizinho olhar torto para os pedinches que ela permitia que se juntassem à mesa.

Havia muito chá de boldo crescendo nas floreiras para sarar as disenterias todas, e pinga que eu furtava da geladeira para as doenças imaginárias. 

 

 

 

 

 

 

hell's kitchen, the new book on the table of

roberta silva

 

 

risoto de camarão

 

 

Ingredientes:

- Arroz

- Camarão

 

Modo de Preparo:

- Junte os ingredientes

- Sirva

 

Acompanhamento:

- Antes só

 

 

 

coc au vin

 

 

Ingredientes:

- Coc

- Vin

 

Modo de Preparo:

- Junte os dois

- Sirva

 

Acompanhamento

- Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain

 

 

 

macarrão ao molho de cogumelos

 

 

Ingredientes:

- Macarrão

- Molho

- Cogumelos

 

Modo de Preparo:

- Junte os ingredientes

- Coma

 

Acompanhamento:

- Lucy in the Sky With Diamonds

 

 

 

almôndegas recheadas

 

 

Ingredientes:

- Almôndegas

- Recheio

 

Modo de fazer:

- Junte os dois

- Sirva

 

Acompanhamento

- A Dama e o Vagabundo

 

 

 

sopa da vovó

 

 

- Tenha filhos

- Vá à casa de sua mãe

- Espere-a fazer a sopa

- Tome

 

Acompanhamento

- Eu avisei

 

 

 

 

 

 

1 poema

suzana bandeira

 

 

fome

é o que se come:

 

pera, sólida

rastro d'água

corpo nu.

 

a fome

fosse

aguardente

que te molha

a treva.

 

 

 

 

 

anagapesis

silvana guimarães

 

 

menos que um corpo mais que uma coisa

ser um girassol onde nunca chove

ser o que eu quiser, baby

 

não é a solidão é mais que a solidão

o que me livra dessa espécie de amor

que me feriu e me fez ferir

 

nunca mais seu esperma a trofosperma

alimentando outras vidas com a minha

pode espernear: mon coeur mis à nu

 

lá fora passa o carro da pamonha

e o moço grita pelo alto-falante:

os deuses estão mortos

 

na vitrola o disco arranhado

naquela parte em que a voz

implora let me try again

 

 

 

 

©guy bourdin

 

 

 

2 poemas

tatiana alves

 

 

tapeçaria

 

 

Penélope tece o bordado

Tece

Destece

Tece

Destece

Desce

Padece

Entristece

Adoece

Envelhece

Fenece

Amortece

Enlouquece

Anoitece

Amanhece

Amadurece

Rejuvenesce

Cresce

Esquece

E desiste de esperar por Ulisses, que no fundo não a merece.

 

 

 

noite vulpina

 

 

Sol e Lua entrelaçados,

Delírios de embriaguez.

As entranhas se revolvem

Numa fome implacável.

O estômago pode ser enganado,

Mas a alma, não.

Ela é esperta, astuta, raposa,

Com contornos que se redefinem ao luar.

Estão verdes, ela grita.

Deseja as uvas mais do que a vida.

Raposa grávida de luar

Prenhe de insensatez.

 

 

 

 

 

 

 
 
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