edição 53 | abril de 2018

assassinato | circo | ontem

 

 

 

temporã

adelaide do julinho

 

 

rolinha lá fora está dizendo:

— fogo pagô, fogo pagô, pagô

 

rolinha, rolinha, minha cantiga é a mesma

e mais triste com a outra rolinha, a outra

 

 

©diane arbus

 

 

cípria selvagem

adília do rego castro

 

 

Te exponho ao ridículo

e voltas aos meus pés,

sou a timoneira da lona

caiada, aquela que rasga

seu sono desfeito em

lágrimas, a bilheteira

sádica que não dá troco

aquela que raspa o salto

no chão quando pedem

silêncio, você um trapezista

claudicante, vencido, um zero

na noite fria do circo, um

capacho pro meu capricho

 

 

 

 

 

2 poemas

anna apolinário

 

 

Um grito devasta o quarto. Olhos atônitos. Urros, gestos abruptos. Combate. Furiosas falanges. Um golpe no cerne. Um berro acutilante. "PUTA PUTA PUTA". Fissuras. Estalos. Mãos e nervos. Crepitações. Imagens. Dilacerações. Estilhaços. Silêncio. A dolorosa nudez de um corpo mutilado. O rosto aniquilado. O espelho, esmurrado. A beleza, violada. O sangue. DELA. MEU. SEU. Ele dizia que a amava. Face. Caixa torácica. Face. Baixo ventre. Face. Vulva. Sangue. Repetia que a amava. Inúmeras punhaladas. Sangue. Sem alarmes ou lágrimas. Fuga. LAVÍNIA, 25 anos, uma reles manchete, causa morte múltiplas lesões por objeto cortante, crime passional.

 

*

 

Gritaram

Negra

Favelada

Atrevida

Estava pedindo

Punição

 

Noite

Tráfego

Estampidos

Os tiros

Açoites

Milenares

 

Sangue

Memória

Um nome

Que brilha,

Atiça

Revolução

 

Senhores,

Sua pretensa

Mordaça

Suas armas

Não calam

Cataclismos

 

 

 

 

desabotoando pagu

 

 

Olhos agudos de mãe

Militante, martírio

Mulher

Loba ígnea

Batizada em lua sanguínea

Sua poesia iça as saias das santas em procissão

Rebela-se contra os homens do Capital

Ela é o escândalo contínuo de sílabas

Justaposição de vogais atrevidas

Signo antropofágico de uma luta

Sibila lançando uivos de libertação

 

Uma Guerreira

Coberta de cicatrizes

Intoxicada de vida

Desabotoem o mito

Devorem os sentidos

Ela precisa respirar

Poesia

Arte

Genocídio

Universal

Palavra perfumada

Entre os peitos de uma pátria

De porcos e pulhas

 

 

 

 

3 poemas

adriane garcia

 

 

transição

 

 

                   para João Donati

 

 

Mataram o menino

Na trincheira

O menino cor-de-rosa

Que pintava o cabelo

De azul

 

O menino do riso largo

Feito uma fatia da Lua

Quem o visse

Pela rua

Teria dúvidas

Se era

A menina ou o menino

Mais bonito do mundo.

 

 

 

 

a vida não é circo

 

 

Hoje vi um

Anão

Andando seus passos de

Anão

Nas ruas de minha

Cidade

 

Vi como arrastava

Heroico

A pesada carga da

Diferença.

 

 

 

 

moura torta

 

 

E se me perguntam

Como foi

Eu me lembro

De um raio

E digo

Passou

 

Um raio que cai

Na cabeça

E carboniza mas

Não mata

 

Passou assim

Como um raio.

 

 

 

 

filhotes

adrienne myrtes

 

 

Eu quero chorar.

Chora não. Ajuda aqui, vamos limpar tudo antes de mãe chegar.

Não tá certo.

E o que pai faz toda vez que bebe, tá certo?

Mesmo assim a gente não podia ter feito isso.

E deixar ele ser machucado o tempo todo? Ficar sangrando num canto? Não. Era nossa obrigação cuidar dele.

Agora só a gente é que vai apanhar.

Vem logo, vamos esconder tudo, enrolar num lençol e depois a gente diz que ele fugiu, que ninguém viu.

Deixa eu chorar, meu pai do céu, a gente vai ser castigado.

Não. Garoto agora tá salvo e vai ter vida eterna. Daqui a pouco ele volta.

Feito Jesus?

Feito Jesus. A gente só precisa esperar três dias.

 

 

©diane arbus

 

 

contra o quinto mandamento

alice barreira

 

 

MIL E DUAS

 

 

Sim, já contou aquela mesma história várias vezes. Numa noite trocou os nomes; na outra, o lugar onde tudo se passou; numa outra ainda, a época.

E se ele perceber? Não perceberá. Continua a comandar seus ministros, a guerrear, a trucidar seus inimigos sem piedade. Mas passa o dia inteiro inquieto, não mais com seu reino, nem com seus aliados, nem com seus adversários. Anseia a noite e suas histórias. Cada vez mais ele é tomado pelo desejo. E ela, pela desilusão.

Ainda lembra da primeira noite em que inventou uma trama para não morrer na manhã seguinte. E lembra que, a cada noite, seu prazer crescia. Mais do que salvar sua vida, dera um sentido a ela. 

Se entregou àquilo com uma alegria incontida, que nunca havia conhecido. Passou a anotar mentalmente todas as histórias que inventava, seus personagens, suas tramas. Já não era mais com medo que esperava os encontros noturnos, mas com ansiedade. 

Em que momento tudo começou a mudar? Em que momento passou a confundir os enredos, as paisagens, os nomes, como agora? Não sabe dizer. Mas é no que mais tem pensado. Então, hoje, ela termina logo a história, mudando apenas o final. Dessa vez, diz que eles foram felizes para sempre e que, portanto, não há mais nada para contar.

Aliviada, espera o dia amanhecer e ele ter que dar a ordem que há muito havia esquecido.

 

 

MADRIGAL

 

 

Quando ele chegou o jantar já estava no forno. Por mais que ele insistisse, não contei o que estava assando. Ficamos ali na cozinha tomando um vinho, ele tentava fazer jogos de adivinhações para que eu contasse, mas eu estava mesmo irredutível. Como ele não desistia, fui transformando aquilo num outro jogo. Agora, a cada adivinhação errada, tirávamos uma peça de roupa. E acabamos trepando quase embaixo do fogão. Depois abri outra garrafa de vinho, coloquei uma venda nele, abri o forno e fui lhe dando daquela carne tenra. A cada pedaço ele tentava mais uma vez adivinhar. Até que eu falei: Manuel, você é a coisa mais boba que já encontrei na minha vida. Você está comendo o seu porquinho-da-índia. Ele tentou reagir, mas eu bati com o martelo bem do lado da sua testa e ele caiu desmaiado. Nem terminou de dizer meu nome. Prolongou um pouco a letra R, como se ela tivesse ficado engasgada em sua garganta. Continuei batendo até que a cara ficou parecendo uma perna. Olhei Manuel pela última vez. Seus olhos estavam muito mais novos do que o resto do corpo.

 

 

FIM

 

 

Certa manhã, Gregor acordou e teve a certeza de que a família queria se livrar dele. E por fim resolveu agir. Esperou anoitecer e o silêncio tomar conta da casa. Mesmo com a maçã encravada nas costas, juntou todas as suas forças, conseguiu entreabrir a porta do quarto e fugir pela fresta. Na cozinha, subiu pela parede e alcançou o basculante que, para sua sorte, continuava aberto. Por ali teve acesso ao corredor do prédio, onde parou para descansar, na escuridão. Enquanto esperava sua respiração se normalizar, olhou para trás, viu a porta do apartamento e um estranho sentimento tomou conta dele. Seria medo? Felicidade? Não sabia. Pensar era tão cansativo.

Estava assim absorto quando foi despertado pelo barulho do velho elevador. Entrou em pânico. E se o pegassem ali? Viu outro basculante semiaberto, de onde vinha uma pequena luz. Sem pensar, subiu pela parede e se esgueirou, entrando na casa vizinha. Como por instinto continuou seguindo a luz e foi parar na sala. O cansaço e o pânico faziam com que se movesse com muita lentidão. Um pequeno abajur iluminava fracamente a mesa onde um homem escrevia. Gregor ficou olhando a cena. Tinha algo familiar, o que era? Aquele homem curvado, escrevendo na semiescuridão, quase clandestinamente. Gregor foi sentindo nascer dentro de si a sensação de que o conhecia. Quem seria? Tão encolhido, como se estivesse cometendo um crime. Quem? Será? Sim, podia ser. Franz. Devia ser. Franz Kafka. Era ele. Mas o que fazia naquele apartamento? Gregor sentiu o ar sumir de seus pulmões. Foi se aproximando, se aproximando, até se esgueirar silenciosamente pelo espaldar da cadeira. Pressentindo algo, o homem parou de escrever. Mas antes que se virasse, Gregor usou as últimas forças para apertar-lhe a garganta com suas patas.

 

 

O OUTRO PAÍS

 

 

A paciente foi trazida para observação por sua irmã que, extremamente nervosa, solicitou os cuidados de nosso setor de psiquiatria. Apesar de sua pouca idade, a paciente encontrava-se sem nenhuma dúvida sob o efeito de psicotrópicos, apresentando quadro alucinatório, com visões seguidas de delírios persecutórios. Dentro de nosso procedimento padrão, que segue as normas da Organização Mundial para a Saúde, nossos especialistas do setor tentaram convencer a menor a acompanhá-los ao SAP – Setor de Avaliação Padronizada, ao que a menor se recusou prontamente e com veemência. Fez-se necessário então o uso do MCS – Modo de Convencimento Sistemático, com auxílio do PPF – Planejamento Psico-Físico, aplicado por nossos RPDs – Responsáveis Personais por Deslocamentos. Mesmo assim a paciente manteve-se irredutível, apresentando quadro compatível com aceleramento cardíaco e dilatação pupilar, o que mais uma vez caracteriza a drogadição. Procedemos então à ISA – Invitação à Sedação Absoluta, mas a paciente não correspondeu à eficácia do tratamento, balbuciando insistentemente as mesmas e únicas palavras sem sentido nem conexão com a realidade que repetiu desde que deu entrada em nosso estabelecimento de saúde, o coelho branco, o coelho branco, o coelho branco, enquanto entrava em convulsão seguida de óbito.

 

 

EVA-DE-PULMÃO

 

 

De um pulmão de Adão, Deus fez uma Eva que possuía a capacidade de viver dentro d'água, respirando como os peixes. Ela e Adão não se davam bem, não gostavam das mesmas comidas nem dos mesmos recantos do Paraíso, tinham sono e fome e cansaço sempre em horas diferentes. Eva conversava com vários animais, que a acompanhavam dia e noite, fazendo com que Adão, enciumado, vivesse brigando com ela. Muitas vezes Adão chegava a agredir Eva e ela passava meses no mar, em companhia dos peixes. Quando enfim retornava à terra firme, Adão não a deixava dormir a seu lado, reclamando do cheiro de maresia. Que fosse dormir com os peixes!, gritava, acordando os seres do Paraíso.

Um dia, Adão seguiu Eva até uma praia de rio onde ela gostava de se banhar. Enquanto sua mulher sumia sob as águas, ele pôs-se de tocaia atrás de uma grande pedra azul, numa das margens. Quando Eva voltou à superfície e tirava os cabelos do rosto para olhar o vulto que se aproximava, Adão golpeou-a várias vezes com um arpão feito de presas de elefante, até ter certeza de que estava morta. Para sua surpresa, o corpo de Eva não parava de sangrar. Adão arrastou-o até o mar e encheu-o de pedras para que submergisse. O corpo realmente afundou e desapareceu. Mas o mar foi-se tingindo mais e mais de vermelho. Adão fugiu de volta para a floresta, onde encontrou Deus. Ele nem perguntou a Adão por Eva. Limitou-se a dizer: vá e traga o corpo que eu criei. Adão passou meses mergulhando em meio às águas vermelhas e turvas. Em Num desses mergulhos viu a mulher e era como se ainda estivesse viva, pois repetia seu último gesto, desembaraçando os cabelos e tirando-os do rosto para olhar o vulto à sua frente. Apavorado, Adão acabou se enovelando nos cabelos de Eva e morreu afogado junto ao corpo dela. Assim terminou esta humanidade, mais uma criada por Deus.

 

 

AMANHOJONTEM

 

 

Havia um tempo antes de haver o tempo. Era o amanhojontem. Os seres e as coisas podiam ir para o que hoje chamamos de futuro e passado, viver novamente o que já tinham vivido ou experimentar logo o que ainda viria. E nada morria por chegar ao fim, já que nada chegava ao fim. Só se morria por escolha própria. Mas Deus ficou com inveja de suas criações, achando-as muito próximas de Si mesmo. Então criou o dia e a noite, o começo, o meio e o fim. E passou a reinar sozinho no Universo, trocando o risco da convivência pela dor segura da solidão.

 

 

 

 

 

 
 
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