o sétimo dia
mariza lourenço
"Se desviares o pé de profanar o sábado e de cuidar dos teus próprios interesses no meu santo dia; se chamares ao sábado deleitoso e santo dia do SENHOR, digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, não pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falando palavras vãs, então, te deleitarás no SENHOR. Eu te farei cavalgar sobre os altos da terra e te sustentarei com a herança de Jacó, teu pai, porque a boca do SENHOR o disse" (Isaías 58:13-14).
o simpático casal de professores aposentados, Durval e Marcelina, não queria saber de outra vida senão a de promover almoços familiares aos sábados. reuniam filhos, filhas, genros, noras e netos ao redor da enorme mesa de jantar, feita de madeira boa, resistente ao tempo e aos costumeiros acidentes domésticos. verdadeiras festas que começavam às sextas com a ida ao supermercado, à peixaria e à feira. Marcelina cozinhava muito bem e sabia, como sabia, alegrar olhos e estômagos.
foi num desses sábados que todos estranharam o jeito de Durval. contador de histórias, falante até não poder mais, ele espetou o garfo num pedaço de carne e apontou para o céu, sem dar um pio, com os olhos postos sabe-se lá onde, perdidos num ponto qualquer do teto. o diagnóstico não demorou, tampouco as desculpas: "sabe como é, mamãe, as crianças ficam assustadas, não querem ver o avô dessa forma".
Marcelina acostumou-se, primeiro à ausência dos netos, depois à dos filhos, um a um. insuportável mesmo era a falta que lhe fazia o Durval de sempre. agora, um fio de nada grudado à cama. Durval morreu tranquilamente, ao lado de Marcelina, às onze horas de um lindo sábado de sol. filhos, filhas, noras, genros e netos se descabelaram de tanto choro durante o velório e enterro. "papai, você era tão bom, papai". carpideiras, diga-se, não se desincumbiriam tão bem da nobre missão, ainda que remunerada, de chorar um defunto.
a simpática aposentada — e viúva — Marcelina, não chorou, mas certas perguntas não paravam de lhe martelar a cabeça: como pude colocar no mundo esse mundo de gente horrorosa? será que o diabo ama seus filhos? por que Deus inventou o ódio? acabou convencendo-se de que não havia resposta, porque não havia resposta possível que pudesse justificar o abandono, a ausência, a falta de afeto. coisas, claro que, de tão terrenas, sempre acabam por surpreender a Deus, o Diabo ou qualquer outro nome que se queira atribuir àquilo que não esteja ao alcance de nossa mísera compreensão.
dois meses após o passamento de Durval, Marcelina convidou filhos, filhas, noras, genros e netos para o almoço de sábado. "como nos tempos em que seu pai estava vivo e bem", disse. "mas, mamãe, sem papai?". por fim, aceitaram, constrangidos, é bem verdade, afinal, cada um sabia de sua falta. chegaram a tempo de apreciar a mesa bem posta, a louça brilhando, o aroma espetacular da mistura de ervas e carnes, do doce de abóbora borbulhando no tacho de cobre.
os corpos foram encontrados no domingo, ao redor da mesa. Marcelina, no andar superior da casa, em seu quarto, descansava abraçada ao travesseiro do marido: como nos tempos Dele.
3 poemas
norma de souza lopes
continuum
uma mulher ergue um cartaz que diz: inocente
rastros de dor para ignorar
infidelidade & gravata & asfixia & alienação parental
e um séquito de atropeladas em silêncio
(talvez um assassinato de mulher possa a convencer)
no dia 22 de novembro saí de casa e nunca mais voltei
o desamor nunca deveria ser mais intenso que isso
o diminutivo do seu nome
ontem observei que o diminutivo do seu nome
significa espreita, alvo, desejo
e é divertido como essas palavras dizem de você
porque, como a serpente do poema do igor
estankona, me espreita de maneira que não
se possa preparar a defesa, ou seja
até que eu esteja submissa
o fato de eu ir e voltar
não tem nada a ver com jogo
mas sim com um esforço de desfrutar
da fantasia sem enlouquecer
e só quem me conhece pode
saber como é grande coisa
não enlouquecer
escolhi você como alvo
por causa dessa sombra intangível
que vejo em seus olhos e a impossibilidade
me faz cada vez mais achar que estou certa
porque com você tudo parece dar errado
o que, em minha lógica interna é
uma bela maneira de acertar
que o diminutivo de seu nome também
signifique desejo não é nada estranho
pois você carrega essa voracidade
indisfarçável dos homens que não se
constrangem em desejar o sexo em
sua forma mais primitiva e ávida
os ponteiros da minha bússola
feminista se arrepiam porque
não me parece certo que
uma mulher esteja assim
tão entregue às lascívias masculinas
mas reconheço que seu desejo
desperta minha própria sofreguidão
escolhi não perder muito tempo
com seus silêncios porque
tenho meu próprio tempo perdido
para recuperar e a felicidade
não é uma coisa que se
construa da noite para o dia
não estou dizendo com isso
que renuncio a essa invenção de
você que criei, não é isso
respeito essa imagem como a um poema
e vou cultivá-la enquanto ela
for capaz de me acrescentar vida
na savana que vivemos sou a gazela
e também o tigre e sinto de longe o cheiro
do seu medo, menino índigo
entendo porque não queira lutar
fazer parte dessa geração tão
promissora que não chegou a
acontecer planta em nós fastio e tédio
com as ciladas do sucesso e da adaptação
quem disse que não se ganha nada com a paixão?
você já me deu quase uma dúzia de poemas
respeitável público
a malabarista
conta e costura
os rasgos da lona
e teme o dia que eles
vão parar de vir
ignora o risco
do trapézio sem rede
alisa a lantejoula solta
os paetês foscos do maiô
mira a tinta descascada do picadeiro
o mês inteiro o mesmo show
(eles vão parar de vir)
ouve o rugido em câmera
lenta dos animais
velhos e sem pelos
dias gloriosos de casa cheia
& barriga cheia se foram
nem em sonho imaginava
que fosse cair