edição 7 | junho de 2006
desejo

 

onívoros
jussara salazar

                Ao poeta Valério Oliveira

A cidade suspensa agora é céu.

Nessa noite todos

como a borboleta chuang-tse - sonharam

falar aquela língua aquosa

do olho do boi.

 

Haviam mulheres e homens, crianças

e a cidade fixava o vôo das nuvens numa

memória aonde foi Goya,

no fogo das mãos

erguidas ambíguas agarrando as horas e os dias.

 

A chuva aí veio virando

um halo calhando e cabendo

caiu mascando a água fina do desejo,

polífago senhor - maná

das palavras e desse mundo.

 

 

 

 

o retorno de saturno 
marília kubota

- Isto é o retorno de Saturno - ele disse, colocando a mão de leve na perna dela. No restaurante em frente à rodoviária prosseguiam o papo-cabeça começado no ônibus que a levou de volta a Curitiba.

 

Há poucos meses viera de São Paulo morar com os tios no Paraná. Um dia, cansada de discutir sobre seus projetos na agência, arrumou as malas, desembarcou  em Curitiba. Sabia que fugia de uma tempestade. O namorado, Vinícius, não se decidia a abandonar a noiva. Arrumou as malas, comprou passagem e veio, girando os tamancos.  

 

Com o portfólio debaixo do braço bateu na porta da agência recomendada pelo primo. De cara gostaram do trabalho, contratavam como estagiária.

 

Ligava todos os dias para mãe e a irmã.

- Isto aqui é uma província - dizia, entre gargalhadas. Também ligava para Vinícius, em vão.

- Saudades, tonta. Que tá fazendo aí, vem cá, Manet está superbe no Ibirapuera, tá perdendo. - Mas continuava com a noiva asmática, que detestava eventos e multidões.

Logo se enturmou  na agência, saía, um escândalo seus modos. Falava sem parar da vida frenética anterior, poesia, filmes, amigos que ligavam todos os dias.

- Continua na merda de província, volta, as festas não são as mesmas.

Vinícius cuidava da Dama das Camélias.

 

Exílio de três meses, não agüentava tios e primos que só iam a comemorações familiares. No baile de formatura da prima, chateada, foi sentar à mesa dum casal moderninho. Dançaram como doidos,  deram carona até em casa. Armou um barraco com os tios, onde se viu dançar com estranhos, bêbada.

- Sou a mil, vocês a dez, fulminou, sem discutir.

 

Sentia falta dos amigos, do colo protetor da mãe e dos gracejos da irmã.

- Por que vim pra cá - perguntava-se, nas viagens de volta.

O rosto perplexo de Vinícius, despedindo-se.

- Fique, vou falar com ela - Mas ficava ao lado da camélia.

 

Nas viagens tinha a cautela de sentar-se perto do motorista, para evitar engraçadinhos. Os companheiros de viagem eram estudantes ou executivos. Metia-se a discutir política ou estética, nao sabiam de nada, chateava-se. Resolvia não mais puxar conversa, abria um livro, fechava-se em copas.

 

Na última viagem de retorno o moreno de óculos, interessou-se:

- Hopkins. Tão raro um leitor de Hopkins.

Começaram a falar sobre poesia inglesa, Shakespeare, daí partiram para Martha Graham, Balancine e Calcultá.

- Acabei de voltar de Bihar, coisa de louco, os brâmanes enlameados no Ganges, rezando pela iluminação. Flagrantes incríveis, quer ver?

Estudante de Artes, trabalhava na Fundação Cultural, sabia astrologia, tarô, esoterismo. Papo alto astral, rolava energia boa. Chegaram na hora do almoço.

- Conversa mágica a nossa, uma pena quebrar o clima. E se a gente fosse num restaurante aqui perto?

- Pode ser.

- Quantos anos você tem ?

- 29.

- Me espanta, parece  madura. Sabe o que é o retorno de Saturno.

- Não, o quê?

- De 29 em 29 anos o planeta Saturno retorna de um longo ciclo. O retorno anuncia mudanças estratégicas sob sua influência. - A voz macia deslizava nos ouvidos e a mão, sedutora, buscava contato com a pele.

Ela lembrou Vinícius apatetado na rodoviária, entregando o livro de Hopkins.

- Sabe que não entendo poesia, mas você vai gostar.

- Tenho um namorado tão complicado e indeciso - começou.

- É mesmo ?

- Somos apaixonadíssimos.

- Sério.

- A pedra no caminho é a Dubois.

- Quem?

- Noiva dele.

Olhos cálidos ouviam atentamente.

- O retorno de Saturno prediz uma revolução. Sabe por que veio a Curitiba? -  a mão acariciando a perna dela.

- Não. - Os dedos enrolando os caracóis negros.

- Maktub, tá escrito, daqui pra frente tudo vai ser diferente. - Beijou o ombro direito desnudo.

 

 

 

 

 

no escurinho do cinema
mariza lourenço
 

Aos sábados brigávamos ele queria Bergman eu queria dançar mas o sueco sempre levava a melhor mais pela minha paixão recém-encapsulada do que para adquirir cultura cinéfila porque eu gostava mesmo era do Travolta e então íamos ao cinema e por três intermináveis horas ele se mantinha estático movendo delicadamente os lábios no acompanhamento febril de cada corte de cena como se nada existisse além das imagens escandalosamente lúgubres daquela tela enorme e eu que nem era besta nem nada arriscava um carinho na orelha ao que ele espantava como se fosse mosca num ato reflexo de coçar o queixo mas o que é que o queixo tinha a ver com a orelha? eu ficava muito sem graça e em outra desastrada tentativa enfiava-lhe entre as coxas a minha mão sem-vergonha e novamente ele me pedia silêncio com os olhos apertando-me fortemente os dedos numa fala muda de "ei, sua aculturada, pres'tenção no filme" e eu abria a boca achando tudo aquilo muito cacete que afinal de contas cinema era lugar de amasso e beijo de língua oras eu só tinha de-zes-se-te anos e queria namorar coisa que fazíamos depois da fita quando ele me levava para a república onde morava com meia dúzia de comunistas e justiça seja feita ele era um diabo na cama e naqueles momentos quem dava as cartas era eu enquanto ele tratava de desordenar todos os meus pontos gês a minha pele os meus cabelos a minha vida e eu já nem era mais eu virava puta-gueixa-professora-mulher-de-bombeiro-carmen-amélia-cecília e um dia ele sumiu e nunca mais voltou chorei por cinco noites seis dias e no sétimo fui a uma discoteca o tempo passou eu madurei namorei noivei casei pari dois filhos virei mulher de empresário e ano passado coloquei silicone nos peitos mas meu marido continua trepando regularmente duas vezes ao mês e nos outros dorme o sono dos inocentes enquanto eu assisto sozinha a alguma fita do Bergman e imagino-me aos gritos enquanto ele me come entre sussurros.

 

 

ela  
roberta silva

De sua cama ele ouve o chuveiro no andar de cima. A água bate no piso, escorre pelo seu rosto e empoça em seus olhos. Arde. Seu desejo embaça a janela ou é a chuva ou o banho d'Ela?

A tormenta começa quando range a porta. Toc toc toc. O salto no assoalho marca o novo compasso do seu coração. Toc toc toc. Sala, corredor, cozinha, corredor, quarto, banheiro. Toc... Toc...

"Não pára! Não pára!". Silêncio ou sua respiração o impede de ouvi-la? Ainda se despe? Anda nua pela casa? O chuveiro!

O cheiro quente que invade o quarto o sufoca. Cheiro de sabonete branco, redondo, escorregadio, espumante no seio branco, redondo, escorregadio, estonteante. Sacode os cabelos molhados. Um bombardeio de pingos atravessa o chão e se aloja em seu peito. Campo minado.

As mãos percorrem o corpo à procura de refúgio. Displicentes, os passos d'Ela, acima de sua cabeça, detonam a explosão. Em petit mort ele jaz.

 

 

deo gratia
ro druhens

Nem um toureiro gastaria mais tempo com trajes e adereços. Nem uma noiva gastaria mais tempo com sabonetes, espumas, cremes. Nem um trapezista gastaria mais tempo com suor e frio na barriga.

 

Nenhum homem gastaria tanto tempo com nenhuma mulher.

 

E ela o olhava, de costas, de quatro, pelo espelho. Seus passos de felino cruzaram o quarto onde a lâmpada azul coloria a vida, como se quadro de Picasso fora.

 

Picasso!

 

Sentia o suor escorrendo pela espinha. Sentia as mãos trêmulas. Sentia arrependimento pelos quase 70 anos já vividos. E sentia que a mulher o chamava com as vísceras e as entranhas e o aço do espelho tornava seu olhar cruel, metálico.

 

Do lado de fora, o calor de 40 graus torrava corpos na areia da praia e o cheiro do almoço da vizinha se misturava aos perfumes da mulher que, arreganhada esperava, fera no cio.

 

E dispôs-se a cumprir as 12 estações. Caiu três vezes. Enxugou o suor no pano de pratos - santo sudário.

 

E a chuva de verão caiu às 6 da tarde.

 

E o rádio da vizinha tocou a Ave Maria. E ouviu o sino da igreja. Ângelus.

 

E ouviu a mulher. De quatro, ainda. Ajoelhada. Contrita.

 

Graças, adeus!

 

 

 

 

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