edição 8
| julho de 2006
initials bb não sou
mulher
convite Eu estava cansada, muito mesmo,
entrar e sair de carros das 11 da noite até às 6 da manhã não é brinquedo,
nem mesmo esporte, talvez, um daqueles que batizaram de radical. Eu
me acomodo ao lado do motorista, não olho pra cara dele, nunca, não
me interessa saber a idade, cor, se é careca ou cabeludo, o que me
interessa é a grana, 50 paus por vez, bem, como eu disse, me ajeito
ao lado do cara, abaixo a cabeça, corro o zíper da calça ou bermuda
e trato de agradar o freguês. Não aceito fazer mais do que
faço, sou cabaço e exijo respeito, eu me guardo pro meu amor que virá
ao meu encontro, se Deus quiser! Depois das 6, encosto na bomba
do posto de gasolina, bato uma caixa com o vigia, ele sabe o que faço,
nunca avança o sinal, boa praça. Aguardo o sol surgir do mar, avermelhar
as ondas, dourar a Pedra do Arpoador, o maior barato, me faz lembrar
que estou viva, que ainda faço parte do que Deus criou, espero o dia
clarear pra valer e depois me mando pro meu país. Naquele dia ele passou por
mim, bem coroa, eu nem vinte tinha, talvez ele carregasse uns quarenta
ou mais no lombo, ia a caminho do calçadão, fazer aquele troço que
batizaram com um nome de gringo, deu "bom dia", eu respondi da mesma
forma, viciei nele por ser gentil, esperava-o passar dias seguidos,
"bom dia" todos os dias. O sol raiava, ele parou ao
me lado e depois do "bom dia", perguntou pelo meu nome, "Alice", falei,
"e o teu?", "Alfredo!" e partiu correndo, em direção ao Leblon. Não vou dizer que era bonito,
nem de longe, mas era uma figuraça, alto e esguio, nunca fez proposta
praquilo, mesmo sabendo do que eu fazia, tenho certeza, não dava pra
enganar. Um dia ele atrasou e eu me
mandei pro ponto do ônibus, tava quase subindo no Ozório/Central quando
ouvi: "Alice!", virei-me, era ele, todo bonitão, de calças e camisa
florida, "pra onde vai?", perguntou, "pra Central, tomar café e depois
pro trem", "me dá o prazer de sua companhia e toma café comigo na
minha casa?". Não devia ter ido, mas com
dizer não prum cara tão educado e gentil? Sua mão leve no meu braço
me guiou até onde ele morava, o porteiro nos encarou de través, ele
não deu bola, cara fino mesmo. Entramos no cafofo dele, legal
pacas, livros, quadros, tapete, poltrona, sofá, só tinha visto igual
nas revistas que o jornaleiro me emprestava. "Senta", falou com a sua bela
voz e me mostrou uma cadeira colada à mesa. "E agora espera", continuou
e sumiu na cozinha. Voltou logo com uma bandeja,
café, leite, geléia, suco, torradas, queijo e lá sei eu o quê mais,
colocou uma xícara e pratinho à minha frente e o mesmo pro lado dele. "Fique á vontade", falou,
cara sensível mesmo, ele tinha manjado o meu embaraço e tratou do
assunto pro lado dele e eu pro meu. Acabamos de rangar e me deu
sono, coloquei a cabeça sobre a mesa. Ele falou: "cansada?, deita no sofá", me levou pela mão até lá, ajeitou uma almofada e eu caí que nem chumbo e sonhei com o raiar do sol, com a Pedra do Arpoador dourada. * Estou grávida, quatro meses,
batalho assim mesmo, pra viver é preciso ter ofício e o meu era aquele,
sempre o mesmo, ele passa por mim de madrugada dá "bom dia" e depois
pergunta: "como vai o nosso filho?". Cara bacana, educado mesmo, muito gentil em perguntar pelo nosso filho, que está no aconchego na minha barriga.
7 sonetos soneto I Para Paulo Gabiru
O poema é um susto ritmado. É uma matemática tão inata, que o poeta é um ser abismado, nó que não ata e nem desata. O seu gesto de clown cansado. Mais velha a musa, mais a
maltrata. Hoje é mais um desempregado, mais um na idade ingrata. É o homem dentro da pele veio-fluindo pela cidade ardente. - Que o céu no chão se estatele! O homem em tripa, alma e dente, mas que o mistério nunca se
revele pra dádiva e desgraça de toda
gente. soneto II O meu mais íntimo fantasma nunca brincou em serviço, e olha que sofre de asma e vezoutra dá seus sumiços. Ele é sombrio, claro, e me
pasma com o seu olhar movediço. Desdenhoso o meu fantasma com seu ar meio irritadiço. É muito fiel aos meus medos, nas desoras desenrola enredos de traição, desengano e perigo. Nasceu comigo, e bem cedo tornou-se o meu melhor brinquedo a contradizer tudo o que digo. soneto X Para Zeca Magalhães O velho é um menino ao avesso sem a pressa dos gestos não
vividos. Nos pequeninos, então, eu
reconheço a elegância dum fantasma distraído. Velhos serão fantasmas? O
preço não são rugas, dores, o amarelecido, nem a cova, esse último endereço, mas a sensação de desacontecido que sem susto os pegam algum
dia (porque a morte nunca foi
o fim), um pouco de pavor, um tanto
de alegria. Moleque milenar ou ancião
mirim? O mesmo barro mas diversa
alvenaria o velho que vê o menino em
mim. soneto XI
O poeta
mora na assimetria.
Todo ele é um ângulo agudo. Não que não tenha melodia: A pauta torta e o pão peludo. Mais incerto do que desejaria. Como incerto é o destino de
tudo. Sua fajuta e difícil pedraria, sendo seu silêncio cabeçudo. Pois insiste no que não devia, neste eterno contar sem cura. Você, leitor, de nada disso
sofreria se um primeiro com voz impura não se metesse ao perigo-grafia pra que a memória se tornasse
mais dura. soneto XII
Só os mortos merecem dedicatória não representam nenhum perigo. Pois vivo acaba virando escória, e o que era amigo vira inimigo. Morto no fundo é mais memória, mas aí é que mora um castigo,
como um erro a repetir sua
história. É que nascer é mergulho e
vertigo. Porque repetir não é algo
circular. Variabilíssimo quase ao desespero,
e o mundo humano pode até
parar, e tirar o seu sentido desse
paradeiro. O mundo todo em um mesmo lugar,
todo homem sendo sempre o
primeiro. soneto XIV
A memória é um velho mentiroso que acredita no que inventa. É quase um prazer criminoso que se curte em ânsia lenta.
Não sabe se sonhou ou memorioso uma viajem a mais acrescenta.
Nesse infindável vôo sem pouso, que mesmo assim não se contenta. Quem acorda pensa que ressuscitou.
Se equivalem memória e sonho? Separar o que viveu do que
sonhou é tarefa inútil que na cama
enfronho a memória que em mim si abismou, e que é tudo de que me disponho.
soneto XVIII
Lendo uma dessas pequenas obras-primas em um volume, e que nos fazem a alma serena dentro da solidão sem lume do domingo à noite com antenas mornas de tédio na cama de
costume. Não, não é uma surpresa apenas é que no poema o mundo se
resume. E o poeta há séculos falecido ri sozinho como você agora
o faz? Não sei se poeta renasce quando
lido. Não seria a essência do que
é capaz o leitor que está muito mais
vivido? O verso sim é que vive um pouco mais.
soneto caiçara o amor não tem idade sempre
nasce
sentava atrás de mim na mesma
classe
daí entrei na cheia da desova
hoje eu recusaria a dinheirama
1 poema
anjo
de uma segunda-feira quando
não fui em uma festa porque
fiz hora-extra me
pediu um beijo me
pediu os seios uma
chuva veio eu
te dei ela
te levou pro
bueiro
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