edição 1 | outubro de 2005
escritoras suicidas

 

vibra call
adelaide do julinho

Lâminas são muito úteis: servem para depilar as pernas e cortar os pulsos.
Quase cortei.
Celular, também: ele me liga sete oito nove dez vezes seguidas.
Não atendo.
O arrependimento dele treme treme treme treme entre minhas coxas.
Ele riu.
Eu gozo.
Por último e melhor.

 

 

entre mortos e feridos
ana de celorico

— Oi! — ela disse quando atendi o telefone. Estava alegre, bastava o oi para que se percebesse. Estava quase alegre. Que bom, — pensei — já fazia tempo.

— Tudo bem? — perguntei.

— Tudo. — e riu de leve, quase uma tosse. Fez uma pausa.

— Diga. — disse eu, pensando no que a faria telefonar assim, no meio da manhã, horário estranho mesmo para ela, que tinha passado anos me telefonando, mas quase nunca antes do almoço.

— Não sei. Deu vontade de ligar. Fazia tempo que não ligava pra você de manhã.

— É verdade, muito tempo. Pensei nisso agora mesmo. Anos?

— Eu achei que você pudesse ter pensado nisso. Engraçado, não é? Como a gente se conhece...

— É mesmo. Conheço tanto, que acho que você está com algum problema mas não quer me dizer, Nora. — pensei um pouco — Mas ao mesmo tempo, também quero estar enganado, não quero você com problemas.

— Pois é, isso é amizade. Eu sei como é. Sentiria o mesmo que você, se não estivesse tão confusa. — disse ela.

Outra pausa. Quem volta a falar sou eu:

— Conta, Nora, o que há?

— Nada, eu já disse — e me impressionou como a voz tinha mudado, a tristeza por detrás da fala — estou bem. — mentiu — Liguei só pra dizer que vi, daqui da janela da sala, uma menina lendo um livro meu, dentro de um carro parado no sinal.

— Que ótimo! — embarquei. — E que livro era?

— Não sei. — e parou de novo. Quando continuou, a voz tremia, quase chorava — Eu ainda não o escrevi.

Meu sangue endureceu. Deus, não de novo!

— O que você disse, Nora? — e eu quis ter ouvido errado, quis que ela tivesse dito outra coisa qualquer que se parecesse com o que eu tinha ouvido. Ela calada, eu a sentia respirar. — Nora?

— Não estou bem, querido. Eu sei que não estou bem. — disse ela, calma, muito calma, sem nenhuma tristeza.

— Nora, onde você está?

— Em casa, eu já não disse?

— Sim, eu sei, mas em casa onde? Na sala?

— É, na sala, eu já disse. Em pé no meio da sala.

— Nora, não sai da sala de jeito nenhum, eu já estou indo. Faz o que eu estou pedindo, por favor — e eu falava sílaba por sílaba, como quisesse que ela decorasse o procedimento — Eu já estou chegando.

— Um beijo, meu amigo. — e ela me deixou em companhia do sinal de ocupado. Gelado. E pulsando.

No caminho até a casa de Nora, no táxi, berrei com o motorista para que andasse mais rápido, as lembranças de Nora pelas celas e corredores cadeia sirenes gritos reboando pelas paredes de concreto, ela passando arrastada de volta à cela, atirada ao chão, o som de saco de carne caindo, Nora, batendo na laje, a dor e o abandono que tinham lhe arrancado o brilho dos olhos e o branco da pele, a cabeça raspada no lugar dos dedos pelos cabelos compridos, saí do táxi e corri os dois últimos quarteirões a pé entre carros e calçadas cheias de gente esbarrões tropeços encontrões, os gritos na cadeia, altos, uivos, para que nós outros ouvíssemos, a mulher de pele coberta de cicatrizes e queimaduras que encontrei no pátio em dia de sol, unhas esfareladas de arranhar chão e paredes, nós dos dedos em cascas de sangue seco, o cheiro tão ruim quanto o meu, o sorriso cheio de lágrimas que deixou ver um dente a menos, subi as escadas e o terror que senti ao ver a porta meio aberta do apartamento, dois dedos de porta aberta, fresta por onde entrou meu medo, por onde tinha saído o amor-próprio de Nora.

Encontrei-a no banheiro, caída, o rosto ao lado da privada, tudo e ela, tudo sujo de um vômito rosado que cheirava a açougue e água sanitária. Uma garrafa branca tombada. Ao sol, na beira da janela, a lata de soda cáustica aberta, uma colher enfiada no pó branco como Nora. Macia, morna, quase bonita. Morta.

Fui para a sala. Atravessei o sol que entrava pela janela e fazia o tapete colorido pintar tudo de mostarda, e me sentei na poltrona, a poltrona que tinha dito a ela para se sentar e me esperar, a poltrona de veludo cor de vinho, a poltrona que ela me disse um dia, na cadeia, que daria tudo para estar dez minutos sentada. Daria tudo para encostar o rosto no tapetinho que ela tinha colocado onde a cabeça encosta. Ela já teria dado tudo por dez minutos na poltrona.

Peguei o telefone, ainda perfumado da sua última ligação para mim, e chamei a polícia, sentindo o cheiro bom. Encostei a cabeça no tapetinho, olhei para o teto, fechei os olhos, e terminei de ler o último livro de Nora, ouvindo as sirenes ao longe.

 

 

deusemar
andréa del fuego

Deusemar tem esse nome porque a mãe era filha de Oxóssi, isso não explica, só confunde. Ela mal passava das quatro da tarde, às três e quinze dormia. Deusemar tem insônia ao contrário. Como dorme quando o resto está acordado, ela sempre está a sós nos salões das nuvens. Não há demora nas filas dos cursos, visita seus mortos sem espera na porta.

Ela vende blush terracota numa botica de manhã. É acordar, vestir-se, desjejum, trabalho, almoço brando; cama por dezoito horas. Nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. Usa o terracota que vende nas maçãs do rosto oval. Batom nunca, ofusca as maçãs, seu pedaço de Emília. Dorme corada.

Deusemar conta carneiros de trás pra frente, começa no 124 e vai voltando. Dorme lá pelos 22, 23. Pra família diz que estuda trancada no quarto, leva o lanche e quer foco nas fórmulas. Pra homem diz que já tem um, obrigada. E tem, conheceu o Josimar, atendente do curso de memorização das moradas de média vibração. Ele surge no terceiro estágio do sono e desaparece também no terceiro, na volta.

Josimar atende na fila, de paletó lilás. Enquanto o fígado se encharca com um terço do sangue, o caso do sono, a alma se enfileira em alguma repartição conforme o pai-nosso rezado ao deitar. Josimar atende os de pai-nosso completo, sem erro na frase, atende quem diz "que assim seja" no final. Para outras variações, outras filas.

Com lista na mão, ticou Deusemar. Ela entrou no auditório e então o palestrante ministrou as graças da memória contínua. A que não se engastalha nas rugas do crânio, passa fluida até o músculo e fornece ao sonhador erudição, mais frases nos salões acordados. Deusemar estava no quarto estágio, mais um e se formava.

Combinaram encontro no final do semestre, ela com certificado, ele com férias. Trocou carneirinhos por galinhas, que pulam mais rápido e se pode contar mais, ela agora com mais memória. Começou no milhar 1789: Revolução Francesa e a junção de cachorro e urso no jogo do bicho. Contou desta vez no crescente e foi até 2332: cabra e camelo. Foi chegar na fila e não ver Josimar. Disseram ter ido embora com Soraia, moça em coma induzido, sem data pra voltar.

Cantou reza de lanchonete, cebola e picles num pão com gergelim; mantra inverso pra voltar ao corpo. Não ia. Não voltava. Desenganada, foi até a beirada da nuvem, edifício alto, e se atirou. Caiu no corpo às seis e vinte da manhã, atirado na cama, debaixo de edredon, aos vinte graus de peixes.

  

(de) quatro
antonia pellegrino

eros e tânatos de mãos dadas

Otto. Otto fez um disco que eu só escuto agora, sem gravidade. Guitarras bregas, amores vadios que arrastam, gastam e fazem sofrer. E devolvem a vida à alma que acha água no leito da minha alma e te coloca pra beber minha mágoa. Tem história de fogo cantada em dezenas de canais. Queima, ajoelha, chupa e agradece, toda a putaria que deus lhe deu. E mesmo a cuca ruim. Esse giro. Esse cachaça. Esse cheiro de morte. Eu respiro forte. Eu desmaio. Eu também amo demais.

 

pra depois

Guardar tudo pra um futuro que nunca chega. Guardar o dinheiro pra uma casa que nunca chega, pra uma viagem que nunca é feita, guardar o tempo de se divertir pra trabalhar esperando uma bonança que não vem, guardar o afeto pra um grande amor que promete, guardar os planos pra hora que o homem aparecer, economizar na dedicação, na escarafunchamento da loucura, deixar as coisas se deteriorarem pra cuidar depois, quando algum próximo aparecer, aí cuidar, no imediatismo do amor, que vai, novamente, dar com os burros n'água, por que sempre dá, se jogar, de joelheiras, querer, mas só um pouquinho, querer mas não agora, querer o impossível que nunca realiza e nos deixa com a sensação de falta, constante, falência múltipla do amor, morte por sufocamento, viver economicamente, sem riscos nem apostas, com a suposta sensação confortável de que até você, só chega a parte boa da vida.

 

mi ré dó

Há uma caixinha de música, entalhada em jacarandá, no último andar da estante das coisas inúteis. O exterior feito em madeira de lei ambienta seis pedaços de veludo francês vermelho, há beleza dentro e fora, o movimento libera a beleza invisível, uma melodia simples e comovente segura minha respiração, a melodia solta um gosto doce, aura de endorfina, o ar é do veludo que respira, a caixa se mostra aos olhos segredando o melhor, sempre fui caixa revirada, música ao avesso.

 

inverno

O sol é um concentrado de partículas quentes e luminosas que viajam quilômetros pela via láctea pra iluminar o planeta que gira sem parar, fazendo o dia chegar todo dia na minha estufa sem cortinas. O sol nasce dentro das minhas pupilas, carboniza a retina, não deixa o esforço das pálpebras ter efeito, puxo uma inspiração profunda pra me dar coragem de abrir os olhos, mesmo que queime, a pressão desce, os olhos se escondem sozinhos enquanto o mundo roda, o calor das partículas do sol cega e as pálpebras se fecham novamente, como aquelas plantas que eu botava pra dormir nos campos onde, impossibilitado de comer o grude que aquela comunidade oferecia, colhia amoras. A tontura dos olhos abertos pede pra fechá-los, tenho vontade de lacrimejar mas estou seco, e digo isso sem metáforas. Não tenho idéia de quanto tempo dormi, o último instante que me vem a cabeça ainda não chovia, sim, agora está chovendo, como diria um amigo meu que ia pra escola de terninho, mesmo que todos os garotos usassem calça lee e tênis, chove desbragadamente, e nem assim eu posso comer os pingos grossos que escorrem pela janela fechada. Escutar os pingos-bomba se espatifarem nas folhas da palmeira-leque do vizinho refresca meu apartamento, sonhei que lambia a poça d'água que evapora do outro lado da sala, foge de mim, covarde, seria doce morrer no mar.

 

charme
bruna beber

O primeiro livro que eu roubei na vida foi o Serafim Ponte Grande, do Oswald de Andrade. Roubei de um sebo em Copacabana. Um sebo até bastante conhecido, mas muito mal freqüentado. A começar pelo dono, que é um boçal completo. Confunde poesia com ficção científica. Eu não havia roubado livro antes. Já tinha saqueado um da biblioteca da escola com um amigo meu. Estávamos um dia pesquisando para um trabalho de grupo sobre Luís de Camões e queríamos uma foto bonita e colorida pra colar na capa. Não queríamos uma fotocópia pretibranca. Então arrancamos uma ilustração linda duma Barsa que tava dando sopa na nossa frente. E deu outro visual. Que mané, o cara, não sabe tratar bem seus novos clientes. Ele podia se informar, pelo menos. Me senti ameaçado, qualquer descuido faz com que eu me sinta ameaçado. Eu estava sendo mal atendido por uma pessoa que vendia livros, mas os desconhecia. Achei desacato. E oportunamente me vinguei.

Quando eu era criança minha mãe me perfumava com alfazema. E era um cheiro tão forte que se espalhava pela casa. Nossa casa não era muito grande, eram dois quartos-sala-cozinha-banheiro mais o anexo. Só tínhamos uma tevê, logo, quem não concordasse com o canal tinha que arrumar outra coisa pra fazer. E normalmente era eu quem tinha que ter esse trabalho. Até que comecei a me trancar no quarto pra ler. Eu nunca entendi porque minha mãe me perfumava com alfazema, era um cheiro horroroso. Eu era sacaneado no colégio por causa disso. Eu tinha cheiro de normalista. E tem coisa pior do que cheirar a normalista? O motivo disso talvez fosse que minha mãe tinha sido um dia uma normalista. Não só ela, mas todas as minhas tias. E aí eu ia pro quarto me isolar.

No meu isolamento gaiola quarto de uti pátio de presídio particular, a vida era muito mais confortável do que no resto do mundo. Estando lá dentro, eu não precisava me relacionar com outras pessoas. Só lia livros e construía paredes. E mais paredes, começaram a subir paredes. As paredes não vinham do chão do quarto, eram de outro lugar ou eram dum outro tipo de parede. Um tipo que não se destrói com marreta, e às vezes nem com trator. E era como se ninguém mais pudesse ultrapassar esse espaço, não cabia mais ninguém. As companhias que um dia me fizeram falta para brincar não me faziam mais falta. Os livros eram meus brinquedos e minhas ferramentas. Ferramentas usadas para construir paredes, ferramentas usadas para fazer transplante de órgão. Nada mais me fazia falta. Ninguém mais me fazia falta. Eu passei a me bastar, e a estar com os outros só para fazer a manutenção de relações que eles sustentavam por mim e por eles. Eu não queria mais ter camaradas. Eu não queria mais ter namoradas. Eu não queria ver pessoas, eu não queria mais sentir cheiro de pessoas.

Meus pais eram incultos, mas tínhamos uma biblioteca com mais de 5 mil livros que haviam sido herdados de um tio do meu pai, exilado político e intelectual, e que foram parar lá em casa porque antes desse tio do meu pai morrer, e ele era como se fosse pai do meu pai, fez meu pai jurar que ia guardar e cuidar da biblioteca dele até o meu pai morrer. E que se morresse, algum de seus filhos cuidaria dela. Meu pai, como sempre foi cagão e passou a vida inteira na encolha porque tinha medo de castigo divino ou de levar um puxão de pé de algum defunto poderoso, mantinha todos os livros num cômodo da nossa casa que só tínhamos acesso se fôssemos para o meu quarto. Meu quarto era afastado da casa, porque como eu nasci por último tiveram que construir mais um quarto. E foi coincidentemente na época que o tio do meu pai morreu. Aí eles construíram um anexo com mais esses dois cômodos.

Fiquei trancado no quarto até os vinte cinco anos. E do quarto pra biblioteca. Dos dez aos vinte e cinco anos. A família eu considerava gente estranha. Aliás, principalmente a família. Minha família sempre foi estranha. Todos eram como se fossem estranhos. Muito estranhos a mim e à minha realidade. Nunca conseguimos nos entender. E como eles não estavam muito aí, me aproveitei disso e banquei o doente. Eu só saía do quarto pra comer. E do quarto pra biblioteca e pro banheiro, às vezes, para fazer as higienes mais urgentes. Parei de estudar na quinta-série. Era mantido como uma samambaia, frondoso, encerrado num xaxim. Regado com livros. Sem amor. Não fazia nenhuma outra coisa na vida além de ler. Era um tipo de profissão. Eu era um leitor profissional. E ao mesmo tempo um amante dos livros, me aproveitava deles. Samambaia regada com livros. Jardim das letras, vida dos infernos. Quimera, arco-íris e fantasmas variados. Dos contos de terror à psicanálise. Os quadrinhos, os romances, os clássicos. Bulas de remédio, manuais de aparelhos eletrodomésticos. Tabeliões, dicionários, pesquisas científicas, atestados médicos. Alfabetos, códigos numéricos, histórias da carochinha, poesia. Letras se acumulavam como lixo na minha cabeça. Caçambas e mais caçambas de palavras. Quilos de sinônimos, antônimos. Dentro da minha cabeça letras e muitos sacos de lixo. Letras e imagens distorcidas.

Depois de ter lido 90% da literatura mundial, eu comecei a escrever o meu primeiro conto. E foi o primeiro dia que eu saí de casa depois de tanto tempo. Comecei a escrever freneticamente e só saí de casa porque tinha que comprar caneta e papel. Duas coisas que eu não tinha. Aí então decidi sair de casa. Precisava de caneta e papel. Fui até a papelaria mais próxima da minha casa. Eu já havia esquecido o nome da minha rua e não sabia mais andar no meu bairro. Enquanto a atendente limpava uma estante, eu peguei um caderno de arame de capa mole e duas canetas bic e saí. Meu lema e minha sorte. Getting away with murder. Eu passei a roubar papel e caneta freneticamente para dar conta do que eu escrevia e reescrevia: cerca de dois cadernos de uma matéria por dia do mesmo conto. Não tinha dinheiro pra comprar e roubar era muito mais fácil. Um roubo bem feito não gera prejuízos. E roubar artigos de papelaria é um tipo de roubo agradável pra quem gosta de escrever. E eu só tinha esse conto, precisava cuidar dele. Revisa-lo, reescreve-lo quantas vezes pudesse para que ficasse impecável. E era somente isso que eu fazia. E foi só isso que eu fiz durante dois anos. Reescrevi o mesmo conto, calculo, umas quatro mil e quatrocentas vezes. Não sei precisamente, mas tenho anotado.

Até o dia que CHEGA, cansei. A ficha caiu, eu estava internado no mesmo conto durante meses da minha vida. Não havia mais nada pra fazer ali. Precisava tomar ar, precisava receber visitas e ligações. Decidi sair pra respirar e fui andando até um sebo perto de casa pra ver o que estava sendo produzido na literatura atual. Ou o que já estava sendo vendido a baixo preço da produção atual. E encontrei o Serafim Ponte Grande, do Oswald de Andrade. Pensei "Hum, interessante, quem será esse rapaz?" Roubei. Levei comigo. "Levei comigo" é mais fraternal. Afinal de contas, a propriedade é uma questão política. E o que é seu pode ser meu e vice-versa. Possuir é relativo. Abracei Serafim e o ninei até em casa. Chegando lá, passei o dedo em todas as páginas, terminei de ler e voltei para roubar o que agora, eu havia descoberto, tinha sido lançado antes, o Memórias Sentimentais de João Miramar. E roubei todas os Oswalds daquele pulgueiro. Enjoei e comecei a roubar Mário de Andrade. Aos poucos eu roubei toda aquela nova escola, que chamavam de moderna, do sebo mal freqüentado que eu freqüentava. Leitor profissional, ladrão profissional. Roubava livros pra ler e depois os vendia. Roubava em qualquer lugar e vendia em qualquer lugar pra qualquer pessoa por qualquer preço.

Desenhei um círculo vicioso. Roubava pra ser escritor. Eu odiava trabalhar. Nunca tinha trabalhado na vida. Eu precisava fazer coisas fáceis para me manter. Onde estavam meus familiares? Onde tem comida pra comer nessa casa? Minhas paredes não têm janelas? Cadê as pessoas dessa casa? Tem água? Tem pão? As pessoas eram invisíveis. Ou era eu que não via mais ninguém? Precisava fazer alguma coisa para me manter vivo. Uma delas era roubar. A outra era escrever. Roubando eu não precisa trabalhar e podia passar quanto tempo quisesse em casa escrevendo. Além dos pequenos furtos para sobrevivência, havia os grandes furtos para sustentar os vícios. Descobri a maconha num culto evangélico duma igreja que tinha na esquina da minha rua. Eu entrei lá pra sacar os fiéis e ver a casa de quem ali eu poderia invadir, pra ver quem tinha cara de ter mais eletrodoméstico ou quem tinha cara de ter mais carros ou mais televisões. Resultado. A igreja era fachada pruma boca de fumo internacionalmente conhecida. A boca de fumo Jesus. Onde não só vendiam maconha, como cocaína, craque, heroína, haxixe e yabba, a droga da vez. A droga da moda. Tendência nas grandes metrópoles.

Eu era estranho no culto evangélico, isso era fácil perceber, até que um cara fantasiado de pastor veio na minha direção e disse "Vai contribuir com quanto?" E eu, inocente, disse "Vim aceitar Jesus". Dou o que vocês precisarem. Essa era a senha. Falar em Jesus. Me chamaram prum quarto lá atrás e me deram pra experimentar um cigarro de maconha. Aquilo tudo era muito louco. Mas ao mesmo tempo tinha cara de reza. Era um ritual espiritual cheio de gravuras loucas e móveis, cheio de brilho e música. E depois eu fui ver que era um delírio meu. Um sonho. Nada disso tinha acontecido. Eu tinha virado maconheiro nem me lembro mais porquê. E essa história da igreja é a que eu costumo contar quando quero tentar falar porque eu comecei a fumar maconha. Mas eu realmente não lembro. Acho que foi um pouco antes de começar minha fase de confinamento. A fase de confinamento começou aos dez, né. É, então acho que foi aos 9 anos. Ser alcoólatra nunca me bastou. Comecei a beber em casa, minha avó tinha mania de molhar minha chupeta na cachaça e botar na minha boca. Aquela velha entendia das coisas. E foi daí ao dia que eu cheirei cocaína e vi Jesus. Vi Jesus sentado conversando comigo sobre o centro do universo. Era lá que eu estava. No centro. Só existíamos eu e Jesus. A cocaína mexe com o ego de Jesus.

Jesus era minha identidade secreta. E a única que eu tinha. Meu nome é Jesus, muito prazer. Você sente prazer em falar com Jesus? Jesus sente prazer em falar com você. Jesus já estava dando conta de toda a pós-modernidade e comecei a escrever mais. Jesus escrevia mais. E mais e mais. Os contos agora eram inúmeros e eu sentia necessidade de fazer alguma coisa com eles. E fiz. Mandei prum jornal local. Fui publicado com pseudônimo porque eu tinha esquecido meu nome. Meu nome não era Jesus. Quem foi que disse que meu nome era Jesus? Isso é obra da igreja. Não lembro meu nome. Não sabia onde estava minha certidão de nascimento. Eu não havia tirado identidade. Nem nenhum outro documento. Estava trancado no quarto. Eu simplesmente não existia. Se eu morresse, era como se já estive morto para o estado. Eu era um exilado, um anônimo duas vezes, um fudido. Um loser que agradou tanto que os pedidos de conto foram multiplicados. Jornais, revistas. Todos queriam meus textos e pagar por eles. E pagavam alto. Pagavam caro. Todos queriam textos assinados por Jesus. Eu estava cada vez mais louco. Não sabia o que escrevia, não entendia meus textos e não entendia como as pessoas os entendiam.

Começou a ficar chato, monótono. Eu precisava de emoções. Fiz uma lista de nomes para executar. Comecei a matar pessoas, passarinho eu nunca gostei de matar. Tinha pena. Matei um por um da minha lista. Matar é muito divertido. E minha lista era composta somente de nomes de familiares distantes, o que me obrigava a viajar para matá-los. Mais precisamente tios e primos de segundo grau. A raça mais distante e mais mesquinha. Acho que todas as pessoas deviam ter direito de matar pelo menos uma. É um prazer inenarrável. Eu gostava de arquitetar mortes. Meus mortos eram também meus personagens. Matei todos os personagens que atrapalhavam o fluxo da história que eu queria contar sobre a minha vida. Mudei seus nomes, tirei seus nomes, dei seus nomes a outros. Cortei suas cabeças, os internei no meu quarto junto comigo. Judiei, estraçalhei, mudei os rumos. A vida deles era minha. Eu tinha direito de tirar a vida. E de dar vida. Meu nome é Jesus e eu estraguei todas os finais felizes. Quando eu era criança minha mãe me perfumava com alfazema e me contava histórias de monstros que andavam pelas ruas matando criancinhas que desobedeciam aos pais. Eu era a criança e o monstro, mas queria que ela me amasse. Minha mãe nunca me amou. Eu a amei. E hoje me perfumei com alfazema porque ela vem me visitar. E quando ela chegar vou perfumá-la com alfazema também. E depois matá-la.

 

 

mau passo
carola saavedra

Rosi planejara tudo desde o início, a corda, a escada, o banquinho, as cartas de amor. Não que fosse necessário tanto planejamento ou antecedência, mas é que Rosi era metódica, sempre fora, desde garotinha.

Começou com as cartas de amor. Rosi, minha querida, o destino me obriga a abandonar-te, deixo contigo minha vida e meu coração. O teu sempre apaixonado, Joel Santos. Ficou ainda na dúvida se em vez de o teu sempre apaixonado, não seria melhor colocar o teu para sempre teu, Joel, que Joel Santos fosse talvez muito formal, era necessário mais intimidade, sim, mais intimidade, escreveu então, o teu completamente amante, Joe. É, assim estava bem melhor, Joe era bem mais elegante, parecia estrangeiro. Estrangeiro, claro, muito melhor, pegou outra folha, Rosi, minha querida, o destino me obriga a abandonar-te, vou tentar a sorte nos Estados Unidos, mas deixo contigo minha vida e meu coração. O teu completamente amante, Joe. Perfumou a carta, colocou-a no envelope azul-cobalto. Pensou em tudo o que perdera, em Joe nos Estados Unidos casado com outra, filhos louros e rosados, e ela que sempre sonhara com filhos louros e rosados agora ali, sozinha naquele quarto, ela, acompanhada apenas pela ausência de Joe. Esperou que a lágrima caísse, apenas ela e a ausência de Joe, duas lágrimas melhor, o seu nome agora borrado no envelope azul-cobalto. Colocou-o com cuidado em cima da mesa. Pronto, a primeira carta estava terminada, agora vinha a resposta, ou seja, a sua despedida. Joe, meu eternamente amado, a tua ausência é um látego que me fustiga a alma. Não sei viver sem ti, sem o brilho dos teus olhos ao cair da tarde. Tudo em mim é dor e pungência. Tua para sempre dolorosa Rosi.  Satisfeita como que tinha escrito, dobrou o papel, guardou-o no envelope vermelho junto com algumas pétalas secas, pétalas da rosa que ele lhe dera no dia em que se conheceram. Talvez fosse bom dizer algo a respeito, abriu a gaveta da escrivaninha e tirou de lá uma nova folha de papel, reescreveu a carta e antes do trecho dor e pungência, acrescentou, deixo aqui os restos da rosa que abandonaste, achou bonito, sorriu pensando na associação de rosa e Rosi. Tua para sempre dolorosa Rosi. Terminada a confecção das cartas passou para a segunda etapa.

Com a ajuda da escada prendeu a corda no teto do quarto, aproveitando um gancho que até poucas horas atrás ainda sustentava o peso de um enorme lustre de cristal, fez alguns nós, certificou-se de que a corda estivesse bem firme, pronto. Era um laço especial, aprendera num romance lindíssimo que lera no ano anterior, naquela época nem lhe passava pela cabeça, mas agora, agora era diferente. Agora havia Joe e o látego a fustigar-lhe a alma.

Com a maquiagem borrada, o cabelo despenteado caindo sobre o rosto, Rosi subiu no banquinho. Chorando, passou a corda pela cabeça e ajeitou-a em volta do pescoço com cuidado. Pensou por última vez em Joe, respirou fundo e com um dos pés, chutou para longe o pequeno banco que a sustentava. Porém, naquele mesmo instante, algo a fez mudar de idéia, pensou no cenário, na escrivaninha, nas cartas de amor e ficou em dúvida, primeiro a cor dos envelopes, as lágrimas, depois a escolha das palavras, começou a achar que talvez não fosse nada daquilo, que Joe talvez não fosse tão amantíssimo assim e que, quem sabe, Rosi não fosse mesmo o nome mais apropriado, ainda mais com aquelas pétalas de rosa... mas já era tarde. O corpo ainda debateu-se no ar por alguns instantes até que, já sem vida, balançou inerte no meio do quarto.

 

 

o inocente
dominique lotte

Este olhar. O rosto de sofrimento. Tortuoso doentio. Como se minha vida e meu destino se encerrassem agora, mas escuta bem. Um campeão mundial dos pesos pesados, forte, valente, corajoso. Uma mulher entra em seu quarto de hotel às três da madrugada. Eles bebem, tiram a roupa, deitam-se e fodem. Depois ela diz que foi estuprada. Estuprada?! Estuprado foi ele. Fodido. Isso sim. Mulheres como aquela gostam e querem se sentir dominadas, subjugadas por alguém como aquele cara, um gladiador. É donde elas tiram as próprias forças. Pra dominar à força. Safadas. Quase toda estuprada é assim.

Eu não te obriguei. Você quis. Queria. Até tirei a máscara pra você ver meu rosto. Mandou colocar de volta. Assim sua fantasia valia mais, né?

Quando cheguei menino nessa cidadezinha, sabe como é. Um novato, tem que dar porrada. Leva e dá. Tem que ser assim, pra ser aceito. Aprendi. Encontrei meu lugar entre os caras.

Aí conheci uma mulher mais velha. Ela me usou e abusou. Faz assim, faz assado. Eu obedecia. Gostava sim. Muito. A sacana mandava simular coisa forçada. Cheguei a sentir tesão só daquele jeito. Depois cansei. Era velha demais. As belezinhas que conheci meninas, já estavam crescidas. As do bairro onde eu morava, as mais animadas. Transei com umas duas, três, quatro. Talvez, cinco. Nenhuma se queixou. Nunca. Eu sabia, queriam ser dominadas pra sugar minhas forças. Como se acendesse em suas entranhas uma centelha de sublimidade, de pureza. Até choravam, acredita?

Manifestação brutal, animal, eu? Quer saber? Pois eu ficava cheio de respeito. Depois da foda, sentava-me na cama em desordem. Fechava os olhos, às vezes respirava com dificuldade. Sentia o cheiro do sexo dela. Absorvia tudo. Comprimia no coração a revolta da vida, chegava aos limites do mundo. Só depois, cochilava.

Então, conheci você, lembra? Numa festa. Fui levá-la em casa, depois. Foi a trepada mais correta do mundo. De manhã, acordei de frente pras suas costas. Fiquei ali, admirando. Os quadris largos. Os ombros lânguidos. Ia sair sem te acordar. Quando cheguei à porta, ouvi sua voz chamando. Querido, querido! Você veio, a gente se beijou. Lembro do seu rosto se iluminando. Sabe? Naquele instante você despertou em mim um sobressalto de emoção. Se te amo? Não sei. Mudo de opinião depois de cada duas xícaras de café...

Agora me olha com esse ar de espanto? Cheia de interrogação? O que quer de mim? Desculpas? Que eu me entregue à polícia? Que confesse? Talvez eu faça isso. Mas me diga antes. O que é o amor? Qual é a diferença de se amar a si mesmo e amar ao outro? O homem é egoísta, dominador, bruto, intransigente, orgulhoso. A mulher é vaidosa, sedutora, tem falsos pudores, é infiel, mentirosa. Entanto, às vezes eles se amam. Superam o amor de si mesmo e se amam. Isso é o amor. Passar por cima do próprio amor e amar o outro. Por que me olha tão espantada? Pensa mesmo que sou um animal?

Nunca fui vulgar. Escuto mil vozes que murmuram a felicidade. A felicidade. Não há coisa que envelheça mais depressa que a felicidade. Quando te possuí, tudo ria e cantava à minha volta. O ritmo do meu movimento dentro de você, uma  dança interior. Uma luta de desejo e preguiça. Nunca senti tanta sede de amar. De beijar. De gozar. Meu pau nunca esteve tão duro. Pelo divino. Pela beleza do espírito, sou sensível a isso. Como queria demorar meus dedos nos seus. Passear nossos rostos ao luar. Harmonizar os nossos passos e gestos. Sem nada em troca. A não ser sentir a presença de nossos corpos, mas não. Não você. Que me oferecia apenas suas faces geladas. Seus lábios indiferentes. Soou dentro de mim esse grande grito ardente. Um uivo. Diante da noite carregada de estrelas me veio a vontade desenfreada de colher de dentro de você todo o sentido daquele seu mundo desumano.

Entrei pela janela. Depois de equilibrar-me na marquise, para onde saltei da janela da vizinha, a costureira. A porta dela nunca está trancada, entrei. Você me viu. Não esboçou nenhuma reação. Ficou deitada. Percebi um sorriso, me inclinei sobre você com delicadeza. Como se pousasse a boca sobre as plumas de um pássaro. Você gemeu. Mordeu meus lábios. Você me repelia e me segurava. Como uma náufraga. Agora está aqui, com essa cara de santa maculada? Droga! Não me olha assim. Com esse sorriso contido nos lábios. Com o olhar constrangido. Você deixa o meu espirito agitado, confunde as minhas idéias, essa sua cólera surda.

Confesso a minha vergonha, minha covardia, droga, eu te amo, quando fiz aquilo, uma coisa tépida e boa se apoderou de mim, me senti leve e bem disposto. Podemos, talvez? Não? Tá bem, desculpa. Não me olhe assim, por favor. Tem certeza de que... Veja a janela. Tá aberta, é só subir no parapeito e sumo pra sempre. Duvida? Quer ver? Tá satisfeita agora? Você não reage, que coisa. Nenhum gesto pra me impedir. Já fui feliz um dia, à minha maneira, sabe? Tenho boas lembranças da minha pacata solidão. Agora vagueio entre as sombras, acabrunhado e triste. Você não percebe nada? Meu tormento, remorsos de consciência, remorsos sombrios, severos? Não terei mais nem dias nem noites tranqüilas. Você não liga. Nem pergunta, nem move a cabeça, nem muda o olhar. Só vejo desgosto. Seu mundo empalidecerá também, cuidado. Teus sonhos fenecerão. Sinto tanto. Tanta tristeza. Vou sozinho.

(Ela apoiou-se no parapeito, olhou para baixo. Viu o corpo pastoso na calçada, a cabeça no meio-fio, sangue no asfalto. Fechou a janela, puxou a cortina.)

 

 

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