edição 22 | novembro de 2007
tema livre ou diadorim

 

1 poema
marília kubota

 

 

Ele fixa o lixo

Como fosse léxico

Palavra boa é semente

Entre disparate e movimento.

 

Lapidar, almejar,

Como se alma já não fosse

Carne e pérola

Soltar velas

Contra temporais

manuais

 

Palavra nasce dentro da fome

falta           desvio

Quem não tem palavra não arrisque

 

Trabalho de poeta

É buscar sentido no escuro

(Ele não sabe tudo

a vida, osso duro).

 

 

 

l'amour
mariza lourenço

Começou a acordar com dores no peito — um certo desejo de morte — e antes que morresse de vez, sentiu ânsia de escutar canto de pássaro, de riacho desembocando no rio. Rumou para longe e foi morar numa casinha de roça. Comprou muda de flor e deixou aberta a janela para passarinho pousar.

 

Mas a dor retornou — sempre ela, a maldita — e nada dava cabo de tanta tristeza, nem riacho, passarinho ou flor.

 

— Isso é falta de amor, seu doutor. Isso é falta de amor!

 

Virou trapo de gente. Começou a ver anjo tirando leite das cabras. Era anjo mirrado, seis, sete anos, não mais.

 

Apaixonou-se e de paixão já não fazia mais nada.

 

Louco de dor, tomou decisão: colheu flor para coroar a cabeça do anjo.

 

O anjo assustado, seis, sete anos, não mais:

 

— Tio, assim me machuca.

 

Dos braços adultos não havia maneira de escapar. E com aquele delírio, só mesmo um, dois, mais de dez tiros puderam acabar.

 

E o amor terminou assim: sangrando no chão, sem dores no peito, sem visagens de anjos.

 

Como uma flor encarnada e aberta no ventre.

 

 

 

 

 

diadorim
roberta silva 

Quando acordo meio homem

não há quem me tire da cama

por causa de uma febre qualquer

 

se acordo assim

não largo o controle remoto

não lavo prato da pia

tenho nojo de rugas de tia

 

se amanhece me sinto assim

esqueço o prestobarba

não cato farelo da mesa

bom dia só dou para Teresa

fica molhado o chão do banheiro

 

nesses dias não tem para-casa

pizza ou chinesa é prato do dia

tem bombom de sobremesa

tenho fome de rua

volto tarde, nem boto o pijama

ronco, me coço, viro de lado, volto a dormir

quem sabe amanhã

levanto de novo meio mulher

 

 

 

 

 

 

 

 

o sal do hadock
ro druhen

 

Certa vez Valéria permitiu que Fernanda colasse sua prova de matemática. Quando veio o zero, não se importou, Fernanda ganhara um dez.

 

Quando seu irmão beijou Fernanda, Valéria não se importou. Seu irmão era um muito dela nos gostos e bem querenças, nas madrugadas no quintal, naquele silêncio de contar estrelas.

 

E Valéria não se importou quando Fernanda conheceu Daniel. Daniel era amigo de Fred e os quatro passaram muitos finais de semana juntos, no sítio de seus pais, e Valéria jamais se importou com os gemidos de Fernanda, no quarto ao lado.

 

Quando, em maio, Fernanda casou-se com Daniel, Valéria não se importou e, em dezembro, casou-se com Fred.

 

Quando compraram casas no mesmo condomínio, quando vieram os filhos, quando fizeram churrascos aos domingos, quando Fred morreu num acidente, Valéria não se importou. Fernanda dormiu em sua cama de viúva e lhe segurou a mão durante toda a noite em que velou o cuidado da amiga, descuidada de sua viuvez.

 

E naquele jantar de sábado, quando Maria do Sol, filha de Valéria, e Ana Terra, filha de Fernanda, fizeram com que seu amor sentasse à mesa da burguesia emergente da Barra da Tijuca, Valéria chorou. E se importou que suas filhas pudessem viver toda aquela história que ela, Valéria, transformara em apenas uma lágrima salgada, sobre o hadock.

 

 

 

 

o céu
romina conti

A Lua também tem um céu. Eu e você também. Dizem que existe Deus, mas eu só acredito no céu. Que nem sempre é azul. Vamos, não se prenda ao detalhe e olhe nos meus olhos. Não há um céu azul neles. Há uma eterna conjuntivite. Feita de baseado e licor. Meu céu é como o azul de seus olhos e tem cílios grandes como as caudas de um pavão. O pavão é um bicho feito de arco-íris. Qual será a cor do céu do planeta dos pavões? Sim, pois quando estou doidão, acho que cada bicho tem seu planeta natal. Deve ser colorido demais. Existe um céu em Van Gogh, um céu em Bacon, um céu em Kandinsky. Mas nem em todos tudo é tão azul assim. Por que o azul é a cor do céu da Terra?

 

 

 

 

verborragia
santa maria

 

Alturas causam calafrios

Giletes sujam tudo

Águas são poluídas

Venenos são intragáveis

Ácidos corroem

Drogas alucinam

Armas fazem estragos

Forcas asfixiam

Gases intoxicam

Comprimidos causam o coma

Greve de fome é tortura

Viadutos, avenidas, janelas

pontes, telhados, facas...

O melhor suicídio

é viver!

 

 

 

 

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