edição 36 | agosto de 2009
temas:  agora é quase amanhã | brinquedo | o nono mandamento
 

©simonia fukue

aurora
adelaide do julinho

de quatro

papaimamãe

chupeta

 

oh! que saudades que tenho

da minha infância querida

 

brinquedo
alice barreira

Um beijo pra Deus e o demônio que vá pro inferno. Agora posso dormir sossegada. É só fechar os olhos com força e não lembrar. O pior é que amanhã de manhã tem culto. Se pelo menos esquecessem de me acordar ou caísse um temporal ou aparecesse um furacão. Mas garanto que logo cedo minha mãe aparece na porta: "Tá na hora, vai lavar esse rosto". E lá vou eu, manga comprida, um calor de matar, a gola me espetando o pescoço e o coque que a minha mãe cisma em fazer, rodando e rodando meu cabelo. Ela diz que aperta bem pra aparafusar minhas ideias. Me dá é dor de cabeça. Merda de culto, água fria e coque! E mais coisa pra me arrepender. 

O Pastor Fonseca anda desconfiado. Eu não sei do que, mas anda. Semana passada falou que ia chamar meus pais pra uma conversa. E se ele descobre que tem uma porção de coisas? Ele está sempre me falando dos pecados. Pastor Fonseca, perna fina, bunda seca. Vive me explicando o que eu não posso fazer, senão vou pro inferno. Mas o que eu faço, pastor, o que eu faço?

Segunda feira foi meu pai que ficou furioso. Só porque eu disse pro amigo dele que não quero aprender inglês. Eu vi como ele ficou logo vermelho. Nessas horas ele incha e me bate. Acho que não bateu por causa do amigo, mas em casa, como é que você diz uma coisa dessas?, e os dedos fechando, perdeu o respeito?, e o braço esticando, você tá querendo é dormir quente mesmo, não é?, e a mão. Eu quis dizer que respeitava os mais velhos, mas que não queria aprender inglês, mas que ele não precisava zangar, se ele mandasse que eu aprendia. Qualquer coisa pra não dormir quente. Se o pastor me dissesse... Mas não saiu nem um fiapo de voz, comecei a chorar e ele não disse mais nada. Parou e ficou me olhando de lado. Deve ter achado que eu não presto. Outro dia no jantar meu irmão disse pra todo mundo que eu não presto porque ela se arrumou toda, penteou o cabelo, roubou o batom da mamãe, tentei passar um pouco e fiquei deitada na rede da sala fingindo que estava lendo só pra ficar olhando o Tavinho, que veio jogar botão com ele. Na hora do Tavinho ir embora eu me estiquei na rede e fingi que tava dormindo. Ele passou e riu. Será que me achou bonita dormindo? Será que me achou bonita fingindo? Só sei que eu gostei, porque o riso dele parecia com o da Clara.

 

*

 

Odeio ir conversar com o pastor depois do culto, mas minha mãe já apertou meu braço, metendo as unhas, como ela sempre faz quando quer brigar comigo sem ninguém notar, e ficou repetindo no meu ouvido que eu tenho que contar tudo pro pastor, tudo, tudo. Cadê coragem? Será que eles conversaram? Se ele sabe é bem capaz de dizer que eu estou mentindo, bem alto como ele gosta. E aí eu nem sei. Sei é que não vou contar nada. Eu não queria ir pro inferno, no inferno com certeza eu vou dormir quente pra sempre. Fazer o quê? Lá em casa todo mundo continua de cara feia e sem falar comigo. Se eu ameaço uma frase, minha mãe ameaça as unhas. Eu queria perguntar onde é que a Clara está, mas não falo nada, porque minha mãe pega e fica furiosa como ficou quando achou a gente no banheiro. Eu nem contei pra ela que a gente também brincava embolada na rede, embaixo da cama, dentro do armário, e a Clara me lambia e dizia que aquilo era beijo de brinquedo e eu adorava beijo de brinquedo. E ela ainda brincava lá, onde eu não posso nem falar nem pegar nem nada, pedia beijo de brinquedo e eu brincava um tempão quase sem fim.

Na sexta-feira a Clara chegou da escola, foi tomar banho no banheiro que fica lá na área e, quando eu passei, ela abriu a porta e me chamou. Entrei depressa e logo me deu aquele nervoso por dentro e aquela coisa estranha subindo pela cara. Não sei por que sempre me dá isso. É um calor, um calor dos infernos. Foi um azar danado minha mãe ter voltado mais cedo da loja. Não esqueço a cara de espanto que ela fez e que logo ficou séria, gritando nojo, nojo. Ela me pegou pelo braço. Eram dez unhas e eu tremia. Foi uma briga pra conseguir botar o vestido. Minha mãe falava mais alto que o pastor Fonseca quando tira os demônios. E quanto mais alto falava menos eu entendia. Depois tive que ir pro quarto, sem poder mexer nas bonecas nem em nada. Quando passei pela sala meu irmão e o Tavinho viraram a cara e eu também queria ter coragem pra não olhar pra eles. Sei que meu irmão falou mal de mim porque na cara do Tavinho não tinha nem um pouco daquele riso que ele me deu outro dia. Fiquei no quarto esperando meu pai, com muito medo da voz, da mão, dos dedos dele. Eu queria dizer pra ele que não sabia que era pecado, pensava que era como as bonecas e os jogos, que era só brinquedo. Mas dormi sentada à espera e desde esse dia ele não falou mais comigo. Quando estou por perto, mantém a cabeça erguida sem olhar pra baixo. Às vezes fico pensando que eles têm razão, que eu não presto mesmo.

3 contos
assionara souza

agora é quase amanhã

 

"Obrigada por ter vindo. Eu sei que é loucura, ligar assim no meio da noite. Nos conhecemos tão pouco. Talvez não houvesse outro modo. E a noite é tão silenciosa. Daqui a pouco vai amanhecer. Não gosto de me fazer inusitada. Mas o dia só acaba quando a gente sonha. E eu queria ver você. Pensei em você. Justamente por ser mais distante de mim do que qualquer outro. E tão próxima. Assim é que vejo. Precisava olhar de perto essa expressão de espanto e surpresa. Os meus amigos não se surpreendem mais. Estão todos entediados da vida. Cheios da vida, como não dizem os anúncios publicitários. Você é silenciosa como a madrugada. E eu fico enchendo seus olhos de palavras. Não é nada sério. Acredite. Só queria viver esse dia até o fim. Só queria ver no fim desse dia esses seus olhos. Um anônimo que surpreenda esse olhar solto na rua de um dia qualquer vai sentir também assim. O que digo não é absurdo. Acredite. Quero que saiba: não tenho mais medo. Os medos estão todos em mim apaziguados. Nenhum outro receio que seja pode atravessar a linha da minha tristeza. Por isso chamei você aqui. Para que o dia comece depois do sonho. Agora é quase amanhã. E a manhã surgirá coberta de um superfície silenciosa. Acolhendo os gritos do dia. O imenso dia. Depois não saberemos mais. E não saber está entre o que é temor e possibilidade".

 

 

 

brinquedo

 

— Vamos. Dance.

Pode dançar (voz da Elis Regina cantando Me deixas louca)

Isso. Dance. Como um deus silencioso.

Sobre os meus pensamentos.

Toque os seus — mimosos? — não, eu não queria usar mimosos.

Agora me lembrou Iracema.

Voz da Elis de novo: "Me lembrou — troca Carlitos por Iracema, forçando a métrica.

Voltemos, como se nada tivesse acontecido.

Como se você nem eu — esta segunda pessoa do plural que somos nós

Estivéssemos, ainda, pensando em Elis.

Toque os seus… delicados? — putz, "delicados" inflaciona. — volta o graciosos? Será?

Não. Pior.

Toque seus imaculados pés no rés

[do chão de meus pensamentos

Venha. Dance.

Mas não cante. Quero antes o silêncio.

Seria bom se você chovesse.

Seria bom se ouvíssemos uma valsa.

Ou mesmo um fado.

Dance.

Deslize adorável — sobre a

[cor do cavalo branco de Napoleão.

"Qual é?"

— Branco?

— Errou. De Napoleão, seria a resposta.

E fui eu que inventei a brincadeira. Logo, sou eu que instituo as regras.

Imponho as regras. Empunho a bandeira desse país chamado… 1, 2, 3... Já:

"Você é o comandante de um navio. Nesse navio há 40 escotilhas. Através de cada escotilha, podem-se ver 2 mesas, sobre as quais se encontram bem estendidas finas toalhas bordadas. Em cima delas, 1 vaso dentro de cada qual ajeita-se 1 ramalhete. Formam-se estes de 12 flores bem amarradas, cujas pétalas soma para cada exemplar 6 unidades. Sobrevoando 5 flores de cada vaso, asambulam 12 moscas. Atenção, agora: Quem é o comandante desse navio?"

O cavalo branco de Napoleão!

— Você acertou! Isso não é genial?! Você é o máximo, cara. Mas só porque a brincadeira é minha. Puxa! Estou emocionado. Vamos! Suba aqui no traseiro do meu cavalo e vamos achar algum lugar para comemorar!

 

 

 

 

o nono mandamento

 

— Olha, eu vou logo dizer... É melhor eu ir logo dizendo. Pode ficar tranquila, não vou tentar comer você. De forma alguma. É sério. Tudo o que eu fizer. Tudo o que eu disser... Isso! Principalmente o que eu disser. O que eu pensar, não — porque, pode ser que uma hora ou outra eu acabe pensando. Mas prometo a você; não, melhor, eu juro a você que vou fazer um esforço. Um esforço absurdo pra não pensar. O importante é que você saiba que, independentemente do que eu pensar — ah, não ia ser muito fácil não pensar — mas independentemente disso, você pode ficar super à vontade comigo. É. Você pode, olha só, você pode, inclusive, ser você mesma. Pode fazer o que você quiser. Ficar relaxada. Relax, entende?! Bem tranquila. E estou dizendo isso pois sei que não deve ser fácil mesmo. Deve ser bem difícil pra você. É. Bem difícil. Esses caras todos, usando de subterfúgios baratos pra no final você descobrir que eles só estavam a fim de uma! Uminha coisa. Única. Comigo, não. Estou aqui diante de você dizendo a verdade. Veja, eu estou sendo sincero com você. Estou abrindo total o jogo. É isso mesmo. Posso passar a noite inteira com você e em nenhum momento, perceba, em nenhum momento, vou chegar em você com intenções. Olha só, eu posso até dançar com você. A gente pode dançar. Simplesmente dançar. Se acabar na pista. Juro! Não vou jamais, jamais, ouviu?!, está me entendendo?, fazer um lance diferente para forçar uma aproximação. Sabe como? Não. Inclusive eu acho isso ridículo. Tenho pena desses babacas todos. Fico sacando os panacões se manguaçando de vodca e partindo pra cima das meninas com um arsenal de baboseiras. Querendo o quê? Ah, não ria. Estou falando sério. Do que você está rindo? Pô! Não ria assim. Comigo é diferente. Não vou dizer que eu não penso. Olhe pra você! Você sabe que é um escândalo. É. Um escândalo. Deixa disso. Você sabe. Você é mesma. Sabe que é. Todo mundo aqui sabe. Fica rindo, é? Vai rindo! Ri. Você é gostosa. Pensar?! Porra! Só se eu estivesse morto pra não pensar. Sério! Eu penso. Claro que eu penso. E, olha! Não é de hoje que eu penso. Aliás, é só no que eu penso. Você quis saber. Pronto. Eu disse. Um grande defeito meu é a sinceridade. Sou louco por você. Essa é a pura verdade. Isso é verdadeiro como esse gelo nessa vodca. Não. Louco, não. Sou tarado. Tarado por você. Eu treparia com você agora. É. Fique sabendo que eu sou muito melhor do que aquele bostinha do seu namorado. Aquele mosca. Nunca sai com você. Aqui, ó! Na frente de todo mundo, eu treparia com você. Se essa fosse a minha única chance. Única. Peraí. Que foi? Ô! Escuta! Volta aqui. Não aguenta sinceridade, não é? Bebe leite, então! Volta aqui. Pelamordideus! Ô! Mulher burra! Interpretou tudo errado. Lá vou ter culpa de ser sincero, pô?!

 

 

 

 

os emparedados
cida pedrosa

Silêncio. Todos dormiam e a tarde de agosto era morna. O vento fazia redemoinho no terreiro e surrupiava os panos estendidos no varal feito de arame. A menina olhava para o branco-cal da parede de taipa e fitava com atenção os buracos existentes. Sobre sua cabeça o barulho hipnótico dos besouros. Aos pés velhas revistas ensebadas pelo tempo. Sentada no chão esperava pacientemente fazendo pequenas bolinhas de papel. Zummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm. Um besouro se aproxima vertiginosamente da parede. Pé ante pé a menina se prepara. O besouro vara o buraco e a menina estanca o barulho com a bolinha de papel. O besouro vara o buraco e a menina estanca o barulho com a bolinha de papel. O besouro vara o buraco e a menina estanca o barulho com a bolinha de papel...  A rede range e o pai levanta. A cama de colchão de palha chia e a mãe levanta. A menina junta as revistas, olha a parede enfeitada com bolinhas coloridas e se cansa da  brincadeira.

 

 

 

3
dona cecy

país cuja capital é reykjavik. não lembro. sigla do federal bureau de investigation. fbi. bradar. gritar. masculino de noiva. noivo. referente a número. numeral. ter tremor. tremer. ––– ah cansei. prefiro o meu game do come-come. essa coisa de palavras cruzadas é uma chatice. gosto de cor e movimento  ––– mantenha a mente funcionando, dona cecy! fazer palavras-cruzadas, ler... jogar paciência e jogo da memória também é muito bom. essa médica pensa que eu tô demente?  ––– mandei marcelo trazer meu game e até agora nada. quero também ver o vídeo da minha casa ––– mamãe, seu apartamento está bem cuidado. eu garanto! ok, querido. mas escrevi num papelzinho: filme tudo e as minhas plantinhas da varanda também e depois me mostre aqui no seu notebook  ––– e eu vou lá confiar em dora? agora que ela só está indo duas vezes por semana minhas plantas podem estar todas murchas ou mortas  ––– será que já passou a hora da missa? é a única missa que presta na tv, o resto é só missa-show. não tem mais padre sério meu deus, é tudo boiola querendo ser cantor, não podem ver um palco e um microfone  ––– se padre silvano tivesse vivo... será que ele viria me visitar? passei 20 anos da minha vida na expectativa que ele me chamasse para a sacristia depois da missa pra me agarrar. ainda bem que nunca aconteceu. padre silvano era um santo e tinha um olhar de menino  ––– padre: o que é pecar? é não amar a si mesmo e nem amar os outros, minha filha. a partir daí a gente começa a descer a ladeira  –––  ainda bem que nunca aconteceu. quem iria me aconselhar e ouvir minhas queixas? –––  meus segredos são para poucos  –––  o poeta carlos pena filho dizia: cecy, você é um transatlântico que não afunda mas afunda quem está dentro. nunca entendi. deixa pra lá ––– e o titanic? disseram que nunca iria afundar  –––

 

 

 

 

 

 

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