edição 39 | março de
2010 temas: recomeço |
platonismo | chuva
casamento da
viúva adelaide do
julinho
sol
com chuva
água
e luz na
escura
vulva
3 poemas adriana
versiani
*
hoje
sonhei ser segredo,
seu
segredo,
algo
distante de mim.
aquilo
que mora no pulmão do maestro,
enquanto
pausa, enquanto lembra, enquanto espera o som.
sonhei
ser antes da pintura da nave,
antes
da tinta ou das mãos,
antes
da ideia.
sonhei
ser segredo,
seu
segredo.
*
Janelas
vedadas com cera de mil abelhas
para
que o sol não desperte a memória da infância.
Muro
alto,
floresta
negra dos pesadelos.
Uma
gata no cio me atormenta.
Atravesso
a rua,
chove
na minha aldeia.
castanha
X
Começo
a caminhar com as mulheres que se alimentam de
castanhas.
Suas
casas, vidraças quebradas;
no
fundo, o leito seco de um córrego
;
gatos enterrados no jardim.
Chamam-nas
Noivas do Cordeiro e têm a pele branca e nunca mais verão a neve ou as
folhas girando com o vento.
Seus
homens se foram e seus filhos estão mortos.
Caminho
abraçada às irmãs e planto coisas e não colho flores e jamais olharei
novamente para a lua.
IX
Dia
Santo.
Escorpiões
atormentados guardam a Palavra envolta em musselina.
As
noivas, em entrega íntima, prosternam-se diante do que em si é
sagrado.
Relevo
árido.
Suas
pegadas são para sempre, não há vento que as
consuma.
VIII
Encontra-se
agachada.
Abelhas
zunem e sente dores nas terminações nervosas.
Sozinha.
Perdida.
Esse
é o sinal para que uma legião de vermes invada a pata do
cordeiro.
VII
Agora
matam seis cachorros.
Matam
para beber e para comer.
Matam
porque sentem sede e fome.
Usam
o couro para fazer sapatos.
Fazem
sapatos porque caminham.
Por
esses motivos, matam.
VI
Chove
e não me lembro que estou molhada.
Toda
mãe é capaz do ódio.
Quando
criança, juntei gravetos, mutilei insetos.
A
areia é meu abrigo e ninguém me acompanha.
Ele
apontou para mim e disse:
—
Mulher, estás grávida, respeites o silêncio das
coisas.
V
São
noivas e cobrem o corpo com o barro da margem.
São
virgens, água é espelho, se unem ao rio.
IV
Dia
lindo!
Não
ouço mais o som que vem do
céu.
©sippanont samchai
carta a uma jovem escritora alice
barreira
Posso
te responder dizendo que escrevo por fatalidade, pelo destino. É como um
incêndio interior. Quanto mais penso em abafá-lo, mais o vejo alastrado e
voraz, me consumindo. Escrevo por fatalidade. Fatalidade duplamente cruel
porque nela vivo na ansiedade insatisfeita, porque com ela nasci num país
onde o respeito às pessoas que escrevem quase não
existe.
Se
você pretende mesmo ser escritora largue esse texto agora. Tente ler João
do Rio, por exemplo, de quem eu copiei o parágrafo acima. Isso mesmo, João
do Rio, ele sim, um escritor, que renovou nossa literatura e nosso
jornalismo, enfrentando, entre outros, o preconceito homofóbico da
sociedade. E até essa frase é um lugar-comum resultante de não mais do que
uns 50 segundos na internet. Na verdade nem me dei ao trabalho de ler João
do Rio, copiei o parágrafo de um livro de João Antônio, outro "sim, um
escritor". Eu? Apenas mais uma fracassada que não soube usar seu fracasso
para fazer literatura.
Desabafo
não é literatura. É assim que Cecília Meireles inicia suas memórias, no
livro A Idade do Serrote. Ela
está citando outra poeta, Emily Dickinson, em outras memórias escritas em
outra língua e em outro século. Quem está mentindo ao citar tanto? Eu
gostaria de citar Clarice Lispector mas sempre fiquei paralisada no meio
de seus textos, como se tivesse perdido o polegar e não conseguisse mais
segurar a caneca do café de manhã. Também não li Os Lusíadas, os sermões de Vieira,
Eça, Dostoiévski, quase todo o Rosa... A lista é enorme, cansativa e eu
seria capaz de escrever uma tese sobre os grandes clássicos que não li,
embora lembre com dificuldade alguma página lida semana passada. Também vi
muita tv e li muito gibi mas não prestei a devida atenção naquilo pra
vomitar algo pop em meus escritos. Ou não tomei as drogas certas. O que eu
estava fazendo, você é capaz de querer saber. Aquela montoeira de coisas
que acaba se transformando na nossa vida e que quando a gente espreme não
sobra quase nada. Pra não perceber essa ausência, criei o hábito da
bebida. Comecei aos quatro anos, com um tio tirando os dentes de leite
meus e de meu irmão e nos dando cerveja como anestesia. Na adolescência eu
não dançava bem, não era bonita nem ao menos charmosa, mas conseguia beber
tanto quanto qualquer um dos rapazes, uma verdadeira façanha para uma
adolescente, e assim arranjei uns beijos e as primeiras transas. Em casa
ninguém dizia nada. Meu pai, que chegava bêbado todas as noites, sentia um
certo orgulho de ter uma sucessora, mas ficava calado, fingindo
aborrecimento. E eu segui bebendo tudo o que aparecia pela frente. Hoje
não durmo uma noite sem me embriagar, o que me dá a segurança da diversão
garantida. Nada de sustos, surpresas, a minha decadência física eu sei
muito bem de onde vem. Entre os porres, leio, vou ao cinema, tenho uma
família, trabalho e escrevo. Não sei por quanto tempo, como qualquer
abstêmio. E estou longe de ser um Bucowski de saias.
Tempo.
Eis a matéria para a literatura, dizem. Mas o que fiz além de perder
tempo? Hoje é uma boa alternativa, um bom negócio, tem mercado, mas eu
perco tempo sem conseguir perdê-lo. Pareço aqueles cães correndo em volta
do rabo. Levo minhas idéias para passear e piso na merda dos cachorros que
a vizinhança também leva para passear. Cachorros abanam o rabo, coisa que
as palavras não fazem, ao menos para mim. Fui escrever para quê? Chegar
junto de mim? Pode ser, mas não consegui me encontrar nem criar uma
escrita que pudesse chamar de minha. Não sei o que buscava nem como seguir
buscando o que não sei. E não tenho um cachorro.
Parei,
reli e reescrevi quase tudo que havia escrito para você. É curioso. Você
nunca saberá o que estava escrito antes, até eu já não me lembro bem. Hoje
com o computador não existem mais rascunhos. Eu reescrevo muito, agora sem
deixar pistas, mas mesmo que deixasse seria inútil, não descubro o que
falta, não percebo o que sobra e acho que já disse isso. Quem sabe eu
tenho alguma doença que impede que eu me concentre. A gente sempre tem a
esperança de tudo ser uma doença. Doenças têm cura, coisa que a vida a
maior parte do tempo não tem. Talvez eu precisasse de um tom mais irônico,
mais desencantado, mas sempre desando pro melodrama barato e autopiedoso.
Tudo é ah! e "esses pontos de exclamação pulando por todo lado", como
disse Raul Bopp. (Mentira, ele não disse.) Para comprovar é só continuar
lendo essa carta, que eu pretendia objetiva.
A
objetividade? Sempre fui covarde. Não acredito em Deus e tenho medo do
Diabo. Desde pequena foi o medo quem guiou tudo o que escolhi e decidi. E
meus personagens fogem, se recusam a ir lá ou a qualquer lugar e, já nem
digo enfrentar seu destino, mas pelo menos fazer alguma coisa. Não
precisavam matar ninguém mas podiam vomitar no banheiro, fazer uns
suspiros, sei lá. Não, querem subir no palco e ficar falando, falando.
Precisavam ser enfiados dentro de um ônibus com uma placa: fale ao leitor
somente o indispensável. O único tempo que existe é o do relógio com seus
ponteiros eternamente se repetindo sobre os mesmos números. Escrever?
Bobagem.
Esse parágrafo todo aí de cima deve ser retirado. Faça você mesma o
serviço, estou exausta. É só riscar. Objetividade com certeza é a primeira
coisa a se perder na literatura. Não sei, o que eu queria te dizer?
Cheguei a fazer um cronograma, a idéia toda, com princípio, meio e fim,
comparações com outras autoras, citações, intertextualidades, tudo. Mas o
trabalho que ia me dar. Sinto muito, desisti. É isso o que eu sou.
Desistir. Eu e mais um bilhão, nada de novo. Dói um pouco, e nem são
pontadas, nada com a dramaticidade de um câncer, só aquela dorzinha chata,
miúda, vagabunda e que não para nunca.
Mas
ainda posso tentar de novo.
Comecei
cedo. As paixões aos seis anos são violentas e eu tive duas: um amigo de
meu irmão e as histórias que meu avô contava. O amigo sumiu por aí, parece
que morreu no incêndio de um circo em Niterói. As histórias ficaram
comigo. Havia uma coleção, O
Tesouro da Juventude, não sei se você conhece. A do meu avô ainda era
grafada com ph e possuía uma estante de madeira pequena, com dois andares,
envernizada, que eu guardo até hoje. Mas os livros se perderam. Me
perderam. As Fábulas de Esopo,
O Livro dos Porquês, Cousas que Devemos Saber, O Livro dos Contos, O Livro das Belas Ações, Homens e Mulheres Célebres, O Livro da Poesia. Na abertura
diziam algo como "Enciclopédia de conhecimentos para pessoas cultas,
oferecidos de forma adequada e para proveito e entretenimento dos
meninos". Não sei o que eles tinham contra o proveito e entretenimento das
meninas mas, enfim, não eram os únicos a encrencar com isso. E havia
também Monteiro Lobato. Daí, quando aos treze anos me encantei pelo mundo
mundo vasto mundo da poesia, sempre me lembrava deste começo. Começos
botam a gente comovido como o diabo.
Também
copiei esse trecho, de um escritor obscuro chamado Cesar Cardoso, que
publicou um único romance: Américo
Faz a América, onde conta a história de seu avô, um português que aos
onze anos é largado pela família em Belém do Pará e tem que enfrentar a
vida. Meu avô, que também era português, tinha uma boa história que eu
desconheço e outra que alinhavei em alguns parágrafos mas não passei
disso. Ele me deixou um armário cheio de livros que folheei
superficialmente e mais tarde vendi por quase nada num sebo. Julio Verne,
Tarzan, Cazuza, X9, Camilo Castelo Branco, álbuns de figurinhas, Stephan
Zweig... Havia um dicionário, Lello
Universal, em dois volumes grandes, editado no Porto, no final do
século 19. Tenho saudades de abrir as páginas daquele dicionário e as
portas de madeira daquele armário embutido, sentir o cheiro dos livros de
meu avô. O chão era de tacos, idênticos aos do chão do quarto e aquilo me
impressionava. Ainda vou muito a sebos e um dia gostaria de encontrar um
daqueles livros. Mas isso não vai acontecer. Pelo menos como literatura.
Aos 17 anos me apaixonei por uma amiga. Estudávamos juntas pro vestibular
de Letras. Passamos, eu cada vez mais apaixonada, fazendo poemas pra ela,
que enlouquecia aos poucos e nem conseguiu terminar o curso. Quando acabei
a faculdade, telefonei para convidá-la para a festa de formatura. Sua tia
atendeu e me contou que um mês e meio antes ela se atirara pela janela do
apartamento. O que me falta para escrever essa história, que eu já comecei
nove vezes, cinco das quais cheguei até o fim, mas acabei jogando tudo
fora, pela janela dos meus escritos?
Pensei
em construir um estilo, uma obra e por fim tentei finalizar decentemente
um livro que fosse. Mas desviei do meu caminho e quando quis voltar não
sabia por onde tinha vindo nem onde estava. Ou então não havia caminho
nenhum, foi só uma impressão errada que tive. Mais uma. Quis viver de
escrever e fui aonde me pagaram. Sim, me pagaram religiosamente — ah, as
religiões!, sem nunca atrasar um mês, para que eu escrevesse tudo o que
não fosse escrever, cotidianamente e em grande quantidade. E eu aceitei.
Não vou dizer que foi de bom grado, mas aceitei, é o que importa. Ou não
importa, mas resulta. E o que é que se faz com bons resultados? Literatura
é que não é.
E
você, está aí? Como vou saber? Até me esqueci que isso é uma carta e tem
uma destinatária, como todas as cartas. Já vivi mais da metade da vida, a
essa altura não posso ter sonhos para daqui a 40 anos. E isso é só uma
constatação, sem pontos de exclamação pulando. Mas, você, a quem escrevo,
sim, você pode. Sonhar, ir, voltar... Você ainda é jovem. Uma jovem
escritora, não é mesmo? Então desista. Não tente. Vá fazer outra coisa.
Qualquer coisa. Menos escrever. Desista. Desista. É para você que escrevo,
para mim mesma. Preciso falar com quem fui há trinta anos. E lhe dizer:
não faça isso. Pare de beber ou não pare, dê aulas ou não, mexa em tudo na
sua vida. Mas não escreva. Tente escutar essa carta, possivelmente inútil
e perdida no tempo. Você precisa. O passado não pode ser só algo que
aconteceu. Estamos sempre com ele, não estamos? Então, por que eu não
posso falar com a jovem que fui há 30 anos? Você tem que chegar a essas
palavras. São as únicas certas que fiz. Ou que valem alguma coisa, certas
ou erradas. Por isso te escrevo. Você, quem sabe, ainda pode me evitar.
Deve haver uma forma. Procure. A ciência tem avançado tanto. A física
quântica está descobrindo novas dobras no tempo, sabia? Tem de haver uma
maneira de você, que é quem eu fui, me escutar. E não ser. E
desistir.
Eu
quero descansar. E quando você souber eu não terei mais nada para
contar.
shirley ana
próspera
Ficaram
três coisas dentro do seu Adeus.
1.
O acidente.
Penso
manchetes, fetiche, oficina do diabo. Acidente de carro mata ator
brasileiro em Massachusetts. Ator brasileiro morre em acidente de carro.
The Untold Story perde
protagonista em acidente. Diretor expressa sentimentos sobre a morte de
protagonista. Oscar homenageará Frederico Roxo. Museu da Imagem e do Som
faz retrospectiva da carreira de Frederico Roxo. Imagem inéditas de The Untold Story são reveladas.
Corpo de Frederico Roxo será velado em São Paulo. Esposa desmaia ao ver
corpo de Frederico Roxo.
2.
O dia 16 de maio de 88,
quando
chegou sua carta, que fiquei lendo em voz alta infinitas vezes na frente
do espelho. Muito romântico, o dia estourara impiedoso no céu,
amarelíssimo, depois do anterior, cinza de torrenciais. Você disse que
chegava de Dallas em uma semana, que passei lustrando a pele com vichy no
primeiro banho e talco johnson's para o sono. Retoquei as raízes e ensaiei
com avidez a dancinha fatal. Meu mundo você é quem faz. E você caiu na
minha armadilha sedosa. Tenho o tubinho de faixas verticais e cores
diferentes até hoje, só não uso mais. Ficamos no apartamento do papai até
que a garrafa de gim acabasse. Depois saímos. Madrugada tinhosa, dobrou-se
rapidinho. Tirei sua camisa para que todos reparassem no seu corpo de
incrível virilidade natural, que conservou para sempre. Encostei a cabeça
no seu ombro, nunca mais tirei. Nunca mais.
3.
O horizonte branco.
Voo
rasante sobre a memória. Sem pouso. Você continua insistindo, como um eco.
A cama vazia, quase asséptica.
Ando dormindo no sofá. Tem noite que é dia; tem dia que não passa. Ouço
vozes repetindo os postulados da sua morte. Mamãe não me esquece. Para as
visitas solidárias, há sempre óculos escuros cobrindo os olhos. Evito. Seu
fantasma está aqui. Eu sei. Seu cheiro nos lençóis. As lembranças corroem.
O tempo que não cicatrizo. Me pego solta sofrendo de amor, nenhum cuidado.
Coração rufando sem fim. Bem-aventurados aqueles que não amam. Castram o
desejo. Os vizinhos não entendem por que as luzes ficam acesas.
Sortilégios. Ainda compro dois pãezinhos para o café. Sem perspectiva. Sem
correspondência.
1 poema, 1 miniconto carla luma
geografia
meus
pés se acostumaram
ao
itinerário das chuvas
por
canais extravagantes
levando-me
para distante
para
muito além da curva
onde
dois rios se separam
no
vale de chuvas eternas
onde
dois rios se separam
separam-se
minhas pernas
me
transformo em estuário
meu
corpo crespa torrente
cemitério
de corsários
volatilizo-me
e subo adiante
precipito-me
nexo contrário
a
água suja suja suja tudo
Vivessem
vocês como vivo, de rua em rua, porta em porta, beco em beco, aqui fazendo
unha de madame, ali vendendo um batom, acolá um boquete, teriam ódio de
chuva. Eu tenho. É atraso de vida. Queda certa e imediata no faturamento.
Ou vocês pensam que comprei apê e new beatle com literatura? A porra agora
se agravou. Culpa, dizem, do tal de aquecimento global. A chuva é diária o
dia inteiro e eu tenho new beatle, não tenho barco. O celular só toca pra
desmarcar. Acho até que não dá mais pra morar aqui em Sampa. Voltar pra
Jacarezinho nem pensar. De lá só o meu travesseirinho, que mamãe recheou
com penas de ganso retiradas de um velho cobertor. Taí duas palavras que
me causam arrepio: ganso e cobertor. Chuva? Chuva não. Odeio. Aliás, não
entendo porque, com tanto progresso, tanto desenvolvimento, ainda não
cuidaram de cobrir as ruas das cidades. Cobrir e climatizar, obviamente.
Imaginem transformar São Paulo em um gigantesco shopping center? Ficaria chiquíssimo. Pensei em me
mudar pra Salvador, mas me disseram que o que eu faço por grana a
concorrência faz lá por prazer. Odeio chuva. Talvez vá para o Rio. Apesar
que lá também chove, penso que será mais fácil conquistar os votos de que
preciso pra entrar na Academia Brasileira de Letras. Posso descolar um apê
no Leblon próximo ao de João Ubaldo Ribeiro, que é baiano de Itaparica e
com certeza odeia chuva tanto quanto
eu.
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