edição 40 | maio de 2010
temas:  um verso de Ana Cristina César | mesa de bar | jardineiro, flores, jardim

 

rosa

mariza lourenço

 

 

novamente em tua boca
aberta entre as pernas
: a flor

e vai a vida, sem espinhos. entre as pernas fechadas uma flor respira aos solavancos. sobrevive, não se sabe como, entre escombros de lembranças mortas. e quem pode com a vida? e quem sabe dela? ninguém, nem o espinho que surge de inopino, ou o cheiro manso de orvalho que desponta em meio à aridez de mil e tantas noites sem amor.
quem sabe, afinal, da vida? ou das surpresas que se revelam instantes úmidos? quem sabe, talvez, a boca tua. ou a tua mão. artífices perfeitos para acordar quem dorme. para molhar de gozo a rosa inculta, bela e minha.
e vem a vida, assim, com todos os seus espinhos, seus cheiros, e uma saudade faminta da mão que abre as pernas. da boca que rega a flor.
a minha (e tua) rosa.

e que seja sempre assim, a vida. acordada e em desacordo com o tempo que não passa enquanto não vens.

 

 

pra ana c: um acalanto, uma última correspondência

e meu baudelaire que tanto te quer

nina rizzi

 

 

acalanto

 

"em maio todas as flores renascem azuis"

(Jorge Amado)

 

o meu regaço de tantas flores

te cheira molhado àquelas de ninaR.

 

 

 

última correspondência para ana cc

 

"A ponto de/ partir, já sei/ que nossos olhos/ sorriam para sempre/ na distância/ Parece pouco?". (Ana Cristina César)

 

anita, sei que prometi lhe deixar em paz. não mais imundiçar sua vida, já tão vermelha, com essas letras tão tortas não apenas pela falta de pautas. eu juro que tentei parar todo esse jazz. lamentos de velhos escravos. e cheguei mesmo a pensar que havia me olvidado de ti. era a falta do sono. eu toda esqueleto nada fashion.

 

tenho visto muitos sapatos na cidade-solar. mais que na capital dos calçados. então há três ou quatro dias consegui dormir. um sono curto e grosso. sempre os velhos sonhos, ana: fugimos, amamos. às vezes eu, noutras você. por que me acordou se queria meus olhos bem fechados, ana?

 

tem umas batatas fervendo no óleo ao meu lado. o fogão é torto e a panela pode entornar. você tem tanto medo de ficar desfigurada. e penso que atraímos esses medos. acha o meu rosto e pernas mais lindas do mundo. mãos e bocas mais eficientes você dizia. hoje já não sou aquela gulosa, ana. que há bocas esperando minha arte. hoje acordei bemol. sim estava sol sustenido, mas aquela carta me estilhaçou os pedaços. eu era cinzas e você chegou a lenha. você é palha, ana.

 

se você visse agora meus músculos, a rigidez de meu corpo que se tornou quase-atlético. era esse o motivo que queria pra passear de mãos-dadas no shopping? tenho novas roupas também! indianas e largas e coladas e sexys. nenhuma azul que é pra não te aborrecer. verdes, vermelhas, negras, lilases. cor, ana! e não me importo que me cubra os pés com milk-shake de ovomaltine. é o meu preferido. em suas mãos de sessão-infantil.

 

suas letras eram tão desesperadas que subiam um morro de hipotenusa. você pagou tão caro praquele homem me trazer chocolates e a carta de tão longe àquela hora da madrugada. era porque o shopping estava fechado, a outra desmaiada ou, de fato, sentiu imensa a minha falta, mas agora dias depois do envio ficaram obsoletos os senos e cosenos? quem sabe não deve ter sido o meu mal a te contaminar. e num dia, sem mais nem menos, acordou e não era você, mas alguém que desejasse e agisse o contrário. não há duas sem três. que dói demais esse querer-pérolas. eu na concha acústica dos seus ecos. fecho-me autista. digo o querer em plenitude e peso e, no entanto, fechava os braços à hora de partidas e partilhas. mulher das cavernas platônicas, tão urgente quando em distância e relapsa nos encontros. você está certa com sua sabinada independente. eu insustentável.

 

foi terrível esta noite. o vizinho de cima esqueceu o telefone que tem o toque qual o meu. de segundo em segundo te crendo bebêda. até que montei acampamento no banheiro e me esvaí em vômito e fezes, que não sei engolir os cacos, nem segurar o vidro moído. há pouco desci à bodega da esquina e hidratei meus olhos com dois cocos bem gelados. mas ainda há muito o que regurgitar. como se fosse assim possível te arrancar o peso de mim.

 

assim, finalmente, livramo-nos uma da outra. acabo de saber que não podemos nos ouvir. que está morta. você me testou, ana. você se matou! uma atitude tão única que não permite testes. sinto tamanha amargura que mesmo de estômago embrulhado quero comer todos os bois do mundo até parecer uma daquelas vacas que você tanto aprecia. apreciava. aprecia que é viva em mim.

 

já conversei com o porteiro e ele vai me trazer chás alucinógenos. então expilo de mim as curvas e fica só os paralelos. lado B. que agora retorno à velha janela a contemplar carpelos e lírios. ellaiágun. ficar a fumar o tabaco barato que me restou da insônia. e não te digo mais. 4.700 substâncias tóxicas não me são suficientes. mas já sobe a fumaça duma lombra promissora e leve. melhor remédio que masturbação. que meus dedos são impacientes e sua voz ausente.

 

tranquei a porta pra o mensageiro não ver os juncos ao redor dos meus olhos que hoje estão incrivelmente verdes. que é pra não entrar nada além do cheiro que intuo. cianureto e corticóides.

 

 

good-bye vera lynn,

 

[vou] ninaR.

 

 

 

baudelariana

 

queria arvorescer cajamangas,

o sulco dos cactos, suculentas.

 

mas já não sei o que me é permitido

nessa rua suja de despeitos.

 

 

 

 


©audrey

 

grande canal

(De Memórias de Patty Flag)

patty flag

 

"Também eu saio à revelia

e procuro uma síntese nas demoras"

"Psicografia", de Ana Cristina César

 

Em 1996 a Igreja Universal em Copacabana tinha um pequeno gramado na entrada. Tal carola, fiz dele jardim, sem ganhar nada com isso além da satisfação das rosas.

 

Em 1996 a Igreja Universal em Copacabana tinha um pequeno gramado. Tal carola, fiz dele jardim sem ganhar nada com isso além da satisfação de queixar-me às rosas.

 

A igreja Universal em Copacabana tinha um pequeno gramado na saída. Fiz dele jardim sem ganhar nada além da satisfação de, quatro anos depois, roseiras maduras, arrancá-las e rasgar as septuagenárias mãos em dia de fúria e espinhos.

 

Com as mãos ainda pingando sentei-me à mesa do bar qualquer sujo nunca fui de cerimônias primeiro uísque desde que entrara para a igreja comemoração não temia mais o inferno vida para encarar peguei dez guardanapos de uma vez do porta-guardanapos ensebado de digitais sem identidade com nove estanquei e limpei o sangue das rosas cor-de-rosa no décimo escrevi as primeiras linhas de meu primeiro romance cor-de-rosa outro uísque eu sabia que não voltaria ao inferno linhas concluídas em dois anos vendi por quinhentos hoje escrevo uma novela em dez dias cinco mil ao mês:

 

"Depois de tudo o que aconteceu nos últimos dias, não poderia imaginar que viveria um sonho em Veneza. Verônica foi sozinha à viagem que planejara com Rômulo. Ao menos aproveitaria a passagem. Quando abriu as janelas do quarto, a paisagem descortinou-se e deixou escapar uma lágrima. Lá embaixo, um gondoleiro, com seus braços fortes, conduzia com serenidade um casal apaixonado pelo Grande Canal". 

 

 

bonfim
priscila lira

 

Dentro da cabeça de cada um de nós há uma semente, e quando morremos essa semente pode ser plantada e da terra renasce a sua cabeça.

Sua cabeça renasce na terra da cidade de Bonfim, no jardim do Seu Armando. As sementes de muitos defuntos do mundo são compradas por Seu Armando e plantadas em seu jardim.

Em Bonfim, se alguém quer que sua amada aceite o pedido de casamento, é só presenteá-la com uma cabeça. Também há as mal-amadas que suportam a vida comendo uma cabeça por semana, que ganham de seus odiados esposos. A raiva e a carência são extravasadas com as unhas das damas rasgando a boca das pobres e caras cabecinhas e arrancando suas línguas com uma ferocidade de quem ama. Nos casos de pedidos de casamento, as apaixonadas ficam admirando seus lindos presentes por dias a fio até que ele apodreça e só reste a saudade dos bons tempos. É claro que algumas mulheres de Bonfim nunca ganharam e nunca ganharão uma cabeça. Mas passam todo o tempo de suas vidas imaginando o momento inesperado em que elas estarão mais lindas que nunca e seus (também imaginários) pretendentes baterão à porta com as mãos suadas, então ela (a porta) se abrirá e os rapazes ficarão de joelhos com o presente em uma das mãos estendida para sua amada.

A patroa dá um grito e as sonhadoras sorriem e vão dobrar os lençóis.

Verdade é que todas essas cabeças são de uma efemeridade inevitável, já que depois que apodrecem ou são digeridas, ninguém lembra sequer como era o seu sorriso. Sim, todas as cabeças nascem sorrindo e morrem sorrindo. Isso em Bonfim,  aqui todos sabem que já se nasce chorando. As cabeças só permanecem na memória de quem nunca as teve.

Seu Armando, como todo jardineiro, tem muito orgulho do seu jardim. Mas o que ele não sabe é que uma vez arrancada a semente da cabeça do defunto, a memória de todas as pessoas que o queriam bem (ou mal) apaga de uma vez por todas a imagem do dito cujo.  Caso não lembres mais do rosto de seu finado esposo, já descobriste a razão.

 Soube que uma moça dobradeira de lençóis certa vez se enfureceu com sua má sorte, pois já estava velha para casar e nada de baterem à sua porta, e foi ao jardim com uma faca, disposta a cortar o pescoço (ou caule, como preferir) de todas aquelas cabeças que nunca seriam suas. Não o fez. Ninguém descobriu o que aconteceu, mas hoje é mulher de Armando, não dobra mais lençóis e come línguas e olhos todos os dias. Sabe-se que ela nunca mais sorriu e o jardim continua alimentando esperanças, estômagos e apagando memórias.

 

 

unhappy hour
ro druhens 

Ele, no escuro do bar. De costas. A cabeça meio inclinada na direção do copo e da cereja. Ele gostava de Martini doce.

 

Nenhum espelho que a ela devolvesse olhos, sorriso, barba talvez já crescida àquela hora. De há muito. A outra hora. Desde quando uma chave foi plantada no vaso de comigo-ninguém-pode.

 

Ela, no escuro do bar. Quando o viu passar a caminho da chuva que molhava a pressa de outras despedidas, acertou-lhe a nuca com um caroço de azeitona. Ela gostava de Martini seco.

 

 


©audrey

 

noites de botequim
santa maria

I

 

— Você acredita em Deus?

— Quando bebo, sim.

 

 

II

 

— O que deseja, senhor?

— Um beijo.

 

 

III

 

— Bebo porque a vida é cíclica.

— Bebo porque a vida é cítrica.

 

 

 

 

compartilhar:

 
 
temas | escritoras | ex-suicidas | convidadas | notícias | créditos | elos | >>>