edição 40 | maio de
2010
novamente em tua boca
pra ana c: um acalanto, uma última correspondência e meu baudelaire que tanto te quer
acalanto "em
maio todas as flores renascem azuis" (Jorge
Amado) o
meu regaço de tantas flores te
cheira molhado àquelas de ninaR. última
correspondência para ana cc "A
ponto de/ partir, já sei/ que nossos olhos/ sorriam para sempre/ na
distância/ Parece pouco?".
(Ana Cristina César) anita,
sei que prometi lhe deixar em paz. não mais imundiçar sua vida, já tão
vermelha, com essas letras tão tortas não apenas pela falta de pautas. eu
juro que tentei parar todo esse jazz. lamentos de velhos escravos. e
cheguei mesmo a pensar que havia me olvidado de ti. era a falta do sono.
eu toda esqueleto nada fashion. tenho
visto muitos sapatos na cidade-solar. mais que na capital dos calçados.
então há três ou quatro dias consegui dormir. um sono curto e grosso.
sempre os velhos sonhos, ana: fugimos, amamos. às vezes eu, noutras você.
por que me acordou se queria meus olhos bem fechados,
ana? tem
umas batatas fervendo no óleo ao meu lado. o fogão é torto e a panela pode
entornar. você tem tanto medo de ficar desfigurada. e penso que atraímos
esses medos. acha o meu rosto e pernas mais lindas do mundo. mãos e bocas
mais eficientes você dizia. hoje já não sou aquela gulosa, ana. que há
bocas esperando minha arte. hoje acordei bemol. sim estava sol sustenido,
mas aquela carta me estilhaçou os pedaços. eu era cinzas e você chegou a
lenha. você é palha, ana. se
você visse agora meus músculos, a rigidez de meu corpo que se tornou
quase-atlético. era esse o motivo que queria pra passear de mãos-dadas no
shopping? tenho novas roupas também! indianas e largas e coladas e sexys.
nenhuma azul que é pra não te aborrecer. verdes, vermelhas, negras,
lilases. cor, ana! e não me importo que me cubra os pés com milk-shake de
ovomaltine. é o meu preferido. em suas mãos de
sessão-infantil. suas
letras eram tão desesperadas que subiam um morro de hipotenusa. você pagou
tão caro praquele homem me trazer chocolates e a carta de tão longe àquela
hora da madrugada. era porque o shopping estava fechado, a outra desmaiada
ou, de fato, sentiu imensa a minha falta, mas agora dias depois do envio
ficaram obsoletos os senos e cosenos? quem sabe não deve ter sido o meu
mal a te contaminar. e num dia, sem mais nem menos, acordou e não era
você, mas alguém que desejasse e agisse o contrário. não há duas sem três.
que dói demais esse querer-pérolas. eu na concha acústica dos seus ecos.
fecho-me autista. digo o querer em plenitude e peso e, no entanto, fechava
os braços à hora de partidas e partilhas. mulher das cavernas platônicas,
tão urgente quando em distância e relapsa nos encontros. você está certa
com sua sabinada independente. eu insustentável. foi
terrível esta noite. o vizinho de cima esqueceu o telefone que tem o toque
qual o meu. de segundo em segundo te crendo bebêda. até que montei
acampamento no banheiro e me esvaí em vômito e fezes, que não sei engolir
os cacos, nem segurar o vidro moído. há pouco desci à bodega da esquina e
hidratei meus olhos com dois cocos bem gelados. mas ainda há muito o que
regurgitar. como se fosse assim possível te arrancar o peso de
mim. assim,
finalmente, livramo-nos uma da outra. acabo de saber que não podemos nos
ouvir. que está morta. você me testou, ana. você se matou! uma atitude tão
única que não permite testes. sinto tamanha amargura que mesmo de estômago
embrulhado quero comer todos os bois do mundo até parecer uma daquelas
vacas que você tanto aprecia. apreciava. aprecia que é viva em
mim. já
conversei com o porteiro e ele vai me trazer chás alucinógenos. então
expilo de mim as curvas e fica só os paralelos. lado B. que agora retorno
à velha janela a contemplar carpelos e lírios. ellaiágun. ficar a fumar o
tabaco barato que me restou da insônia. e não te digo mais. 4.700
substâncias tóxicas não me são suficientes. mas já sobe a fumaça duma
lombra promissora e leve. melhor remédio que masturbação. que meus dedos
são impacientes e sua voz ausente. tranquei
a porta pra o mensageiro não ver os juncos ao redor dos meus olhos que
hoje estão incrivelmente verdes. que é pra não entrar nada além do cheiro
que intuo. cianureto e corticóides. good-bye
vera lynn, [vou]
ninaR. baudelariana
queria
arvorescer cajamangas, o
sulco dos cactos, suculentas. mas
já não sei o que me é permitido nessa
rua suja de despeitos.
(De
Memórias de Patty Flag)
"Também
eu saio à revelia e
procuro uma síntese nas demoras" "Psicografia",
de Ana Cristina César Em
1996 a Igreja Universal em Copacabana tinha um pequeno gramado na entrada.
Tal carola, fiz dele jardim, sem ganhar nada com isso além da satisfação
das rosas. Em
1996 a Igreja Universal em Copacabana tinha um pequeno gramado. Tal
carola, fiz dele jardim sem ganhar nada com isso além da satisfação de
queixar-me às rosas. A
igreja Universal em Copacabana tinha um pequeno gramado na saída. Fiz dele
jardim sem ganhar nada além da satisfação de, quatro anos depois, roseiras
maduras, arrancá-las e rasgar as septuagenárias mãos em dia de fúria e
espinhos. Com
as mãos ainda pingando sentei-me à mesa do bar qualquer sujo nunca fui de
cerimônias primeiro uísque desde que entrara para a igreja comemoração não
temia mais o inferno vida para encarar peguei dez guardanapos de uma vez
do porta-guardanapos ensebado de digitais sem identidade com nove
estanquei e limpei o sangue das rosas cor-de-rosa no décimo escrevi as
primeiras linhas de meu primeiro romance cor-de-rosa outro uísque eu sabia
que não voltaria ao inferno linhas concluídas em dois anos vendi por
quinhentos hoje escrevo uma novela em dez dias cinco mil ao
mês: "Depois de tudo o que aconteceu nos últimos dias, não poderia imaginar que viveria um sonho em Veneza. Verônica foi sozinha à viagem que planejara com Rômulo. Ao menos aproveitaria a passagem. Quando abriu as janelas do quarto, a paisagem descortinou-se e deixou escapar uma lágrima. Lá embaixo, um gondoleiro, com seus braços fortes, conduzia com serenidade um casal apaixonado pelo Grande Canal".
bonfim
Dentro
da cabeça de cada um de nós há uma semente, e quando morremos essa semente
pode ser plantada e da terra renasce a sua cabeça. Sua
cabeça renasce na terra da cidade de Bonfim, no jardim do Seu Armando. As
sementes de muitos defuntos do mundo são compradas por Seu Armando e
plantadas em seu jardim. Em
Bonfim, se alguém quer que sua amada aceite o pedido de casamento, é só
presenteá-la com uma cabeça. Também há as mal-amadas que suportam a vida
comendo uma cabeça por semana, que ganham de seus odiados esposos. A raiva
e a carência são extravasadas com as unhas das damas rasgando a boca das
pobres e caras cabecinhas e arrancando suas línguas com uma ferocidade de
quem ama. Nos casos de pedidos de casamento, as apaixonadas ficam
admirando seus lindos presentes por dias a fio até que ele apodreça e só
reste a saudade dos bons tempos. É claro que algumas mulheres de Bonfim
nunca ganharam e nunca ganharão uma cabeça. Mas passam todo o tempo de
suas vidas imaginando o momento inesperado em que elas estarão mais lindas
que nunca e seus (também imaginários) pretendentes baterão à porta com as
mãos suadas, então ela (a porta) se abrirá e os rapazes ficarão de joelhos
com o presente em uma das mãos estendida para sua amada.
A
patroa dá um grito e as sonhadoras sorriem e vão dobrar os
lençóis. Verdade
é que todas essas cabeças são de uma efemeridade inevitável, já que depois
que apodrecem ou são digeridas, ninguém lembra sequer como era o seu
sorriso. Sim, todas as cabeças nascem sorrindo e morrem sorrindo. Isso em
Bonfim, aqui todos sabem que
já se nasce chorando. As cabeças só permanecem na memória de quem nunca as
teve. Seu
Armando, como todo jardineiro, tem muito orgulho do seu jardim. Mas o que
ele não sabe é que uma vez arrancada a semente da cabeça do defunto, a
memória de todas as pessoas que o queriam bem (ou mal) apaga de uma vez
por todas a imagem do dito cujo.
Caso não lembres mais do rosto de seu finado esposo, já descobriste
a razão. Soube que uma moça dobradeira de lençóis certa vez se enfureceu com sua má sorte, pois já estava velha para casar e nada de baterem à sua porta, e foi ao jardim com uma faca, disposta a cortar o pescoço (ou caule, como preferir) de todas aquelas cabeças que nunca seriam suas. Não o fez. Ninguém descobriu o que aconteceu, mas hoje é mulher de Armando, não dobra mais lençóis e come línguas e olhos todos os dias. Sabe-se que ela nunca mais sorriu e o jardim continua alimentando esperanças, estômagos e apagando memórias.
unhappy hour Ele,
no escuro do bar. De costas. A cabeça meio inclinada na direção do copo e
da cereja. Ele gostava de Martini doce. Nenhum
espelho que a ela devolvesse olhos, sorriso, barba talvez já crescida
àquela hora. De há muito. A outra hora. Desde quando uma chave foi
plantada no vaso de comigo-ninguém-pode. Ela,
no escuro do bar. Quando o viu passar a caminho da chuva que molhava a
pressa de outras despedidas, acertou-lhe a nuca com um caroço de azeitona.
Ela gostava de Martini seco.
noites de botequim I —
Você acredita em Deus? —
Quando bebo, sim. II —
O que deseja, senhor? —
Um beijo. III —
Bebo porque a vida é cíclica. — Bebo porque a vida é cítrica.
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