edição 41 | julho de
2010
fidelidade
que
seja
infinita enquanto duro [de
um poema de Vinicius de Moraes]
3 poemas
pelada
nua despida Pornográfico,
ainda não havia reparado bem nos músculos das tuas coxas. Pornográfica,
talvez. Espada tricolor, não. Não sou essa. Definitivamente, não sou essa.
Vejo com clareza esse jogo: invista na defesa e sebo na doce canela doce
do atacante. Chora noivinha: seu amor transou com o irmão da nossa tia.
Músculo da coxa, e viva a santa panturrilha. Mia neném, no teu velório
chorei bastante e estendi sobre o caixão a bandeira do teu time de
predileção. Definitivamente não entendias nada de futebol e entediavas-me
na cama. Falo bem de você só porque valeu a pena morder tuas panturrilhas.
Pornográfico, ainda não desvendei por dentro os músculos tensionados das
tuas coxas. Pornográfica, talvez. [por
causa de Nelson Rodrigues] dolores Risque Meu
nome do seu inferno Desse
universo moderno Da
sua fala vazia. [de
uma música de Ary Barroso] super-herói Meu
super-herói de brinquedo tinha capa, asas
e lutava contra moinhos de medo. Uns
anjos giravam no vento e diziam: —
Fica menino, fica! Ainda é cedo. Meu
super-herói de brinquedo tinha
uma luz que brilhava dentro. Só
os anjos sabiam seu segredo. Para
Matheus
o gigante do maracanã Ontem
nem era meu aniversário, mas o pai trouxe uns panos e disse pra mãe fazer
uma camisa e uma bandeira pra mim. Tinha pano verde, vermelho e branco e
eu perguntei se não podia ser tudo vermelho, que eu gosto mais e o pai
mandou eu largar de ser besta que vermelho era o América e ninguém lá em
casa era América, sabe por que?, porque a gente é Fluminense, Fluminense.
Eu disse que não sabia que eu era Fluminense, Fluminense, lembrei que o vô
era Vasco e o pai explicou que tudo que é português é Vasco, que antes de
ser time era um homem lá de Portugal que vivia só viajando de navio e eu
achei que deve ser ruim ficar só viajando de navio mas o pai não ouviu.
Ele não gosta muito de ouvir, prefere é falar. A
mãe passou a tarde no vai-e-vem da máquina de costura e de noite me chamou
pra experimentar a roupa nova. Eu tinha que ficar quieta porque a roupa
estava cheia de alfinetes, só que o mano veio espiar e ficou dizendo que
aquilo era roupa de palhaça e que eu era palhaça, mas eu expliquei que não
era nada disso, eu até quis só vermelho mas vermelho é América e ninguém
lá em casa é América mas ele só ficava dizendo palhaça-palhaça-palhaça e
depois que a mãe ralhou não dizia mais nada com a boca mas fazia uma cara
que era igualzinho. Também, quando ele tava vendo aquele filme que eu não
posso ver porque tem muito tiro e muita morte, eu fui na caixa de botão e
roubei o melhor do time dele, aquele que o pai fez com casca de coco e
encobre bem à beça. Hoje
de manhã eu já queria vestir minha roupa nova mas o pai explicou que a
roupa era pra eu ir com ele no Maracanã. O pai já me levou no cinema, na
lanchonete, na praia, no restaurante mas nunca nesse Maracanã e a mãe logo
arregalou os olhos mas antes que ela abrisse a boca o pai já foi falando
que não tinha perigo nenhum, que eu não ia me perder e eu ainda falei que
nem ia ter ataque de asma que nem o mano mas a mãe nem escutou, arregalou
mais os olhos e disse que era a final, a final, repetiu, mas dessa vez
quem não ouviu foi o pai e eu fiquei imaginando que final era aquela, será
que o tal do Maracanã ia acabar? Depois
do almoço eu botei minha roupa que ficou mesmo como a mãe disse, boazinha
e sem nenhum alfinete e dava pra eu pular e eu até queria pular, mas o pai
logo falou que não era pra pular agora coisa nenhuma, sua besta, a gente
ia era pular na hora do gol e o mano riu e ficou fazendo aquela cara de
novo mas eu nem liguei porque escondi o botão dele no bolso pra zunir bem
longe lá no Maracanã. O pai pegou um monte de charutos e uma garrafa de
champanhe, explicou que tinha que levar isso tudo porque a gente ia ser
campeão, a gente entrou num táxi, o pai mandou eu segurar a bandeira do
lado de fora da janela e eu nem gosto de segurar nada do lado de fora da
janela mas era uma bandeira lindona, com as mesmas cores da minha roupa e
a mãozona do pai ficava bem do lado da minha e lá ia eu com a bandeira pra
gente ser campeão. Tem
aquela estátua grande em cima do morro que o pai disse que é o Cristo mas
nem se parece com o Cristo que a vó tem pregado numa cruz dentro do
armário e ela pega o terço e fica falando mal do vô e da cidade onde a
gente mora porque ela quer voltar lá pra terra dela. Mas nem o Cristo do
morro era tão grande como o Maracanã, caramba, e tinha um mundo de gente
com roupa e bandeira que nem a minha e todo mundo gritava, o pai gritava
também, eu ria e comecei a gritar junto e a gente implicava com as outras
pessoas que só tinham roupa preta e branca, que nem era colorida como a
nossa e eu já tava era gostando de ser campeão. O
pai foi explicando e eu juro que nunca tinha visto nada assim. Nenhum
gramado assim, nenhuma arquibancada assim, nenhuma geral assim, nenhum gol
assim, nenhuma torcida assim, nenhuma grama verde com tanto verde assim. E
onde eram as cabines do rádio, as cadeiras de número e até por onde os
jogadores iam sair. E não é que o pai sabia tudo mesmo?, porque os
jogadores saíram direitinho daqueles buracos na grama e foi uma gritaria
muito maior, só que do nosso lado era mais bacana, que a gente ainda
jogava talco pro alto e o pai me deu uns saquinhos que ele trouxe num
embrulho e eu ia jogando e olhando o talco se espalhar pra todo lado. Aí o
pai perguntou se eu tava vendo um homem lá embaixo e tinha tanta gente,
mas ele explicou direitinho que era o careca e falou pra eu mirar bem e
jogar o saco na cabeça do careca e eu olhei pro pai desconfiada que eu nem
conhecia o tal careca mas o pai só fez que sim com a cabeça, eu mirei,
mirei, mas cadê coragem?, e o pai segurou minha mão na mão dele e
vuuuuum... em cheio! O careca levantou, acho que olhou direto pra mim, eu
me agarrei no pai, o careca xingava, todo mundo ria, o pai ria e o careca
ria também. O
pai acendeu um charuto pro jogo começar, o moço de preto que é juiz apitou
e me deu um frio danado na barriga. O pai ia ensinando os nomes de quem
pegava na bola, o Castilho, o Altair, o Escurinho, o Jair Marinho, o
Valdo, menos do outro time, que esses tinham todos o mesmo nome de filho
da puta. Só tinha um jogador de preto e branco que eu aprendi o nome
porque ele pegava na bola e ia passando por todo mundo, até pelo Altair, e
a gente ia ficando em silêncio, em silêncio e dava pra ouvir o pessoal do
outro lado gritando Garrincha-Garrincha-Garrincha. Acho que só derrubando
que ele parava porque o pai e mais um monte de gente gritava derruba esse
puto, derruba!, e eu ajudava fechando o olho bem forte pra não sair gol
contra a gente. Se funcionava pra não aparecer nem monstro nem ladrão de
noite podia bem funcionar aqui também né, pai?, mas o pai achou que não,
eu tinha que ficar de olho aberto o tempo todo pra ver o jogo, onde já se
viu, porra?, e eu fiquei e descobri que era bem bom olhar o
Garrincha-Garrincha-Garrincha passeando com a bola, pena que ele vinha pra
cima do gol da gente, por que ele não fazia ao contrário? Mas isso eu nem
perguntei pro pai.
O
pai olhava e olhava o relógio porque o jogo tava quase acabando e a gente
ia ser campeão. Aí o Garrincha-Garrincha-Garrrincha pegou a bola e todo
mundo gritou de novo derruba ele, derruba!, mas não é que o Altair não
derrubou?, nem ninguém?, e não é que o Castilho que podia botar a mão na
bola porque era goleiro dessa vez nem botou e eu nem consegui fechar olho
nenhum e só via alegria do outro lado que gritava gol e gol e gol, não
terminava nunca. Agora o pai dizia que o Escurinho e o Altair também eram
filhos da puta mas aquela raiva toda foi ficando pequena, bem pequena,
parecia até que o pai ia chorar, se não fosse o pai eu juro que ele tava
chorando, mas não podia estar porque o pai não chora nunca, não é que nem
a mãe que eu sei quando ela chora que logo começa a tremer o beiço. E aí o
juiz de preto resolveu apitar que o jogo tinha acabado e eu olhei foi em
volta e era só uma tristeza toda, toda, toda. Uma tristeza maior até que o
verde. Quando
a gente desceu a rampa de volta a bagunça tinha mudado de lado e o pai
chamava eles de palhaços e eles só gritavam é campeão e
Garrincha-Garrincha-Garrincha. Eu enrolei a bandeira que nem tinha mais
graça balançar ela e falei pro pai que era muito ruim a gente não ser
campeão e ele nem disse nada, me deu a garrafa de champanhe, andou comigo
até um daqueles moços de roupa preta e branca, falou pra eu dar a garrafa
pra ele e eu fiquei olhando pro pai com olho de pergunta e ele só fez que
sim com a cabeça. Daí eu dei a garrafa, o moço ficou olhando, a gente
continuou descendo a rampa, o pai acendeu o último charuto, a gente entrou
num táxi e eu senti o botão do mano quietinho lá no bolso do calção e
deixei ele lá. Em volta muita gente ainda gritava
Garrincha-Garrincha-Garrincha e no rádio do táxi um moço disse que estava
deserto e adormecido o gigante do Maracanã e eu olhei pra trás e pensei
que ele era gigante mesmo e dormi no ombro do pai.
1 conto, 1 poema
Aperfeiçoando
o imperfeito Fui
ao Vaticano e não vi o papa anjos nem a Capela Sistina. Na África do Sul
preferia ver o Nelsinho, mas tive que me contentar com Kaká, Robinho e
outros anjinhos cheios de poses e de pouca inspiração. Aturei com o meu
característico zen-cinismo as desculpas de Dunga e de Jorginho, assim como
extensíssimas horas de jabulanis voando sem rumo e de vuvuzelas soando
como trombetas do juízo final. Quase volto surda. Faz mal não. Não sou
aquela que se desmancha em lágrimas e tristeza pela pátria de chuteiras.
Saí no lucro: faturei uma boa grana do industrial paulistano que me levou
para interpretar o papel de esposa, comi bem, bebi melhor, só não trepei
bem porque o cara é de muitas tentativas e de raros êxitos. Fiquei quase
tão invicta quanto a defesa da seleção suíça, que estabeleceu na copa o
inútil recorde de ficar mil e não sei quantos minutos sem tomar gol.
Conheci lugares lindos e outros bem miseráveis, mas confesso que em alguns
momentos, principalmente quando os cabeças de bagre do meio campo da
amarelinha erravam passes laterais, eu sentia saudades da minha infância e
me recordava vividamente de Afonsinho, aquele que mereceu uma canção de
Gilberto Gil, "meio-de-campo". Pra falar a verdade, eu não havia nascido no tempo que ele jogou, mas papai, torcedor do Botafogo, narrava apaixonadamente as atuações de Afonsinho e conhecíamos todos os episódios da sua carreira, desde quando foi revelado em 1962 pelo XV de Jaú, a sua estréia no fogão em 1965, sagrando-se bicampeão carioca, bicampeão da Taça Guanabara, campeão da Taça Brasil e do Torneio Rio-SP. No início dos anos 70, auge da ditadura militar, Afonsinho foi "afastado" do time e impedido até de treinar porque usava barbas à Che Guevara, porque era politizado, porque era culto, porque estudava medicina, porque não aceitava ser tratado como mercadoria. Rebelando-se contra a "Lei do Passe" que fazia do jogador de futebol escravo dos empresários e clubes, que tinham o poder absurdo de impedir o livre exercício profissional, Afonsinho travou uma batalha jurídica e política, obtendo a propriedade de seu próprio passe, ou seja, o passe livre. Obviamente que o cartel formado pelos interesses contrariados barrou-lhe a entrada nos grandes clubes. Tudo isso papai nos contava com orgulho, como se se tratasse de um filho e quando papai morreu tocou-me como parte da herança um poster com a foto de Afonsinho e um compacto de vinil com Elis Regina cantando a música de Gil.
A
guardadora de rebanhos O
meu olhar é turvo como água suja. Tenho
o costume de rastejar nas sarjetas sem
olhar para os lados e
nem de vez em quando eu olho para trás... O
que eu não vejo a cada instante é
sempre o mesmo que antes eu não tinha visto, Eu
não sei se sei dar por isso muito bem... Não
sei ter o sobressalto estúpido que
teria um idoso se, ao falecer, reparasse
que falecera deveras... Não
me sinto falecendo a cada momento para
o eterno tédio do Universo... Creio
no Universo como numa abstração, porque
penso nele. Mas não o vejo porque
pensar é compreender... O
Universo se fez exclusivamente para pensarmos nele não
para olharmos para ele e estarmos de acordo... (Ver
apenas é estar doente do cérebro) Eu
não tenho sentidos: tenho filosofia... Se
falo na Natureza é porque sei o que ela é, não
porque a amo, e não a amo por isso, porque
quem não ama sempre sabe o que não ama e
sempre sabe por que não ama, e sabe o que é não
amar... Não
amar é a eterna perspicácia, e
a única inteligência é pensar... [de
um poema de Fernando Pessoa]
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