edição 41 | julho de
2010
morava
numa cidadezinha perdida no México e nunca se acostumara àquele calor
infernal e à espera terrível pela hora de Maria, quando ele chegava para o
jantar. não
havia muito o que fazer além de matar o tempo matando coisas, a maioria
delas tão desnecessária e infernal quanto o calor que
sentia. não
se ressentia das perdas. e
já não havia muito o que matar. além
dele, logo após o jantar.
(de Memórias de Patty Flag)
Luzes
apagadas, cortina cerrada, cerveja na geladeira. 2002, uma falta imensa de
Oromar, de uma discussãozinha tola, de explicar pra ele que não, eu não
torceria para a Alemanha. Ele não entenderia e riria de mim se o Brasil
marcasse primeiro, ou choraria se fosse a Alemanha a marcar — os homens
são mais sinceros no futebol. Lâmpada
na geladeira, cortina apagada, cervejas cerradas. 1934, eu tinha oito anos
quando a Alemanha ficou em terceiro lugar na Copa da Itália. Lembro bem de
meu pai colado no rádio, a loja fechada, o mundo em suspensão — os
clientes podiam esperar. Luzes
cerradas, cortina na geladeira, cervejas apagadas. 1938 foi o ano em que
vi meu pai chorar duas vezes. A primeira, com a Alemanha saindo-se tão mal
em campos franceses; a segunda, na Kristallnacht. Meu
pai que a Alemanha matou em um campo de concentração, quase morria quando
a Alemanha entrava em um campo de futebol: não sobreviveu para ver a
Alemanha Ocidental campeã em 1954. Alemanha Ocidental, Oriental, Muro de
Berlim. Palavras com duplo sentido, mundo sem sentido algum.
Céu
aberto, duzentos mil brasileiros em roupas de gala e juventude. 1950, duas
horas após o gol uruguaio, Maracanã vazio, Guilherme, homem irretocável,
trincava devagarinho sobre o concreto orgulhoso. Fim
de jogo, cortinas abertas. Ainda que o ensurdecedor Rio de Janeiro se
incendiasse em festa, sua risada alta e inconfundível queimava minha pele.
Oromar não perderia a piada. Fim
de jogo, cortinas abertas. O Kelle Wasse lentamente se afastava da costa,
abrindo um Mar Egeu dentro de mim. Meu
pai era o triste capitão.
Sonho
todo desgraçado dia a mesma coisa há semanas. Provavelmente porque desde
que sonhei não consigo meter mais nada na cabeça. Bato, bato e nada entra.
Até não dormi essa noite para evitar a agonia, passei o dia todo
cochilando e vendo recortes da mesma história. Não
sei se isso aconteceu de verdade algum dia, desde sempre tenho o péssimo
hábito de confundir sonhos com realidade, só sei que dessa vez é sonho
porque dias não se repetem. Mesmo assim, a primeira vez pode ter sido
real. E terrível. A agonia vem da minha impotência.
Não há nada que eu possa fazer com aquela gorda que me puxa do meio da rua
pra um beco desconhecido. Nessa hora eu não consigo
gritar. Daqui
a pouco vou para a cama e não me sinto nenhum pouco preparado para lutar
contra o sono, ou lutar contra a gorda, ou lutar contra mim. Vai acontecer
de novo, eu sei. O pior é que quando durmo, sou um menino. Que asco. O
pior é que o asco está desaparecendo. Que asco. Começo
a achar incrível a capacidade que a repetição tem de me fazer mudar de
ideia. Eu sou tão pequeno e ela sabe que não posso fazer nada. Com aquela
roupa escura e grudenta que cola no seu corpo amorfo de tão gordo. Não sei
onde começa o pescoço e terminam os pés. Ela
me puxa e cospe na minha cara. Eu não grito. Arregalo os olhos e forço a
garganta inútil. E de repente me vejo envolto por seu cuspe que prende
meus braços e pernas e me impede de pensar em
acordar. É
terrível. Mas agora sinto que estou cada vez mais seduzido pela gorda. Ao
mesmo tempo em que me desespero todas as noites, não a tiro do pensamento
durante o dia. Sua roupa escura e grudenta que cola no seu corpo amorfo de
tão gordo me faz ter espasmos de loucura à luz do sol.
Então
ela cospe em meu ouvido e diz: "Todos eles somem daqui depois de mim,
assim que eu meter a língua na tua boca, tu não existirás". Eu fecho os
olhos e acordo preso em meu suor, o dia amanhece e tudo se repete. Meu
medo é que um dia as coisas mudem e eu abra a boca e não feche os olhos
nessa hora. A gorda me pegou com sua gosmice. E eu sei que quero sua
língua na minha garganta. Que
asco.
iracema do brasil A virgem dos lábios de mel saiu da sua terra natal e chegou à cidade trazendo grandes vontades na sacola. Queria ser atriz de televisão, casar com um galã de carro, ter dois filhos de olhos claros e morar em um arranha-céu de frente para o mar. Arrumou logo um emprego de faxineira. Levantava cedinho. Passava. Lavava. Cozinhava. E sonhava. A índia de sorriso mais doce que o favo do jati conheceu o mar, levou um susto, porque era maior do que imaginava. Escrevia cartas para a família, inventando coisas boas. E vivia a sonhar. Foi repousando na areia da praia, após se banhar nas águas que a rorejavam, que Iracema, a morena pura, abriu os olhos e viu um estranho a observando. Um gringo loiro e de fala engraçada, que vivia em outro mundo. Armaram um encontro. Iracema, de hálito mais perfumado que a baunilha recendida do bosque, se ajeitou toda. E viveu a noite mais feliz da sua vida. Até segredou a ele os seus desejos. No dia seguinte, despediu-se do homem que levou embora a sua pureza, prometendo voltar. Iracema esperou até cansar. Cortou os cabelos mais negros que a asa da graúna e tingiu-os de ruivo. Aprendeu a beber para esquecer a dor. Maquiou o rosto para esconder a tristeza. Comprou bijuterias para enfeitar o desespero. Trocou os vestidos para mostrar o corpo. Teve outros amores. Aprendeu a tomar pílulas e esqueceu que um dia sonhava. Hoje, a ex-morena virgem, outrora mais rápida que a ema selvagem, antiga graciosa que corria o sertão e as matas do Ipu, não tem mais o mesmo nome. Diz se chamar Kassandra com k e lampeja as tardes e noites a roçar com o pé grácil e nu o pink cetim que veste a cama no apartamento que não é um arranha-céu de frente para o mar. Fuma cigarrilhas importadas, veste penhoar e cerca-se por outras raparigas, enquanto espera pelo próximo cliente. Sobre o futuro, quer emagrecer, fazer plástica no nariz, lipo nos quadris e aumentar os seios. Sobre o passado, costuma dizer que nasceu e se criou por aquelas bandas mesmo.
[ em memória de José de Alencar ]
poema descarado Quando
nasci, um anjo gaiato desses
que andam perdidos na vida cochichou
segredos ao meu ouvido e disse: Vai! Todo
sábado tem sol, todo
domingo tem missa, toda
segunda tem preguiça, todo
dia eu tenho saudade. Meus
olhos são verdes porque era o destino deles: com
o tempo ficaram cruéis e traiçoeiros. Pra
que tantos olhos, respondem minhas pernas cansadas. Porém
minha alma não
pergunta nada. Matilde,
míope, atrás das lentes carimba,
grampeia e despacha. Fala
mais do que pobre na chuva. Sonha
em ganhar na loteria 30
anos atrás das lentes e do balcão da repartição. Deus
me fez forte pra poder tropeçar, mas
não me contou por que a melancia tem
tanto caroço. Mundo
mundo mais pequeno, se
eu me chamasse Marieta seria
uma bela rima e só. Mundo
mundo mais pequeno, meu
coração, um grão de milho. Eu
fui. E vou te dizer: poeta
é quem atira
pedra na lua e
depois vai buscar. [de
um poema de Carlos Drummond de Andrade]
2 contos pelada A
mão pequena e lisa, como que regida por um frenesi musical, não parava de
ir e vir, ora ao doce receptáculo, ora aos lábios. Cá e lá. Lá e
cá. A
língua ousava estender-se, acompanhando o ritmo surdo, procurando nuances
de sabor em cada gota caçada com indizível prazer. Dedos
trabalhavam leves, umedecendo-se no líquido viscoso, trazendo-os à boca
que, gulosa, os sugava sem nenhum decoro. Os
últimos e insistentes movimentos de cabeça denunciavam o final, um êxtase
de sabor que jamais se desfaria em reminiscências. Bons
tempos aqueles, "limpando" a tigela de compota da vovó, depois do
futebol. confissão Digo
de mim no embalo espiritual da cachaça — pois confessar assim o é, mesmo
que nenhuma gota se haja sorvido: uma erupção que vem e queima por dentro,
cinzenta fumaça sem cigarro, transe sem terreiro. Sobem
desejos ardentes, lembranças voláteis clamando por luz. Minha vertigem mil
vezes aumenta, o raciocínio não se sustenta, a garganta se irrita, a
língua sem freios vomita e o ouvinte engole em gozo toda essa
fita. Difícil
falar de mim como de outros que invejo, de pintar-se com as emoções do
dia, as belezas da tarde, os desejos da noite e os terrores da madrugada.
Por mais que me solte, não há coisa que mais revolte do que me saber num
jogo sem regras, sem réguas, sem tréguas. Não temo a vontade, adoro
auditório, realizo ousadias e me aprazem valentias. Mas também sei ser mais eu, sendo apenas o que sou. Tenho amor e paixão, cama e colchão, uma janela para o espaço. De lá espio e voo, até aqui soo, faço o que digo e digo o que faço. Sou quem sou, sou quem arranha e morde, sou tirana e torpe, sou santa e profana: mulher aranha.
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