edição 43 | dezembro de
2010
mindinho
um
mala
4 textos
darkness
Conheço
a noite, pesadelo povoado pela Besta, terra onde ela aplica seus
métodos.
Nós,
de suas unhas compridas e sujas, vigiamos.
Conheço
o pesadelo, noite povoada pela Besta, terra onde ela aplica seus
métodos.
Nós
, de suas unhas compridas e sujas, vigiamos.
Universo
povoado pelas sombras,
conheço
a escuridão de suas unhas.
réquiem
para guiomar
Guiomar,
No
dia da sua morte, cortaram-lhe as tranças.
Júlia
embrulhou-as no papel de seda.
Porque
é tradição jogar dentes no telhado, amarrar com fitas pequenas mechas de
cabelo, carregar corpos pelas ruas em procissão, acender velas, lançar
flores nas covas, chorar, entoar cânticos, levar as crianças para que não
se esqueçam.
O
ritual da queimação, dos corações fragilizados, dos
soluços.
Guiomar,
No
dia da sua morte foi assim:
Júlia
agarrou-se à caixa e chorou sobre as cinzas.
no
mundo das pequenas coisas
as
casas de Minas têm interior
não
se dá por elas o que vai por dentro
saída
dos fundos opção que se estende até os becos e pedras dos muros
um
dia interrompida pelo diabo aceso que arrasto
larguei
o chicote na mão do inimigo
cachaça
procissão, luto
porque
não fui visitá-lo no seu leito de morte amigo
agora
agonizo
entrei
no mundo das pequenas coisas
afeto
não se explica nada foi vivido tudo anda escondido
alguns
perguntam o que sabe a criatura do calabouço
sentenças
gavetas onde estão quardados
os indícios véus missais botões bilhetes e
suas
transcrições
acostumei-me
ao ritmo é este o veredicto:
essa
não presta queimem seus escritos
E
A ALMA QUE LHE DEI?: — ESQUEÇA, INSISTO.
ando
triste às vezes choro
sei
fazer samba do Sinistro
vivo
pelas pontes praças precipícios
oceano
Se
algum dia nos fosse dado mergulhar nesse oceano de minúcias e nus, no
fundo, nos víssemos de perto e se suas mãos ásperas apertassem minhas
coxas e abrissem minhas pernas e se sua boca sugasse de mim o que tenho de
fluido e se você derramasse em mim sua seiva e me engendrasse seus
mistérios e me amordaçasse com algas para que eu não gritasse e se seus
dentes roçassem os meus mamilos e os marcassem e meus lábios lhe
mostrassem outros caminhos e revelassem na minha língua seus
segredos.
Se
algum dia nos fosse dado, seria preciso gemer baixinho para não acordar os
peixes.
coisa diacho
tralha
1.
beijo
cuspido na pia
calcinha
retorcida na torneira
a
figueira seca do amor
brotando
cegueiras
flores
de lepra
lágrimas
de cebola insone
na
mesa posta o prato de louça inglesa
o
peixe de silicone
e
o que boia na sopa
revolvida
com a colher
coleção
de cacos de vidro
para
não esquecer
2.
lembro
da tua pele branca
que
minha alma já assinara
brancura
que nunca fora
rindo
o vinho derramado
sonho
de teu gozo antigo
com
ânsias de cartomante
mares
dantes do castelo
cartas
nunca navegadas
ai
quiséramos amores
naufrágios
assinalados
3.
gira
sol
e
aquece
a
paixão
que
esquece
e
anoi
tece
a
sol
idão
4.
sobrevivente
da calamidade
amor
não tem cara nem metade
amor
coisa diacho tralha
não
divide nem migalha
amor
silêncio da loucura
todo
dia contigo amanhece
amor
inferno que você carrega
e
desconhece
ele não sabe com quem mexeu
Deus,
a Natureza, essa força misteriosa graças à qual existimos — e acerca da
qual não ouso aprofundar especulações para não prejudicar a pele, as unhas
e o juízo — nos castigou com a maternidade e, para compensar, deveria nos
conceder imunidade contra certos sentimentos, entre os quais o amor, que
também estraga a pele, as unhas e o juízo. Sobretudo o
juízo.
Ontem,
depois de muito tempo, quase dois eternos meses, mergulhada na escuridão
da loucura à qual fui atirada pela paixão por um cafajeste que me
conquistou com barris e mais barris de lábia e de lágrimas, emergi quando
num átimo de lucidez saquei que o dito cujo conseguiu me extorquir quase
todo o saldo da caderneta de poupança com o pretexto de que era um
empréstimo para estabelecer-se no comércio.
A
estúpida aqui se sentia enlanguescida quando o filho da puta me dizia que
já não conseguia suportar os ciúmes e a dor que sentia quando me sabia nos
braços de outro homem, mesmo sabendo que para mim é um serviço como outro
qualquer, no qual não há sentimento algum envolvido. E dizia que me
libertaria dessa escravidão quando o seu negócio começasse a dar lucro, e
me fazia assinar outro cheque.
Quase
dois meses me enrolando. Nunca me disse onde investia o meu dinheiro. É
uma surpresa. Mas é comércio do quê? Em qual rua? É uma surpresa, no dia da inauguração você vai ver. A
loja está ficando linda, mais dois ou três meses. Espere, tenha calma. E
beijava os meus olhos, beijava as mãos, a boca e me arrancava a roupa, me
comia e me fazia assinar outro cheque.
Ontem
eu não resisti à curiosidade e resolvi segui-lo. Peguei um táxi porque
temia perdê-lo neste caos que é o trânsito em São Paulo. Melhor não dar
aqui todas as voltas que o carro deu até chegar em uma rua no Tucuruvi.
Ele estacionou e entrou em um prédio de apartamentos. Esperei uns cinco
minutos e entrei no prédio. Francisco, o velho porteiro, encantado pela
generosidade do meu decote, era todo loquacidade e em menos de dois
minutos eu já sabia que o meu amantíssimo gigolô era casado e pai de três
crianças.
Subi
ao 904. Abriu a porta uma garotinha linda com cerca de sete ou oito anos
de idade. Ela sorriu e aquilo me desarmou. Vi-me naquela menina. Vi-me
quando tinha medo de escuro e me enfiava entre papai e mamãe quando
acordava assustada com a escuridão da madrugada. Vi-me quando me escondia
debaixo da cama para não assistir papai bêbado espancando mamãe. De dentro
uma voz de mulher perguntou quem era. Baixinho eu disse que era engano e a
menina gritou para dentro que era engano. Desci chorando de raiva porque
não consegui executar o meu plano de vingança. Não, eu não poderia fazer
aquilo. Aquela garotinha, seus irmãos, sua mãe, eles não tinham culpa da
minha estupidez.
Ontem
não voltei pra casa, como quem não voltaria para um quarto escuro.
Caminhei à-toa, depois fui para a casa de Amália Malaquias, amiga cuja
alegria contagiante é sempre capaz de me transformar o humor, de trazer-me
de volta à luz. Agora, em casa, refeita, escrevo esse relato que se não
servir pra nada mais, servirá pra que eu não me esqueça e caia outra vez
na tentação de uma vida normal. Miguel ainda não sabe que eu sei. Hoje,
quando vier, será recebido como se nada tivesse acontecido e eu o farei
broxar, eu o humilharei naquilo que ele se considera infalível e eu o
tangerei como quem tange uma vaca velha que não dá mais leite nem cria. Eu
o cuspirei como quem cospe bagaço de fruta chupada. Ele não sabe com quem
mexeu.
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