edição 44 | outubro de
2013 literardente adelaide do julinho sem analgia cuspia no cuzinho que comia
3 poemas adriane garcia arrastão
Mas
gostar de ir no fundo Era
encontrar-me também Com
um tanto de areia A
encher-me o vazio E
a boca Era
por isso que eu deixava Que
me arrastasse E
lançasse de volta Como
fez com as outras Era
por isso que a pele Escoriava E
como era mar Já
salgando Podia
ser que algas Que
eu travestia me fizessem Bonita Mas
eu era só Um
peixe quase Morto. o
pranto em que comeram
Tantos
já se alimentaram De
mim Que
eu já não poderia separar O
que é sêmen de saliva você
mesma
Viva,
mulher! De
frente ao espelho Apalpe
o seu seio Direito
e esquerdo Sorria Viver
é preciso E
quanto mais cedo Melhor Não
esqueça essa lágrima Mas
passe um batom De
que gosta.
2 contos tudo
já, ao mesmo tempo, agora
How to start?
Eu outra vez,
olhos na tela, mãos no teclado, pensamento na sua lembrança, Maria
Tereza. De que modo
startar sua presença? Teclo um
botão, dois cliques, e foi! Isso é automático, não há perguntas nem
mistérios, embora permaneça encantado com essas várias janelas que podem
ser abertas, tantas, escancaradas para a passagem do vento, sobrepostas.
Uma, duas, três, ou 'ene', o nome do ferrolho: link. Cadê o sol?
Pergunto-me em silêncio olhando as janelas. Para detalhes do sol procure no
www.cadeoverao.com.br. Fechar uma janela. Vivo para
navegar em sítios, procurar rastros nas ondas virtuais, erguer velas em
direção a você, Maria Tereza; e você, onde? Navegar sem o vento no rosto
não dá barato, e eu sem me dar conta do que você me
dizia. As
informações chovem feito pardais derrubados por boleadeiras. Tantas, para
quê? Foram encontradas 2540
respostas para sua pergunta. Nenhum motivo para responder. Não tenho
tempo, eu pensava, enquanto abria e em seguida fechava outra janela, medo
das informações perdidas, ansiedade pelo que não via. Embaixo da cama, o
bicho-papão que atende quando chamado, no escuro, de desconexão.
Informações, informações, continua chovendo, um guarda-chuva seria
conveniente. E depois, como desviar das poças de dados que se amontoam na
tela? Escorrego e deixo cair os olhos sobre as
chamadas. Parecemos
garotos de cinco anos de quem roubaram o pirulito. A foto do
jogador vestindo a camisa do meu amado e desclassificado time é uma
armadilha. Inflação ameaça viagens
de férias: meu trabalho atrasado descansa. Economia aponta índices da
poupança: gasto de tempo. Tirei férias da vida. E a pressa, cadê?
Melhor buscar no Google. Quando não há notícias de você, todas as outras
saem de foco, pulverizam-se em dados desconexos; sem você a pressa é
mercadoria em falta nas prateleiras. Sem você a vida não completa a
atualização, as horas fazem pausa para o descanso. Notícias em tempo real. O quanto
de realidade existe em um conceito completamente relativo? Sou eu quem
pergunta, e não espero resposta, afinal o tique-taque do relógio não dorme
em serviço. Depende do referencial
adotado, é o que me diz um site de ciências. Fechar outra
janela. Maria Tereza,
sua ausência grita e eu já não consigo me concentrar no monitor. A rede
social não me prende, entro e saio na companhia do tédio, as postagens são
sargaços boiando sem raízes. Acho que adoeci e você não está aqui para me
dizer qual é o remédio certo. O certo é que caiu minha conexão com a
vida. Milhares de
pessoas conectadas em rede, e eu pensando em procurar você na praia. Uma rede que não serve para
balanço? É sua voz, outra vez, ironizando minha lembrança. Caiu na rede é para sair nadando?
Você escolheu cair no mar e quiçá virou sereia, encantou-se. Meus amigos
me chamam no bate-papo e eu preferia gastar saliva. Para mais uma vez
acariciar sua língua com a minha, procurar no www.cadevoce.com.br. E você,
cadê, Maria Tereza? Não foi
encontrada nenhuma resposta para sua pergunta. Nem tudo já.
Ao tempo, mesmo. E agora? Fechar a última janela porque é hora dos
insetos. Você não enviou sua
mensagem, tem certeza de que quer sair dessa página? Clico OK. Sair.
Faço logoff e vou ali, olhar a curva do vento. rede
e shopping
Mulher tem
que entrar na vida do homem com o pé na porta, arrebentando. Não pode ter
grilo. Mulher tem que ter espírito de grileira. Invadir latifúndios,
produtivos ou não. Chegar ocupando espaço, mostrando que veio pra
ficar. O negócio é
engravidar. O quanto antes. Enganar,
inventar doença. Falta de fertilidade que é pro sujeito ficar à vontade,
porque homem gosta mesmo é de ser enganado. Traído até. É um pacto não
anunciado. Mudo, mútuo, você engana e ele se deixa
enganar. Conduzir. Homem é pra
ser levado pela mão. Pro shopping. No fundo são uns filhos da puta que
adoram assinar cheques e reclamar que as mulheres não fazem nada. E mulher
não tem que fazer nada mesmo. Tem que ficar em casa e assistir televisão.
Balançar na rede. Quando muito, dar umas bandas pelo shopping que é pra
arregaçar com o cartão de crédito que ele, muito gentilmente, vai lhe
dar. Isso de
mulher companheira é asneira. Mulher que divide conta, besteira. Mulher
autossuficiente, inteligente, é burrice. Homem não
gosta. Homem gosta é
de dirigir carro e acreditar que dirige a vida familiar. Assim eles se
sentem importantes, responsáveis, provedores,
lutadores. Otários é o
que eles são. Não aguentam
ver uma mulher chorando (desde que as lágrimas não sejam de
verdade). Mulher tem
que saber chorar na hora certa. Isso de mulher chorar sinceramente não dá
certo, eles se irritam. Mulher não
pode ter constrangimento. Pudor. Amor é coisa de mulher
otária. O que mulher
tem que ter é filho. Isso garante pensão, indenização, remuneração. Feijão
no prato. Teta na boca da criança. E, vez por outra, você há de encontrar por aí muita criança bonita, necessitada de carinho e afeição, no talo de seus dezoito anos.
poema alice barreira
enredada Enreda, dos pés à
palma, onde três
linhas per fazem o
emaranhado. A tela da
janela é como uma grade mole. O céu
picotado tem uma cor. Uma cidade sob.
Ruína:
a mãe segura
o filho morto e espera outro que não vai
nascer. Sorte é não
lembrar — o mar
abandona a rede, a água foge
por todo vão. (Vão-se as
marés, fincam-se
dedos) Ficamos e
sei. Não há enredo
que renda, mas ainda não chegamos no depois.
3
poemas 1 A rede
esticada na janela não era para
o mais novo com autismo, mas para a
filha mais velha que tinha
paixão pelo abismo. 2 Fácil cuspir
no prato que comeu quando
se tem prato pra
comer e comida pra
colocar nele! 3 O que é um
outubro com câncer
rosa entre tantos
meses com tumores
negros?
©mercedes
lorenzo
ponto
sem nó "Quando é bom não dura e quando dura já não entusiasma". [Jurandir Freire
Costa]
"Uma
rede é uma soma de nadas. Linhas amarradas que contêm o vazio. É só a
promessa de segurar alguma coisa que precisa entrar nela por vontade
própria. Uma ilusão de agarrar um dia o grande
peixe". Marina
chegou à antiga casa dos avós bem cedo naquele sábado. Entrou devagar,
observando a casa onde passou a infância. Percorreu os cômodos escuros,
onde só havia o silêncio desabitado. A placa anunciando a venda da casa,
no jardim, comunicava o fim de um ciclo. A garota assistia, agora, o
fim do amor. "Por
muitas vezes, cheguei a achar que meu casamento foi um erro. As traições
contínuas do Agenor e a humilhação por que todo mundo
sabia dos casos jamais se afastaram completamente de mim. Nunca
esqueci das brigas. Os gritos, as agressões mútuas, que só terminavam
quando percebíamos que as crianças choravam apavoradas, escondidas sob os
travesseiros. Não foram poucas as noites em que passei acordada,
desesperada por não saber onde Agenor estava ou se voltaria para casa.
Outras tantas vezes, fingi não saber de nada. No fim da vida, me pergunto:
foi ele quem entrou na minha armadilha de casamento ou fui eu quem caiu na
teia ilusória da felicidade completa?". Marina
fechou o diário, cuja última página escrita soava como um desabafo. A
única história de amor possível que conhecia, acabava de desmanchar-se
diante de seus olhos. Se aquele amor que, aparentemente, era feliz, não
tinha toda essa alegria, que esperanças ela poderia ter no
amor? Marta,
sua avó, havia ficado viúva há cinco meses. Tempo suficiente para perder o
brilho dos olhos e envelhecer a ponto de aparentar bem mais que seus 65
anos. "A vida está me escapando", dizia ao olhar-se no espelho e constatar
que os cabelos estavam cada vez mais brancos e a pele cada vez menos lisa.
Um mês antes de morrer, porém, abriu o velho caixote, grande e empoeirado,
como as próprias lembranças, e ficou por longos minutos olhando para o
emaranhado das linhas, o amontoado de agulhas, o malheiro. Perdida em
pensamentos sobre o passado, foi puxando a renda, que por vezes se
enroscava nas lascas da madeira da caixa e arrebentava um ou outro nó,
dilacerando o tecido, aumentando o buraco por onde nada entraria nem
escaparia. Estendeu a trama não terminada no chão e lembrou das longas
tardes em que o marido se sentava na varanda da casa para tecer. Agora,
tudo estava morto: o marido, com quem ela viveu por 45 anos, o amor, pelo
qual ela lutou ao longo da vida, a possibilidade daquela malha
interrompida algum dia ter serventia. "As
dificuldades foram muitas", escreveu logo depois que o marido morreu. "Não
sei se vou suportar viver sozinha, porque me acostumei a andar junto.
Perdoei mil vezes, aguentei todo tipo de dificuldade. Mas em nome de quê?
De satisfazer os sonhos que as pessoas fazem uma garota de 20 anos
acreditar que são satisfatórios? Depois de um tempo, acostumei-me à
solidão acompanhada dos casais que não se amam mais. Como se nadassem
juntos para uma mesma direção, mas sem nunca se tocarem: nenhuma palavra,
nenhum afeto. O amor morre quando a gente pensa que se ele estiver bem
amarrado não vai fugir. Bobagem! Só o que a gente faz é arrastar um amor
morto junto ao próprio corpo. Agora minhas nadadeiras estão quebradas e
não posso mais enfrentar o mar". Marina
encontrou a casa do jeito que a avó tinha preparado. A mulher procurava um
lugar menor para viver, já que estava sozinha. Apequenou-se, como se
apequenam certos tipos de peixe, diante da vastidão do mar. Estava
desfazendo-se de antigos objetos muito familiares a ela. Às vezes,
mergulhada em velhos armários fechados há anos, descobria antigos
guardados que o marido mantinha, como o caixote que ela acabara de abrir.
Uma caixa de Pandora das próprias lembranças, das quais ela aos poucos se
desfazia. A morte, porém, pegou a mulher de surpresa. À neta coube a
tarefa de desmontar a casa, a história da família. Uma
semana antes, Marina rompeu com o namorado, Augusto, que a havia pedido em
casamento. A garota, de 25 anos, não concebia que a felicidade de alguém
pudesse vir de outra pessoa. "Ninguém pode ser feliz estando preso, vovó.
Amar pressupõe liberdade. Fora disso é escravidão", ela ensaiou argumentar
para quando a avó a julgasse louca por recusar o pedido. Ela conhecia bem
a história da avó, que moveu mundos em nome do próprio casamento. Marta,
que em termos de amor só tinha o marido como experiência, contou milhares
de vezes à neta como desejou se casar. Como tramou milimetricamente para
que tudo saísse conforme seus planos. Como afastou as possíveis rivais uma
a uma, espalhando pela cidade inverdades a respeito delas, como traçou planos para trazê-lo à sua
casa, como não deixou margem para que ele escapasse a qualquer
encontro. Levou-o, enfim, ao altar, vitoriosa. Marina
finalizou a leitura do diário estarrecida por constatar que as artimanhas
da avó não haviam resultado na felicidade sem fim, como programado.
Paradoxalmente, teve certeza de que nunca esteve errada a respeito de ser
o amor, em si, uma emboscada. Guardou o caderno da avó para lembrar bem,
no futuro, do que se trata o amor, se um dia o coração titubear. E, antes
de sair da casa, escreveu uma pequena carta para Augusto, o
ex-namorado. "Querido
Augusto, Um
peixe nunca entra na armadilha se souber que vai ser preso. Não é da
natureza dele. A natureza do peixe é seguir livre. Há um oceano inteiro a
ser explorado. Cair na tela é uma condenação. Casar-me com você seria
oferecer-me para o sacrifício. Assim
vives o amor: essa ilusão de que está em mim o que gostarias de ter em ti.
Amar refere-se ao sentimento, nunca a uma pessoa e, por isso, estou te
deixando. Tenho o mar sob meus pés e é meu querer ser livre. O amor,
Augusto, é vão. Para que ele dure, não se deve fazer certas perguntas. O
amor não pode duvidar, não. Tem que ter certeza, mesmo quando parece que o
mar está agitado. Continuar remando. Mas a tempestade e as dúvidas,
Augusto, sempre chegam, cedo ou tarde. E são elas que matam o amor.
Você
jogou a trama, como te ensinaram, e puxou, puxou, puxou… O peso fazia
parecer que estivesse cheia, porque você não enxergava o que estava
arrastando. E na sua imaginação, havia um peixe enorme, o maior de todos.
O que todos queriam pescar. Quando o arrastão saiu da água, não havia
nada. Apenas a fantasia do que seria uma vida perfeita. Uma vida que só
existe no que você não pode tocar: a sua
fantasia. Uma
rede é uma soma de nadas. Linhas amarradas que contêm o vazio. É só a
promessa de segurar alguma coisa que precisa entrar nela por vontade
própria. Uma ilusão de agarrar um dia o grande peixe.
Seja
feliz, Marina"
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