edição 45 | dezembro de
2013 rocambole adelaide do julinho no escurinho
do cinema
o baleiro me
acena
com a
sobrancelha
passamos a
tarde
fazendo cu
doce
miniconto
adriana brunstein eu acredito. em propagandas de detergentes que rendem mais. eu pago mais caro por eles. acredito nas previsões de 6.3 na escala Richter num ponto remoto do japão. acredito em terapias com crochê e em dicas de manuais de boas maneiras. acredito nos eletrodomésticos do Polishop e no vale-brinde de uma dose de felicidade sem colesterol. acredito em cupons da Reader's Digest e no esmalte que não descasca quando tentamos a sorte em raspadinhas. acredito em saudade e em qualquer um que diga que foi o primeiro a exclamar que saudade é uma palavra que só existe em português. acredito no amor inteligente dos filmes noir e em fantasmas traídos que ocupam velhas casas abandonadas. acredito na autenticidade dos reality shows e em edições não tendenciosas de debates políticos. acredito em sinais de SOS emitidos em madrugadas silenciosas e em senhoras que discam incessantemente o 156 do PSIU. acredito na substância tóxica de número 3573 dos cigarros vendidos avulsos. acredito em punhetas batidas para bonecas infláveis e vudus que pequenas garotas escondem debaixo do colchão. acredito na promessa do último gole, do último tiro, do perdão embutido no último suspiro do paciente com câncer terminal. eu acredito no mundo de caras, em cirurgias reparadoras e na melancolia de quem vive com o estômago reduzido. acredito no ano bissexto de calendários promocionais e em dias comemorativos de consciência de qualquer coisa. acredito em correntes do bem e convites para entrar em pirâmides financeiras jogados pelo vão da porta de entrada. acredito em telefonemas de sequestradores que mantêm em cativeiro um parente que eu não tenho. eu acredito em cartas suicidas feitas com animações do Power Point e na fatura do cartão de crédito que acusa a compra excessiva de veneno para rato. acredito em mágicos de buffet infantil e em pais de aniversariantes que trepam com as cunhadas na hora do parabéns. acredito nas sete ondas puladas à meia-noite de 31 de dezembro e no imenso tanque de pesque-pague que deus montou pra se divertir. um anzol machuca meus lábios. eu acredito em você.
3 poemas adriane garcia a princesa
e o mentiroso
Enganou-me
dizendo que tinha
Fazendas
Lavouras que
administrava ele mesmo
Mas
Tudo que
tinha
Era
Um
gato
Em que
calçava botas para não dar a entender que
Sua
consciência era escrava
E cá estou
eu
Dormindo com
o
Nunca
havido
Marquês de
Carabás.
corpo e
frutos à mesa
Sente
É o estouro
de uma
Jabuticaba
grande
Negra
E
madura
Entre a
língua e o céu
Da
boca
Sente
É o mel que
escorre
Do
caqui
Macio e
firme
Você pode até
lamber
Os
braços
Descobrir
Que a pele
anda
Quente
Sente
É a textura
cilíndrica
Da
banana
É a
facilidade
De
mordê-la
Os dentes
deslizando
Sente
O cheiro da
fruta
O cheio da
polpa
O retirar
exato
Da sua
casca.
oração de
quem acha melhor crer
Maria, Jesus
Cristinho
Divino
Espírito Santo
Estai
comigo
Quase fui
ateia, mas sem vós
Eu não
consigo
Se um anjo
não for alado
E não tiver
auréola, uma luz
Que não o
confunda
Eu só poderei
olhar para a terra e
Sumir
Antes, não
terei a quem clamar
Na hora
extrema da cólica de rins
Porque um
médico, Jesus Cristinho
Por mais que
tente
Só consegue
colocar a mão
Do lado de
fora
Enchei-me,
Divino Espírito Santo
Eu, que sou
oca.
©thereza portes
creme vegetal adrienne myrtes Óleos
vegetais líquidos e hidrogenados, água...
Um copo
d'água não ia resolver, dissolver. Diluir o soluço preso no meio do
peito.
... sal (3
por cento), estabilizantes mono e diglicerídeos e ésteres de poliglicerol,
aroma artificial...
O cheiro da
vela queimada já chegava até a cozinha. Usava o artifício do ar para
entrar nariz a dentro sem pedir licença. Deveria ela entrar na sala
pedindo licença aos presentes? Sua presença, com licença ou sem licença só
perturbaria a dor tranqüila do ambiente.
... de
manteiga...
Quase sorriu
ao lembrar de uma de suas noites de amor. Amor maduro o dele. Assistiu ao
Último Tango.
...
Conservantes sorbato de potássio e/ou benzoato de sódio, corante natural
de urucum...
A cor da
pele, curtida de sol. Cheirava. Loção após barba que roçava sua pele.
Pelejava com ele a noite. "Fica comigo". "Só mais um
pouco".
... ou
idêntico ao natural beta caroteno...
Naturalmente
aquilo não estava certo, não poderia durar o tanto que durou. Mas a vida é
granito verde e o ser humano egoísta. O gosto da presença dele, mais forte
que a noção de decência.
... acidulante ácido lático, antioxidante EDTA-cálcio dissódico, BHT e ácido lático cítrico e vitamina A (1.500 V.I/100g), aromatizado...
Mais uma vez o cheiro das velas. Agora misturado com o cheiro das flores. O melhor era largar de vez o pote de margarina, entrar na sala e falar pra irmã. "O seu marido, era comigo que ele dormia todas as noites em que você chorava a ausência dele". Falar assim. Ali mesmo espiando a cara dele dentro do caixão.
família
alice barreira 1.
PELÚCIA
Flanfar era
um pequeno urso de pelúcia todo azul e de olhos e nariz verdes. E era isso
o que ele mais odiava. Seu irmão, Flanfis, era todo verde e tinha os olhos
e o nariz azuis. Ele era da cor que Flanfar queria ser e tinha os olhos e
o nariz da cor que Flanfar queria ter. Talvez por isso Flanfar fumasse sem
parar. E talvez por isso apagasse os cigarros na pelúcia verde e macia de
Flanfis. Flanfis tentava encontrar algum motivo que justificasse a atitude
de Flanfar, mas de noite na cama não conseguia parar de chorar. Chorava
baixinho e com medo, para que Flanfar não notasse ou para que ele mesmo
não reparasse. Flanfar, que dormia na mesma cama do irmão, nem se mexia e
seguia sonhando com uma pelúcia verde e olhos e nariz azuis. Mas Flanfis,
sem sono, acabava levantando-se lentamente e sentando-se na cama.
Então,
dezenas de pensamentos cruzavam os mecanismos de corda que formavam o
cérebro de Flanfis. De costas para o irmão e com seus pezinhos verdes
balançando quase imperceptivelmente, ele olhava em torno do armário onde
viviam e via as prateleiras com outros bichos de pelúcia, com carrinhos de
corda, soldadinhos de chumbo, bailarinas de crepom, heróis de plástico,
bolas de gude, pipas de papel colorido, peões de madeira, dados e caixas e
mais caixas de jogos. E seus olhos sempre terminavam pousados no mesmo
lugar. A pequena cama de Flanmia, sua irmã caçula. Flanfis gostava de
Flanmia, que tinha a pelúcia de uma cor que ele não conhecia e que possuía
um olho amarelo e outro vermelho e que não possuía nariz. Flanfis achava
curioso ela ter um olho de cada cor e gozado a irmã tão pequena e sem
nariz. Talvez por isso nas noites insones não conseguisse desgrudar os
olhos de sua pequena cama. E talvez por isso terminasse descendo
cuidadosamente da cama onde dormia com Flanfar, atravessasse a prateleira
onde viviam, subisse na cama de Flanmia, abraçasse a irmã caçula, chamasse
baixinho pelo seu nome, acariciasse as pálpebras que cobriam aqueles olhos
amarelos e vermelhos, apertasse contra seu próprio corpo aquela pelúcia de
cor indefinida, abrisse lentamente aquelas pernas quentinhas, tampasse a
pequena boca de dentes macios e a possuísse até sonhar que gozava azul.
Então Flamnia
esperava o irmão dormir.
2. DOCE
LAR
Minha avó em
cima da cama, só pele e osso, comida pelo câncer, e falando o nome dele
sem parar. Meu avô do lado, fingindo que não escutava.
O nome do
irmão.
3. NÃO SE
DISCUTE
Eu disse:
Na minha casa
tinha uma empregada, uma menina de uns dez anos mais ou menos, que a minha
avó pegou pra criar ou pra criada, sei lá. Sei é que essa menina tinha um
monte de tarefas, entre elas cuidar de mim. Ela odiava todas as tarefas,
odiava a minha avó, o meu avô, o meu pai, a minha irmã e o Robin, o nosso
cachorro. Odiava até a memória da minha mãe, que o meu pai tentava
transformar numa espécie de religião familiar. Nisso aliás ela conseguiu
todo o apoio do meu avô, mas aí já é outra história.
O que eu
quero te contar mesmo é que ela me adorava e largava qualquer tarefa pra
ficar grudada comigo. Nem todos os castigos do meu avô nem os tapas e
beliscões da minha avó mudavam o jeito de Já — era assim que todos a
chamavam e eu nunca soube seu nome. Ela dizia que também não sabia ou
inventava uns nomes malucos, que me faziam rir.
Quando a
gente estava sozinho em casa, ela tirava a nossa roupa e me ensinava a
brincar de namorado. E eu me esforçava para aprender as lições. Até que um
dia, quando Já estava com o meu pau na boca, meu avô chegou e nos viu. Ele
ficou olhando, olhando, saiu sem falar nada e trancou a porta. E a gente
lá, assustado, sem saber.
Depois de uma
eternidade, a porta finalmente se abriu e entraram meu pai, minha avó e
meu avô. Minha avó trazia um fogareiro aceso. Meu pai segurava um garfo. E
meu avô apenas olhava, mas parecia comandar aquilo tudo. Minha avó pousou
o fogareiro na cômoda e segurou Já, prendendo seus braços por trás. Já não
reagiu. Meu pai esquentou o garfo no fogareiro e meu avô continuou
olhando. Então meu pai me puxou para junto dele, botou o garfo na minha
mão e disse com muita calma e bem baixinho: é pra queimar na boca, está
bem? Eu não conseguia me mover e então ele me ajudou a aproximar o garfo
dos lábios de Já, enquanto praticamente sussurrava: rápido, filhinho,
senão o garfo esfria.
E aí eu
concluí: é por isso que eu gosto assim, entendeu?
E ela
respondeu: entendi, mas não é não.
Mas aí já é
outra história.
©thereza portes
presente
ana criolina Mentir é um ato solidário. Você não mente por você. Quando ela entrou aqui, com aqueles olhos famintos, eu disse que a amava. Trepamos a noite toda e ela me deu um beijo estalado antes de ir. Não ligou no dia seguinte. Faz um mês que não dá notícias. Hoje, eu sei que ela sabia. Ela sabia que eu mentia. Ela sabia que. A mentira é um presente. Ocultar a verdade pra fazer alguém sorrir é a maior das generosidades. E é um risco. De se convencer da própria mentira. Nós duas sabíamos, era mentira, mas, tanto ou mais que ela, acreditei. E agora ela não vai voltar. Amo aquela garota desde que percebi que ela não vai voltar. Desde que a vi sair, depois que fechei a porta. Porque a gente sempre ama nas despedidas. Porque a gente sempre acredita nas nossas mentiras.
três migalhas humanas - (mentira) - (tesão) - (fé)
fragmento do delírio
ariana zahdi Ouvi o grito
em mim e às sete da manhã estalei os olhos sem mover mais um músculo
sequer. Olhei para o teto. Era tudo silencioso. Só o barulho de ir e vir
da respiração me distraía.
Um aperto no
peito. Como se nunca mais fosse capaz de me libertar dele de novo. Uma
agonia sem nome. Solidão. Tristeza. Raiva. Não sei. Não entendi ainda o
que era. Eu pensava como se estivesse do lado de fora de mim e aquele
deitado na cama fosse outro, de quem eu nunca
soubera.
Era eu aquele
paralisado, de olhos abertos e coração disparado. Mas eu não mandava em
mim. Eu já não coordenava mais minhas ideias. Era só o aperto no peito e
aquela voz, tão sinistra e familiar que me dizia, no silêncio dos meus
pensamentos: você não vai escapar.
Escapar. De
quê? De quem? Eu não sabia rezar. Nem chamar Deus, se é que ele de fato
existia ou se importava comigo, com minha consciência corrompida, com meu
corpo quase decomposto e, entretanto, vivo. Deus não estava ali para me
devolver a mim. Nunca estaria. Ninguém me traria de volta. Nem deuses, nem
demônios.
Um cigarro.
Dois. Dez. Nem meia hora, outro uísque. O fim da garrafa de vodca
polonesa. Minha preferida e eu não comprei outra. Não importa. Eu não sou
eu. Eu sou aquele que construí e que não tem preferências. Ou eu sou o
outro, o que não sabe que eu existo ou que quer me enlouquecer? A faca me
olhando de cima da mesa. Aquela música, de novo. Eu não queria lembrar. E
eu cantava. Nervosamente, cantava enquanto a voz gargalhava aqui dentro.
Deixei de fumar para saber que eu ainda mandava em mim. Parei de beber
porque precisava ter certeza de que ainda controlava meu
desejo.
Desejo, um
estranho. Desde quando saí de mim não sei mais o que é o querer. Quis
tanto, demais. Quis tudo. Agora, não sei mais o que me mantém vivo. Não
sei mais o que me deixa ser lúcido dentro do caos. Quase dois meses aqui,
fechado nesse quarto e eu ainda não sei.
Escrevo
cartas de despedida. Cartas de amor tardio. Cartas de desabafo. Entupo
e-mails indiscriminadamente porque estou só. Com minha abstinência. Minha
revolta. Minha dor. Minha melancolia. Meu medo de amar e de não amar.
Tenho adorado figuras distantes e antigas, como se fossem parte de um
altar pessoal. As mesmas pessoas que eu não quis manter por perto. Quem
explica? Quem garante que minha loucura não começou muito antes de eu
estar aqui, tentando saber quem manda em mim — eu ou o outro
eu?
Esboço me
levantar e a chuva bate na janela. Sento-me na cama. Nada em mim me
pertence. Tento voltar e conjugo verbos. Primeiro os regulares, depois os
irregulares. Me distraio por horas, como se um dia pudesse usá-los de
novo.
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