edição 45 | dezembro de 2013
temas:  mentira | tesão | fé

 

4 poemas
heloisa defarge 


exílio e fé

 

 

acabas de sair

mas mal me caibo

do quanto

consagraste a mim

 

 

 

 

in vino veritas

 

 

tudo era verdade

a mais pura verdade

a mais fina verdade

da mais fina casta

só você não acreditou

 

 

 

 

transeuntes

 

 

sempre roço a minha mão

no desconhecido que passa

sofro de contágio de pele

 

 

 

 

vaudeville

 

 

fazer sexo

com anjos

não cura, sua

 

 

sobre anjos e demônios
isadora galvão 


Tenho absoluta certeza de que Gabriel mentiu sobre a noite de ontem. Chegou em casa às duas da manhã, cheirando a cerveja e suor. Era a despedida de Marcelo, um de seus melhores amigos, que irá morar em Montevidéu. Estavam todos os amigos (segundo Gabriel) em um barzinho no centro da cidade. Não tenho provas (nem sequer evidências, verdade seja dita) de que as coisas não aconteceram como ele me disse, mas, estou certa de que é tudo mentira. Sei que me perguntarão por que afirmo isso. Você tem razão, homem é tudo safado, responderão algumas amigas. Mas não Gabriel, bom marido, tranquilo, via de regra, homem caseiro. No entanto, por que então aquele demônio dentro de mim me espezinhando com o tridente da desconfiança?

Talvez tenha sido pelo olhar dele ao chegar da noitada... Não era o mesmo olhar que ele sempre me lançava, ao chegar. Não que eu tenha detectado uma nuvem em suas retinas, pelo contrário, era um olhar sereno e alegre, de quem tinha a consciência limpa. Beijou-me o rosto, contou as fofocas dos amigos, relatou que Carlos voltara o namoro com Isabel, comeu uma maçã e bebeu água. "Estou meio tonto, acho que bebi demais" — falou — "Vou tomar um banho e vamos dormir, certo?".

Estaria tudo certo se eu não estivesse certa de que tudo era uma mentira. Quando ele se deitou, ao meu lado, fiz uma série de perguntas, para ver se ele não caía em contradição. Mas todas as histórias tinham lógica, os amigos, os pedidos, as histórias, até o detalhe do garçom Osvaldo, um simpático senhor de idade que perguntou como eu estava (fato que eu poderia facilmente confirmar — ou justamente não — quando fosse ao bar).

Mas nada disso era garantia de que a história fosse verdadeira. Afinal, três meses atrás, quando eu fui visitar minha prima Graça, na periferia, na volta não parei com ela e uma amiga para tomarmos uma cerveja em um barzinho perto da casa dela? E quando eu fui ao banheiro, não encontrei um rapaz, que ficou sorrindo para mim e me olhando como se quisesse me devorar? Pensei em dizer que era uma mulher casada, de respeito, mas ele, esperando o banheiro desocupar, me encarava, sem vergonha nenhuma. Eu, apertada, querendo entrar no banheiro feminino, também ocupado, achava aquela situação um absurdo — eu uma mulher séria — mas não conseguia tirar os olhos do rapaz.

Até que uma mulher entrou no banheiro, e eu, nervosa, acabei entrando lentamente, não sem antes dar uma olhada na direção do rapaz. Foi quando ele veio ao meu encontro, de repente. Empurrou-me para dentro do banheiro feminino, trancou a porta e, sem uma palavra, começou a me beijar. Tentei resistir, mas confesso que um calor me subiu e subitamente eu estava aos beijos com ele, que começou a desfivelar o cinto e baixar a calça jeans. Pensei em empurrá-lo e abrir o trinco da porta, bem perto, mas quando menos percebi, eu estava levantando o vestido e afastando a calcinha para que ele entrasse em mim. E tudo aconteceu assim bem rápido, mas muito excitante. Gozei duas vezes.

Antes de chegar em casa, passei na padaria e comprei um bolo de laranja, que Gabriel adora. Ele perguntou-me como foi na casa da prima e respondi que estava tudo bem. À noite, fiz amor com Gabriel.

Agora, Gabriel dorme pesadamente, cheio de cerveja e petiscos. Disse que estava o tempo inteiro no bar com os amigos, conversando e contando piadas. Algo em mim diz que é tudo mentira.

 

 

 

 

poema
jane sprenger bodnar 


não é mentira

é momento

 

alma de moinho

vento

 

redemoinho

mós de tempo

 

 

poema
jussara salazar 


*

 

SEGUNDO RETÁBULO:

DEPOIS DE PASSAR O DESERTO AS VELHAS ATRAVESSAM OS CÉUS:

 

VOU CANTANDO

no céu do brejo seco

no céu do avesso

do timbre burlesco

das traças

do arabesco

da palavra serpente

das sombras do terço

o céu que nos rói

o céu que nos ata

o céu que nos mata

o céu dos avessos

o céu da mortalha

o céu que costura

o céu do medo e o derradeiro céu

que nos talha cirze o vestido negro

gato negro negro é o gato

bode negro anda no mato

negro é o corvo e negro é o pez

negro é o rei do enxadrez

negra é a vira do sapato

negro é o saco que eu desato

 

 

[de Carpideiras, 7Letras | 2011]

 

 

 
©thereza portes
 
 
 
 
miniconto
larissa marques
 


...

e não me venham com aquela velha filosofia de mesa de boteco: "não confio nos homens", dizem as mulheres; "fidelidade? já não fazem mais mulheres como antigamente", dizem os homens. pois bem, tenho cá uma opinião formada sobre o ser humano no geral, a maioria usa de um ou de vários artifícios para justificar seus erros, suas mentiras, em suma, seus mais incontidos e pérfidos vícios. se é beber, admitem que estavam na zona, mas não admitem que estavam bebendo. se é cheirar, dizem que trabalham até tarde. se é foder, juram de pés juntos que estavam em um bar bebendo. e se é descrente e de pouca fé, são capazes de viver dentro de templos louvando seus mitos e negando tudo aquilo que mais desejam. qualquer coisa justifica a enganação coletiva e o pior é que chegam a acreditar na nuvem irreal onde constroem em cima suas quase verdades. não confio em quem usa drogas para se esconder, portanto não confio em ninguém.

...

 

 

 

covardia
lia beltrão 


A única vez que ele mentiu pra mim, foi quando disse que não me amava. Amava, sim. Do jeito que amam os covardes. Amava a casa arrumada, a roupa limpa, bem passada, o cheiro dos lençóis. Amava a comida de todos os dias e amava mais o almoço dos domingos. Mas dizer que me amava, nunca disse. Também nunca me chamou de meu amor. Nem mesmo antes ou depois do gozo, muito menos nos meus tempos de agonia. Quem visse de fora, podia pensar que era dureza de macho. Mas eu sabia que era pura covardia. Porque se dissesse que me amava, eu podia querer mais coisas dele. Que se casasse comigo, que me desse filhos, que me pagasse as contas. Mas eu nunca dei esse gosto a ele. Sempre tive meu dinheiro. Costuro pra fora, faço bolos, vendo avon. Ele é que um dia chegou mais calado do que de costume. Tomou banho, jantou, ligou a televisão e ficou ali, um mortovivo. Quando perguntei o que se passava, disse com voz de choro: preciso de dinheiro pra pagar uma dívida de jogo. Era pouco, eu tinha, entreguei a ele dentro de um envelope. Ele pegou o dinheiro, levantou-se do sofá e disse que ia embora e não voltava mais. Eu não te amo, disse. E eu vi nos seus olhos e ouvi na sua voz que ele mentia.

 

©thereza portes

 

10 poemas
líria porto 


falso

 

 

sempre te olhei nos olhos

e tu — eu creio — mentiste-me

 

não percebi que mudava

não me disseste observa-te

não és nenhuma criança

 

o tempo sulcou minha cara

tenho cabeça mui branca

olhos que não te alcançam

:

tu foste falso enganaste-me

fingiste que eu era bela

(ainda ontem usei tranças)

 

 

 

 

uau

 

 

na hora do amor

subir nas paredes

depois despencar

 

(não se arrepender

é tudo tão bom)

 

o inferno e o céu

são faces da mesma

moeda

 

 

 

 

vate retro

 

 

de dar nós nas tripas entupir as veias

areia nos olhos ou cacos de vidro

 

és lobo travestido

de ovelha

 

 

 

 

fruta

 

 

nasci flor — fazer o quê

era macia cheirosa

mas depois quando encorpei

a minha polpa rachou

despertou fome

e desejo

 

uns homens

os mais gulosos

sujaram a boca

e os bigodes

 

 

 

 

tentação

 

 

não darei a alma ao capeta

mas o corpo — vou pensar

 

 

 

 

 

resgate

 

 

nós que fomos um do outro

voltamos a ser de nós mesmos

 

agora é só desejo

algemas matam o amor

 

 

 

 

urbano

 

 

na cabeça chapéu

sobre os ombros obrigações culpa medo

segredos no bolso entre as pernas

o pau duro

:

nos pés

sapatos e meias

 

 

 

 

sabor

 

 

não poupo o corpo da fruta

cravo-lhe os dentes e como

casca e sementes

 

 

 

 

sem cerimônia

 

 

o amor me quis — entreguei-me

ofereci-me em bandeja

 

cheirou-me lambeu-me

partiu-me em mil pedaços

e sem usar guardanapo

comeu-me

 

deixou o resto às baratas

e ratos tiram proveito

 

 

 

 

provocação

 

 

a violar tua reza

dedilhar a tua fé

conferir a ladainha

(não acredito em deus)

repisar missa e rosário

mastigo hóstias e sinto

gosto de farinha

 

 

 

 

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